Aplicação de Alíquotas Progressivas nos Impostos Reais e o Ideal de Progressividade do Sistema Tributário
Imposto é uma das espécies tributárias constante da classificação pentapartite adotada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Tem como principais características ser um tributo não vinculado [pois não se liga a nenhum serviço ou atividade específica do Estado em relação ao sujeito passivo da relação jurídica tributária] e de destinação vinculada [porquanto a renda que é arrecadada a título de imposto, não pode ser vinculada a nenhuma destinação específica, a não ser aquelas exceções expressamente previstas pela Constituição Federal de 1988].
Uma das várias classificações atribuídas pela doutrina aos impostos, é aquela que o divide entre impostos pessoais e reais. Os pessoais são aqueles ligados a algumas características do sujeito passivo, como o imposto de renda, cujo fato gerador liga-se às rendas auferidas pelo contribuinte. Já os reais, são aqueles impostos que tem fato gerador ligado a patrimônios do contribuinte ou responsável; podemos citar como exemplos destes últimos, o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, o imposto sobre transmissão causa mortis e doações (ITCMD) e o imposto sobre transmissão de imóveis (ITBI).
Uma discussão que permeia nossa Suprema Corte há alguns anos, diz respeito à aplicação do princípio da capacidade contributiva aos impostos reais. O § 1º do art. 145 da Constituição Federal prevê expressamente que referido princípio (o qual decorre do princípio da isonomia, ligado à igualdade material) aplica-se aos “impostos de caráter pessoal”, o que poderia levar a uma interpretação gramatical/literal restritiva.
1. O Código Tributário Nacional, em seu art. 5º, prevê apenas três espécies tributárias: impostos, taxas e contribuição de melhoria. Essa composição foi copiada pelo art. 145 da Constituição Federal de 1988, mas o Supremo Tribunal Federal sedimentou entendimento de que temos cinco tributos no nosso sistema tributário: impostos, taxas, contribuição de melhoria, empréstimos compulsórios e contribuições especiais.
2. CF/88: art. 145 (…). § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. [grifos nossos].
Inicialmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal foi sedimentada no sentido de entender que o princípio da capacidade contributiva não poderia ser aplicado aos impostos reais, de modo que impostos como o IPTU não poderiam ter alíquotas progressivas considerando o valor do imóvel urbano. A progressividade do IPTU só seria permitida quando da aplicação do ideal de função social da propriedade, nos termos do art. 182, § 4º, II, da Constituição Federal.
Considerando esse posicionamento adotado pelo STF, editou-se o enunciado 668 da súmula deste tribunal, no ano de 2003, onde se delimitou ser “inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana”. A ressalva contida no enunciado colacionado, diz respeito à alteração do texto originário da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 29/2000, que alterou o § 1º do art. 156 da Carta Magna, possibilitando, a partir de 2000, a adoção de alíquotas progressivas a este imposto real, afora os casos do art. 182, também da Carta Magna.
Quinze dias antes da publicação do enunciado acima, referente ao IPTU, o Supremo Tribunal Federal tinha editado o enunciado nº 656 da súmula de sua jurisprudência dominante, afirmando ser “inconstitucional a lei que estabelece alíquotas progressivas para o imposto de transmissão “inter vivos” de bens imóveis – ITBI com base no valor venal do imóvel”.
Considerando essa sequência jurisprudencial, percebe-se que a Suprema Corte Brasileira mantinha um posicionamento no sentido de aplicar uma interpretação literal ao texto do § 1º, do art. 145 da CF/88, considerando inconstitucional a aplicação da capacidade contributiva [com a previsão de alíquotas progressivas] aos impostos de caráter real.
Essa postura do Supremo começou a ser questionada, de modo que chegaram novas demandas a este tribunal superior, agora em relação ao ITCMD (imposto de transmissão causa mortis e doação, de competência estadual – art. 155, I, CF/88), onde se discutia a possibilidade de aplicar alíquotas progressivas a este tributo.
CF/88: art. 145 (…). § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. [grifos nossos].
Em 2013, o Supremo Tribunal Federal debruçou-se no julgamento do Recurso Extraordinário nº 562045/RS, analisando a discussão sobre a constitucionalidade do art. 18 da Lei Estadual nº 8.821/1989, do Rio Grande do Sul, que previu a aplicação de alíquotas progressivas ao ITCMD. Neste momento o STF fixou a tese jurídica de que o princípio da capacidade contributiva pode ser aplicado tanto para impostos pessoais como para impostos reais.
Diferentemente do que foi defendido em momentos anteriores no âmbito deste tribunal superior, passou-se a possibilitar a aplicação do sistema progressivo de alíquotas em impostos de caráter real.
Diante dessa mudança de paradigma jurisprudencial, surgem alguns questionamentos: a) pode-se afirmar que o princípio da capacidade contributiva aplica-se hoje a todos os tributos de caráter real?; b) como fica a situação do ITBI? Seria possível aplicar o princípio da capacidade contributiva a este tributo real?
Como professora de direito tributário, costumo sempre advertir os alunos para serem cautelosos ao responderem a estes questionamentos supra indicados.
Em relação ao ITBI não houve nenhuma decisão da Suprema Corte Brasileira modificando o entendimento esposado no enunciado nº 656 da súmula de sua jurisprudência dominante, nem houve nenhuma proposta de cancelamento do enunciado sumular referendado. Diante destas constatações, é temerário afirmar de forma categórica, que a jurisprudência nacional se posiciona indiscutivelmente pela aplicação indistinta do princípio da capacidade contributiva a todos os impostos reais, haja vista o enunciado nº 656 não ter sido modificado expressamente ou cancelado.
No entanto, como bons críticos e questionadores, não podemos aceitar de forma pacífica a manutenção de enunciados sumulares que estão completamente dissonantes da atual interpretação sistemática do texto constitucional. No momento em que o Supremo Tribunal Federal utiliza como ratio decidendi (e isso faz toda a diferença) a fundamentação jurídica de que o princípio da capacidade contributiva se aplica indistintamente a todas as espécies tributárias (impostos, taxas, contribuições de melhoria, contribuições especiais e empréstimos compulsórios), e também a impostos de caráter real, afirmando que a previsão do art. 145, § 1º, CF/88 indica apenas que se deve dar preferência à criação de impostos que tenham caráter pessoal, não havendo vedação à aplicação do princípio aos demais tipos de impostos, esta Corte dá uma amplitude aos efeitos da decisão além do caso concreto – não obstante a demanda tratar-se de uma ação de cunho inter partes, e não ser uma demanda abstrata.
O Recurso Extraordinário nº 562045/RS decidiu expressamente sobre a aplicação do princípio da capacidade contributiva ao ITCMD, mas o fundamento para se chegar a este dispositivo, nos leva, inafastavelmente, a afirmar ser possível a aplicação indistinta deste princípio a outros impostos reais, tal como o ITBI.
Note-se que esta conclusão está coadunada com ideais de justiça fiscal, porquanto a aplicação de um sistema progressivo de alíquotas na incidência de tributos busca materializar princípios como o da isonomia material, tendendo a gerar lançamentos tributários com valores mais condizentes com a condição real que cada contribuinte tem de arcar com os ônus decorrentes dessas receitas derivadas de Estado.