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Vamos falar de transfer pricing? Em português, “preços de transferência”.

Começando pelo básico, vamos primeiro ao epicentro da fundação da inteligência moderna: Wikipedia. 

“Por preço de transferência entende-se o valor cobrado por uma empresa na venda ou transferência de bens, serviços ou propriedade intangível, a empresa a ela relacionada. Tratando-se de preços que não se negociaram em um mercado livre e aberto, podem eles se desviar [sic.] daqueles que teriam sido acertados entre parceiros comerciais não relacionados, em transações comparáveis nas mesmas circunstâncias.”

Excelente! Seria difícil resumir em menos palavras (talvez tenha a ver com o fato de a bibliografia da página indicar o Schoueri). Esse parágrafo pode ser inclusive quebrado em menores partes donde extrairíamos alguns dos conceitos fundamentais das regras de preços de transferência, como as (i) transações internacionais, (ii) partes relacionadas, e o famoso (iii) Arm’s Length principle – mas isso pode ficar cansativo, tedioso e provavelmente já está mais bem explicado em vários outros recintos da internet. O que importa saber por enquanto é que se trata de um conceito internacionalizado focado na correta divisão da tributação do lucro entre jurisdições.

Dessa forma, quando a empresa X (residente num paraíso fiscal que não tributa a renda) superfatura suas notas de serviços para a sua irmã Y na Bélgica (com imposto de até 31.75%), essas despesas não serão dedutíveis no país das cervejas, por incidência das regras de transfer pricing. Isso evita o escape de lucro tributável.

Por sinal, quando tratando de temas entre nações, acho válido discutirmos com a terminologia em “língua franca” (Inglês – até onde pude acompanhar). Assim, ‘preços de transferência’ será ‘transfer pricing’ (“TP”) e ‘Arm’s Length principle’ continuará sendo ‘arm’s length principle’. Outras nomenclaturas poderão aparecer no meio do caminho.

Pois bem. Por que TP? 

Como visto no exemplo acima, as regras de transfer pricing estão enraizadas na base conceitual do que se poderia conceber por justiça fiscal em tributação internacional. A ideia básica de “justiça” povoa facilmente nossas mentes, mas dificilmente pode ser traduzida objetivamente – sobretudo no que diz respeito à tributação. O filósofo alemão Immanuel Kant e seu Imperativo Categórico deram a primeira mordida no assunto ao enfrentar a materialização da justiça. Kant acreditava que poderia haver um teste/método formal para validar os princípios e ações morais como ‘justificáveis’, quando universalmente aplicáveis: o que é certo ou errado para um, deve ser também para outro, quando diante de uma situação semelhante. Maravilhoso, não é? A questão aqui é: como traspor isso para o telefone-sem-fio que é o direito tributário internacional?

A OCDE já dá o pacote completo: Regras TP + BEPS + AEoI (CRS / CbCR etc)

Essas siglas certamente já ecoaram nos ouvidos brasileiros em algum momento. Sem entrar, pelo momento, no mérito de cada uma entendamos que a solução proposta pela OCDE é: regramento único + comunicação aberta. Se todos seguem o mesmo livro e sabem de tudo ao mesmo tempo, não tem confusão. Simples? Não. Há uma série de problemas legais envolvidos aqui, incluindo a publicidade de informações, privacidade de dados e as diversas adaptações no sistema jurídico para receber alterações feitas por um órgão “supranacional” que é a OCDE.

Comecei pela resposta, não foi? 

Permita-me recolocar o problema. Uma das maiores questões em torno de TP é alinhar o turbilhão das regras e interpretações de cada país com (i) a realidade dos fatos e (ii) os ajustes fiscais correspondentes do outro país, especialmente permitindo que o lucro já tributado por uma jurisdição não seja alcançado pela outra. O primeiro ponto é uma questão mais conceitual de eficácia das normas tributárias em si: “são elas suficientes para garantir a divisão justa do lucro tributável entre as jurisdições envolvidas?”. O segundo ponto diz à proteção ao contribuinte, que (idealmente) não deve ver seu lucro submetido à dupla tributação.

 1. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pre%C3%A7o_de_transfer%C3%AAncia. Acessado em 30 de Outubro de 2021.
 2. O significado das siglas segue: Base Erosion And Profit Shifting + Automatic Exchange of Information (Common Reporting Standard + Country-by-Country Report etc).

Nessa altura, é normal pensar: “mas temos os tratados de bitributação exatamente para isso (!), para abordar entre outras coisas os ajustes de preços de transferência. Não é?” 

É. Para todas as relações fáceis onde ambos os países usam as mesmas réguas, esquadros e medidas…. e moedas. Os dois pontos estão um tanto relacionados e vão dar muito o que escrever. Olhemos agora para o Brasil no meio desse mar de incertezas.

As regras de TP no Brasil foram conceitualmente introduzidas em 1996 pela Lei n. 9.430/96 (a “Lei BR TP”) e se alicerçam em (i) margens fixas de porto seguro ou “Safe Harbour” e (ii) liberdade de seleção de métodos. Assim, no Brasil, o controle de super ou subfaturamento se dá pela determinação de preços de comparação máximos para as importações e mínimos para as exportações. Esses são os chamados “preços parâmetros”, que são então contrastados com os preços praticados pelo contribuinte. Isso quer dizer que, enquanto a empresa consiga demonstrar que (pelo método que escolheu) permaneceu dentro (com um delta de até 5%) dos parâmetros pré-fixados pelo governo brasileiro, está tudo certo. Simples e prático.

