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Alquimia doutrinária-legislativa-jurisdicional e a (perniciosa) sublimação da boa-fé processual

Por Lúcio Delfino[1]

 

“Diante dos portões da cidade e ao lado da lareira, eu os vi prostrados em adoração à própria liberdade. Como escravos que se humilham perante um tirano e o aplaudem mesmo que este os mate. Sim, tanto no bosque do templo quanto à sobra da fortaleza, vi os mais livres entre vocês permitirem que a própria liberdade fosse o jugo e as algemas.” (GIBRAN, Khalil. O profeta. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019).

 

Há, no ordenamento jurídico brasileiro, normas cujo alojamento topográfico faz lembrar aquela pecinha de quebra-cabeça metida de qualquer jeito num espaço que não é dela. É, grosso modo, como ouvir que girafas habitam a floresta amazônica, ou que Fiódor Dostoiévski está entre os mais capacitados jogadores de críquete de todos os tempos. Ou ainda que juízes têm competência para, ex officio, instaurar e liderar investigações criminais.

Erros e ou deslizes tolos são, no mais das vezes, desprezados. Acabam ridicularizados, ou entram na conta da falibilidade humana: ninguém é perfeito, de modo que é impossível acertar sempre. O problema ganha relevo, porém, quando a imprecisão legislativa é difundida com ares de benignidade, defendida, incrementada e aplicada por setores autorizados: de pouco em pouco vai se naturalizando até se tornar, enfim, quase que invisível no entremeio de camadas e camadas de doutrina e decisões judiciais.

É esse o caso do art. 5o do CPC/2015: está mal situado, ou seja, o legislador equivocou-se absurdamente ao incluí-lo entre as chamadas “Normas Fundamentais do Processo Civil”, as quais deveriam circunscrever-se ao regramento das garantias contrajurisdicionais do processo. Indo ao ponto: a boa-fé processual de maneira nenhuma se relaciona à matriz constitucional do devido processo legal, não possui a fundamentalidade que lhe pretendeu emprestar o legislador infraconstitucional – empréstimo, diga-se de passagem, feito por via oblíqua, uma vez que a criação de normas fundamentais apenas se dá pelo labor do poder constituinte.

O empreendimento nada tem de imaculado e traz implicações de ordem prática assaz negativas. Atribuir nomes errados às coisas, tratando-as a partir de uma relevância distanciada da sua essência, vale dizer, chamar de fundamental norma de cariz ético-procedimental só acarreta toda sorte de vulgarizações de garantias constitucionais, piruetas interpretativas, ponderações amalucadas, perda do senso de hierarquia das fontes de Direito e ausência de previsibilidade.

Dois exemplos, ambos extraídos de julgados do Superior Tribunal de Justiça, permitem avançar do plano abstrato da doutrina para o atingimento de contornos concretos ligados à denúncia aqui formulada. Causou assombro o prestígio que o Tribunal da Cidadania atribuiu à boa-fé processual no REsp 1.789.913/DF,[2] encarando-a (sem exagero) como espécie de sobrenorma, a ser observada não meramente na arena procedimental-jurisdicional, mas pelo próprio legislador na tarefa de criação de leis. Em suma, essa novíssima versão jurisdicionalista ultraturbinada da boa-fé processual almeja obstar a superação de orientação jurisprudencial consolidada e o (suposto) atentado à independência dos Poderes.

Tem-se, aí, por óbvio, mais um daqueles exageros retóricos “vanguardistas”. Nem é preciso ir longe: uma leitura despretensiosa do art. 5º do CPC/2015 leva à conclusão fácil de que o espectro de incidência da norma está limitado ao procedimento jurisdicional (“Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”). De resto, inexiste malferimento à independência dos Poderes na atuação de parlamentares que decidem legislar em oposição à jurisprudência firme. Nada em absoluto impede que deputados e senadores – muito pelo contrário, aliás – insurjam-se contra os rumos tribunalísticos a fim de construir regramentos legais que melhor atendam interesses daqueles que democraticamente os elegeram.

Em outra ocasião, o Superior Tribunal de Justiça (Recurso em Habeas Corpus n. 99.606-SP)[3] validou medidas coercitivas indiretas adotadas por um juiz de base em prejuízo manifesto ao devido processo legal. Segundo o posicionamento ali exarado, ao executado não é suficiente – haja vista o disposto no parágrafo único do art. 805 do CPC/2015 – alegar a invalidade de atos executivos gravosos, cabendo apresentar outrossim proposta de adimplemento da obrigação que lhe seja menos onerosa e, por seu turno, mais eficaz à satisfação do crédito exequendo. Acontece que a decisão atacada, ademais de não fundamentada, distinguia-se pela surpresa. Preferiu-se, mesmo assim, supervalorizar boa-fé e cooperação processual em franco desdém à fundamentalidade que caracteriza contraditório e dever de fundamentação. Deu-se, em resumo, um alcance ao parágrafo único do art. 805 do CPC/2015 que ele jamais poderia ter,[4] fazendo com que regras de natureza infraconstitucional vencessem a Constituição – a última foi interpretada à luz das primeiras, e não o contrário, isto é, o velho conhecido, e infelizmente usual, gesetzkonforme Verfassungsinterpretation.

