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Antitruste e Esportes: a complexa dinâmica entre competição e regulação no Século XXI

O diálogo entre o direito concorrencial e o universo esportivo constitui um dos debates mais fascinantes e desafiadores da atualidade, mesclando tradições seculares com as exigências de mercados globalizados. Desde os primeiros registros de intervenções antitruste no esporte no início do século passado, quando tribunais norte-americanos começaram a examinar as peculiaridades das ligas profissionais, até os complexos casos contemporâneos envolvendo transmissões digitais e atletas-empresários, o que se observa é uma evolução constante na forma como autoridades e agentes esportivos equilibram a necessária cooperação institucional com os princípios de livre concorrência.

O mercado esportivo contemporâneo apresenta características únicas que o distinguem radicalmente de outros setores econômicos. Enquanto na indústria tradicional a eliminação de concorrentes pode ser estratégia para dominância, no esporte a qualidade do produto – o espetáculo esportivo – depende fundamentalmente da existência de rivais competitivos. Essa paradoxal interdependência entre competidores gera situações jurídicas complexas, como evidenciado no recente caso da Superliga Europeia, onde o Tribunal da União Europeia reconheceu a legitimidade de regras esportivas, mas condenou a FIFA e a UEFA por falhas processuais na aplicação dessas normas, destacando a necessidade de critérios transparentes, não discriminatórios e proporcionais.

Nos Estados Unidos, a 2nd Circuit Court reabriu em 2024 importante discussão sobre os limites da governança esportiva global ao examinar alegações de que a FIFA e a Federação Americana de Futebol estariam conspirando para impedir a realização de jogos oficiais de ligas estrangeiras no território nacional. Paralelamente, atletas de diversas modalidades – de tenistas profissionais a lutadores de MMA – têm questionado nos tribunais restrições contratuais que limitam sua participação em competições alternativas, numa clara demonstração de como as relações de trabalho no esporte moderno desafiam os paradigmas antitruste tradicionais.

O Comitê de Concorrência da OCDE, em seus históricos roundtables sobre o tema (1996 e 2010), já alertava para a sensibilidade especial deste setor, onde arranjos cooperativos entre concorrentes são muitas vezes essenciais para a própria existência do produto esportivo, mas que podem facilmente degenerar em práticas anticompetitivas quando mal calibrados. Essa discussão ganha novos contornos na era digital, com a explosão de plataformas de streaming disputando direitos de transmissão e a emergência de modelos híbridos que combinam apostas esportivas, conteúdo exclusivo e interação com torcedores.

No Brasil, o cenário é particularmente dinâmico. A recente Lei das SAFs (2021) introduziu profundas transformações na governança do futebol profissional, criando novos desafios para o CADE no monitoramento de operações societárias e concentrações econômicas no setor. A aprovação condicionada da fusão Disney/Fox Sports em 2019, que exigiu o desinvestimento de uma das marcas, demonstrou a atenção das autoridades com os efeitos dessas operações no mercado de transmissões esportivas. Mais recentemente, a implementação da Lei 14.205/2021, que transferiu aos clubes mandantes a negociação exclusiva dos direitos de transmissão de seus jogos, trouxe novo capítulo a esse debate, com o próprio Departamento de Estudos Econômicos do CADE destacando os potenciais benefícios concorrenciais da medida, embora seus efeitos práticos ainda estejam em avaliação.

Nesse mesmo sentido, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), através da Nota Técnica nº 1/2020, deu início a um Procedimento Preparatório para investigar potenciais distorções concorrenciais no mercado de direitos de transmissão de partidas de futebol no Brasil. Este processo, instaurado de ofício e posteriormente ampliado por denúncia do Fortaleza Esporte Clube, concentra-se em condutas que supostamente violam os artigos 36, §3º, IV, VIII e X da Lei nº 12.529/2011, que tratam de práticas anticompetitivas como o abuso de posição dominante e a discriminação de preços. O cerne da análise recai sobre os impactos da Medida Provisória nº 984/2020, que alterou radicalmente as regras do jogo ao transferir exclusivamente aos clubes mandantes o direito de negociar a transmissão de suas partidas, eliminando a necessidade de concordância do time visitante – uma mudança que promete reconfigurar o equilíbrio de forças neste bilionário mercado.

O futebol, como atividade econômica, apresenta peculiaridades que desafiam os paradigmas tradicionais do direito concorrencial. Diferentemente de setores onde a eliminação de concorrentes é estratégia comum, o esporte depende da coexistência de rivais para existir: um campeonato sem times competitivos perde valor comercial e apelo popular. Essa contradição entre competição e cooperação foi destacada pela OCDE em estudos anteriores, que identificaram três eixos fundamentais para análise: a dimensão cultural do esporte, que transcende o mero comércio; a importância da incerteza dos resultados, que exige equilíbrio competitivo; e a necessidade de preservar clubes menos eficientes financeiramente, pois sua existência enriquece o ecossistema esportivo. São esses princípios que orientam a atuação do CADE neste caso complexo.