Mudando o foco agora para a Europa, vemos que a aplicação das regras TP requer muito mais cautela e substância quando cotejado com o Brasil. Em regra, requer-se um verdadeiro estudo mercadológico de margens e empresas / grupos comparáveis antes de se definir como que as operações por entre as empresas associadas devem seguir. Não cabe ao governo dizer como o mercado funciona; cabe ao mercado. Tudo se inicia com uma análise do produto e da empresa em questão para então prosseguir à caça de comparáveis – o que normalmente acontece pela nomenclatura comum do produto ou da atividade da empresa (quando estamos falando de manufatura ou comercio) ou pelos parâmetros do contrato de royalties / juros (quando for uma análise financeira). Achadas as empresas e operações, olha-se os números, despesas margens e tudo o mais para se alcançar um raio de margens aceitáveis… para aquele ano.

Apesar de mais longa, cara e dolorosa, essa análise de transfer pricing é o método mais seguro de se garantir a aplicação do Arm’s Length principle como defendido pela OCDE. E por quê? Bem, em primeiro lugar, porque é o que a maioria dos outros países fazem lá fora e essa paridade de métodos traz mais segurança jurídica e quebra um tanto o telefone-sem-fio entre dois métodos diferentes (difícil relevar o valor de paridade de conduta). Em segundo lugar pelo mérito generalista do método brasileiro. A grosso exemplo temos o período ímpar da pandemia que exigiu negociações extraordinárias a preços e margens extraordinárias – algo de difícil enquadramento nas margens engessadas brasileiras.

E agora?

Em 2018, especialistas da OCDE e representantes da RFB iniciaram um estudo colaborativo sobre as Regras de TP BR intitulado “Preços de Transferência no Brasil: Convergência para o Padrão OCDE. O objetivo era analisar a eficácia das regras TP BR e desenvolver uma estratégia de alinhamento para o Brasil antes que o país pudesse aderir oficialmente à OCDE. Os resultados deste estudo revelam que, embora simples, a natureza imprecisa das Regras BR TP cria um risco de erosão de base e de deslocamento de lucro (BEPS). Ipsis litteris:

“A análise do preço de transferência no Brasil não se baseia em uma análise de comparabilidade completa, que inclui a identificação apropriada das relações comerciais ou financeiras e a consideração cuidadosa das circunstâncias economicamente relevantes do contribuinte, das funções desempenhadas, dos ativos utilizados e dos riscos assumidos, e de outros fatores de comparabilidade. O conceito de delineamento preciso da transação estabelecida nas Diretrizes da OCDE sobre preços de transferência também.

3. Para ser suficientemente rigoroso, há de se reconhecer que existem métodos formais de transfer pricing no Brasil que vão além das meras margens fixas.  CPL – Método do Custo de Produção mais Lucro: com base no custo de produção do bem em sua origem (no exterior) e PVEx – Método do Preço de Venda nas Exportações: baseado na comparação de preços independentes (exportação a terceiros) são dois exemplos que reclamam o contribuinte olhar para empresas e grupos terceiros e comparar os preços praticados. Todavia esses métodos (i) não são utilizados na prática, (ii) a RFB não está preparada para averiguar a veracidade das informações dividias, pois não tem ainda acesso às bases de dados internacionais, (iii) tampouco tem o contribuinte.
4. Disponível online em: https://www.oecd.org/tax/transfer-pricing/transfer-pricing-in-brazil-towards-convergence-with-the-oecd-standard.htm. Acessado em 29/10/2021.

não é encontrado na estrutura de preços de transferência do Brasil, levando potencialmente à subtributação e criando significativos riscos de BEPS.”

No relatório, a OCDE ressalta com mais descritividade os pontos de contraste entre o método brasileiro e os padrões internacionais aos quais precisaria se adequar para entrar oficialmente no “clube” da cooperação e desenvolvimento econômico (OCDE) – hoje, o Brasil é simplesmente um ‘observador interessado’.

Curioso lembrar que embora o Brasil ainda não seja membro da OCDE, a Lei BR TP foi inspirada pelas diretrizes da OCDE; aquelas que estavam em vigor na época em que a Lei BR TP foi adotada (conforme observado na exposição de motivos da Lei BR TP). Entretanto, ao contrário de sua inspiração, a legislação BR TP evoluiu pouco desde sua introdução e a simplicidade do sistema brasileiro de preços de transferência é frequentemente contrabalançada por sua imprecisão que, por vezes, pode culminar em uma perda de receita tributária. Essas fraquezas são principalmente devido à ausência de considerações especiais para transações mais complexas (por exemplo, transações envolvendo o uso ou transferência de intangíveis, transações de serviços intragrupo e transações que incluem reestruturação de negócios, entre outras).

Na medida que o Brasil ganha espaço no cenário internacional, importa que o seu arcabouço tributário esteja suficientemente maduro para comportar o aumento de complexidade exigido pelas transações que quer atrair. Não é?

 5. OCDE. Preços de Transferência No Brasil: Rumo à Convergência para o Padrão OCDE. Pag. 15. Disponível online em: https://www.oecd.org/tax/transfer-pricing/transfer-pricing-in-brazil-towards-convergence-with-the-oecd-standard.htm. Acessado em 29/10/2021.

Colunista

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Tulio Lira
Advogado no Brasil, Nova Iorque e Portugal, especialista em Direito Tributário e LL.M em Direito tributário internacional pela Universidade de Nova Iorque. Fundador do DeLira Consulting, embaixador da TaxModel International e Head dos países de língua Portuguesa da A-Law Advocaten. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário.

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