Nunca é demais lembrar o alerta feito por conceituada voz doutrinária (pouco ouvida e até desprezada no Brasil) sobre a relação político-ideológica existente entre regimes totalitários (comunistas, fascistas e nazista) e alguns modismos legislativos (= boa-fé processual, cooperação processual e ampliação de poderes judiciais em busca da “verdade real”).[5] Legislar, teorizar e aplicar o direito em atenção à lógica da hierarquia normativa é tema ligado ao Estado de Direito brasileiro – hoje tão combalido, definhado e repleto de mossas – e a mantença daquilo que resta de seus alicerces. Naquilo que interessa: prestar homenagem à boa-fé processual para além da substancialidade constitucional do devido processo legal é, para dizer pouco, ministério imprudente, que empodera o Judiciário e subverte arbitrariamente a liberdade de litigância das partes (e dos seus advogados).

A insegurança jurídica agradece!

 

Notas e Referências:

[1] Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro fundador e diretor de publicações da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro). Advogado.

[2] É o que se lê no voto de relatoria: “Dessa forma, a regra do art. 85, §8º, do CPC/2015, deve ser interpretada de acordo com a reiterada jurisprudência do STJ, que havia consolidado o entendimento de que o juízo equitativo é aplicável tanto na hipótese em que a verba honorária se revela ínfima como excessiva, à luz dos parâmetros do art. 20, §3º, do CPC/1973 (atual art. 85, §2º, CPC/2015). Conforme bem a apreendido no acórdão hostilizado, justifica-se a incidência do juízo equitativo tanto na hipótese do valor inestimável ou irrisório, de um lado, como no caso da quantia exorbitante, de outro. Isso porque, observo, o princípio da boa-fé processual deve ser adotado não somente como vetor na aplicação das normas processuais, pela autoridade judicial, como também no próprio processo de criação das leis processuais, pelo legislador, evitando-se, assim, que este último utilize o poder de criar normas com a finalidade, deliberada ou não, de superar a orientação jurisprudencial que se consolidou a respeito de determinado tema.” (STJ, REsp 1.789.913, 2ª Turma, rel. Min. Herman Benjamin, julgamento: 12/02/2019, disponível em: www.stj.jus.br).

[3] STJ, RHC 99606, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, julgamento: 13/11/2018, disponível em: www.stj.jus.br.

[4] Veja-se o teor do art. 805, caput e parágrafo único, do CPC/2015: “Art. 805. Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado. Parágrafo único. Ao executado que alegar ser a medida executiva mais gravosa incumbe indicar outros meios mais eficazes e menos onerosos, sob pena de manutenção dos atos executivos já determinados.” O acórdão citado baralhou questões de ordem hierárquica distintas – nulidade de decisão por menosprezo ao devido processo e desconsideração ao disposto no parágrafo único do art. 805 do CPC/2015 –, o que culminou na validação, com justificativas enraizadas em regras infraconstitucionais, de uma decisão judicial ofensiva à Constituição Federal. Criou-se, no fundo, uma condicionante absurda (não prevista em lei e inconstitucional): os argumentos de defesa em sede de cumprimento de sentença, que estiverem fundados em lesão ao devido processo legal, só serão enfrentados pelo Judiciário se o executado cumprir o disposto no parágrafo único do art. 805 do CPC/2015. E vale insistir: carecem de legitimidade posturas “interpretativas” com enfoque progressista (ou coisa que o valha), que apostam em rumos decisórios descompromissados com o direito legislado, seja por discordância pessoal dos valores nele embutidos, seja pelo fato de o intérprete atribuir-lhe compreensão desatenta às minudências decorrentes de sua totalidade. Não é legítimo o uso do poder judicial com fins de promover “revoluções humanistas” ou implementar, à moda do custe o que custar, uma cultura de adimplemento. Atuando assim, o Judiciário se deslegitima, extrapola limites legais e constitucionais, age de maneira discricionária (= ativismo judicial). É o diagnóstico constatado pela leitura do acórdão: uma postura judicial ativista-discricionária, alheia às complexidades do ordenamento jurídico e, portanto, ilegal (= transposição de sanção criminal para um procedimento executivo no âmbito civil; pouco-caso ao regime caracteristicamente típico e sub-rogatório das execuções para pagamento em dinheiro; ausência de nexo entre meio e finalidade das medidas restritivas impostas) e inconstitucional (= afronta às garantia da liberdade de locomoção, da legalidade estrita em matéria penal, do contraditório e da fundamentação das decisões judiciais e, por fim, ao devido processo cujo respeito se impõe para a aplicação de sanções punitivas).

[5] AROCA, Juan Montero. Proceso Civil e Ideologia: Un prefacio, una sentencia, dos cartas y quince ensayos. 2ª ed. Sobre el mito autoritário de la “buena fé procesal”. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011. pp. 292-352.

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