Antes da MP 984/2020, o mercado brasileiro operava sob dois modelos principais de negociação: o individual, onde clubes fechavam acordos diretamente com emissoras (como no Campeonato Brasileiro Série A), gerando disparidades financeiras gritantes; e o coletivo, em que federações ou ligas centralizavam a venda de direitos (common em estaduais e Copa do Brasil). O sistema anterior, porém, era marcado por frequentes “apagões” – quando emissoras rivais, detentoras dos direitos de times adversários em uma mesma partida, não chegavam a acordo sobre a transmissão. A MP surgiu para resolver esse problema, mas trouxe consigo novos desafios concorrenciais. Ao conceder ao mandante o controle exclusivo sobre a transmissão, a medida empoderou clubes menores, mas também fragmentou o mercado, criando oportunidades para que grandes emissoras como a Globo – que já detém posição dominante com mais de 20% do mercado de transmissões – ampliassem sua vantagem competitiva através de estratégias como a aquisição predatória de direitos ou a imposição de cláusulas discriminatórias.

Foi justamente sobre essas práticas que o CADE voltou sua atenção. A análise preliminar identificou indícios de várias condutas preocupantes: desde o tradicional abuso de posição dominante (como os apagões, que poderiam ser usados para excluir concorrentes) até práticas mais sofisticadas, como o açambarcamento de direitos sem intenção de explorá-los comercialmente – estratégia que, segundo relatos, já foi utilizada em outros esportes como o vôlei. Outro ponto crítico são os contratos de exclusividade de longa duração, que podem fechar o mercado para novas entrantes, e relatos de discriminação de preços, onde clubes que negociam com emissoras concorrentes receberiam ofertas menores da Globo para outras plataformas.

Em conclusão, o caso ilustra o delicado equilíbrio entre regulação e mercado no esporte. Se por um lado a MP 984/2020 resolveu problemas históricos como os apagões, por outro expôs fragilidades que demandam ajustes finos. O CADE, ao recomendar a abertura de inquérito administrativo, sinaliza que a mudança legislativa não pode ser vista como fim em si mesma, mas como primeiro passo para um mercado mais dinâmico e justo – onde clubes, torcedores e emissoras concorrentes possam coexistir em benefício do espetáculo esportivo. O desafio que se coloca agora é transformar esses princípios em regras efetivas, capazes de preservar o futebol não apenas como negócio, mas como fenômeno cultural e social.

Os próximos anos prometem intensificar esses desafios, com a consolidação das SAFs, a expansão global das apostas esportivas regulamentadas e a disruptiva entrada de novas tecnologias e modelos de negócio. Neste contexto, o Brasil tem a oportunidade ímpar de desenvolver uma abordagem própria e sofisticada para essas questões, aprendendo com experiências internacionais mas também reconhecendo as especificidades de seu mercado esportivo. O caminho exige diálogo constante entre juristas, economistas, gestores esportivos e autoridades regulatórias, sempre com o objetivo final de preservar o que há de mais valioso no esporte: sua capacidade de emocionar torcedores e praticantes através da genuína competição em campo.

As discussões recentes sobre a possibilidade de empresas de apostas esportivas transmitirem jogos de futebol no Brasil ganharam destaque após a aprovação da Lei 14.790/2023, popularmente conhecida como “Lei Globo”. A legislação, regulamentada em 2024, estabeleceu um marco legal para as apostas esportivas no país, mas incluiu restrições controversas que proíbem explicitamente as bookmakers de adquirirem direitos de transmissão de partidas. Essa medida, defendida por emissoras tradicionais como a Globo, foi justificada como forma de evitar conflitos de interesse – já que as casas de apostas teriam incentivo para influenciar narrativas das partidas visando lucros nas odds. No entanto, a lei cristalizou um monopólio midiático, impedindo a inovação e a competição no mercado de transmissões. Em 2024, o CADE abriu discussão sobre o tema, questionando se a restrição caracterizaria prática anticompetitiva, enquanto clubes menores defendem que a entrada dessas empresas poderia injetar novos recursos no setor. A tensão entre regulamentação ética e livre concorrência segue como um dos debates mais acalorados no direito esportivo brasileiro.

Um outro mecanismo utilizado pelo futebol nacional refere a criação da Libra, liga formada por clubes das séries A e B do Campeonato Brasileiro para gerir coletivamente direitos comerciais e de transmissão, replica no cenário nacional dilemas já enfrentados na Europa sobre os limites da colaboração entre clubes concorrentes. Enquanto a negociação coletiva pode trazer eficiências e equilíbrio competitivo, também apresenta riscos de práticas colusórias que exigem constante monitoramento.

O que emerge dessa análise é a compreensão de que o direito concorrencial aplicado ao esporte não pode ser mera transposição de princípios gerais, mas demanda construção jurisprudencial específica, capaz de apreender as nuances de um setor onde a cooperação é condição de existência, mas onde também pulsam dinâmicas de mercado cada vez mais complexas. À medida que os valores envolvidos no esporte profissional continuam a crescer exponencialmente, com cifras bilionárias em direitos de transmissão, patrocínios e transferência de atletas, aumenta correspondentemente a responsabilidade das autoridades antitruste em garantir que essa evolução ocorra em ambiente competitivo saudável, onde inovação e tradição possam coexistir de forma equilibrada.

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Pedro Carvalho
Advogado e Professor Universitário com mestrado em Direito pela UFPE. Especialista em Contratos pela Harvard University e em Negociação pela University of Michigan. Possui certificações em Sustentabilidade, Governança e Compliance pela Fundação Getúlio Vargas. É docente em instituições de prestígio como UNICAP, IBMEC e PUCMinas.

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