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Caminhos possíveis para um justo processo em tempo de hipersegurança e tecnologia

 

“Caminhos possíveis para um justo processo em tempo de hipersegurança e tecnologia”[1]

 

 

Fauzi Hassan Choukr[2]

 

 

 

  1. Hipersegurança: O mundo assombrado por seus demônios

 

 

Pode-se iniciar afirmando que, no limiar de um novo milênio, amparado por um tecnologia sem precedentes em seu processo evolutivo e renovador, cuja utilização prática coloca em xeque padrões éticos, a espécie humana continua a temer demônios que são essencialmente por ela mesma criados em suas relações sociais, buscando no mundo jurídico soluções contingenciais para problemas que são, antes de tudo, contextuais.

 

Das assombrações modernas, três são particularmente evidentes nesse ambiente: o narcotráfico[3], a corrupção e o terrorismo (interno e internacional). Todas têm em comum um ponto, que é perfil organizado dessas atividades, aumentando assim o potencial assustador de suas consequências, o que, por outro lado, é legitimador do aumento da sensação de que algo precisa ser feito.[4]

 

A construção civilizatória, aqui entendida como a progressiva consciência e implementação de direitos fundamentais como expressão máxima da alteridade, extremamente delicada na sua composição e funcionamento, é colocada em xeque quando confrontada com o discurso da necessidade de enfrentar-se o caos, este normalmente identificado como a exteriorização da desordem,[5] capaz de levar à ruptura definitiva do tecido social.

 

Quando todos esses medos são projetados sobre a sociedade de forma intermitente e o discurso do caos se propaga, a perda dos valores culturais (que já com sérias dificuldades servem de base para o contexto da normalidade) é a primeira grande baixa dessa guerra. Aliás, a nomenclatura militar aqui não aparece por acaso. Muito ao contrário, ela está na mensagem subliminar que incorpora a polarização amigo x inimigo, conhecida na teoria política porque justifica a manutenção do poder a qualquer custo, num conflito substancialmente sem regras.

 

Com efeito, à dicotomia amigo x inimigo,[6] que é própria das relações de poder de cunho autoritário, se contrapõe a dialética entre adversários, inerente ao jogo democrático, onde regras pré-acordadas servem de limites ao exercício selvagem do poder e que no discurso emergencial se esvaziam ou são sacrificadas como fossem delas paridas os demônios contemporâneos.

 

Nesse ponto o discurso do caos está atrelado normalmente ao da crise, e sempre apresenta um tom dramático sendo, por essa razão, tendencialmente inclinado para o autoritarismo, fortemente amparado em estruturas de vigilância política de segurança [ que ] é uma política de conhecimento, ou seja, uma forma de instituir um regime de verdade ao determinar o que temer (HUYSMANS, 2006), e, nas práticas contemporâneas, a utilização de tecnologias computacionais tem sido uma fonte de autoridade e objetividade técnica (MARTIN, 2018).”[7]

 

O que existe de intrigante em todo esse quadro é que ele nada tem de novo. Os medos do imaginário coletivo, as alegações de desintegração social dada a quebra do ordenamento, não apenas jurídico, mas social como um todo, incluindo-se aí os outros aspectos como, v.g,, os religiosos, foram apenas substituídos por outros mais contemporâneos.

 

Nesse sentido, um paralelo histórico – limitado a certos pontos – pode ser tentado. Numa das mais instigantes obras sobre o assunto, Delumeau discorre sobre as causas de temor da sociedade ocidental por quase cinco séculos,[8] desde as atividades heréticas até o papel atemorizante que mulher causava nas estruturas sociais dada leituras canhestras de textos bíblicos. Impressionante é a forma como o processo repressivo (entenda-se o processo penal em si mesmo) foi empregado no enfrentamento daqueles temores e a similitude com o momento atual.[9]

 

A aumentar ainda mais a identificação de ambas as situações, a transformação do regime político e econômico é outro ponto a ser salientado. Como apontado no texto do sociólogo francês, a repressão àquela forma de  comportamento contrário ao direito e à moral (evita-se assim o emprego da palavra criminalidade) fez-se acompanhar da mudança de paradigma político, com a assunção do absolutismo como forma de governo largamente disseminada.[10]

Certo é que não se pode comparar a realidade fenomenológica de uma atividade terrorista, com suas baixas humanas concretas, com a ideia de um mal metafísico encarnado em atividades supostamente heréticas. Com efeito, Riccio emprega a mesma comparação com as reservas devidas, assinalando que anche se nella nostra legislazione de emergenza si rivengono collimanze o segnali regressivi, essi rapresentano l’evidente sintomo de una involuzione del sistema penale, ma non sono sufficienti ad avvalorare la denunzia di un “ritorno al medioevo”, e, completando apoiado em Bobbio, conclui poder tratar-se a comparação de uma metáfora.[11]

 

No entanto, é possível comparar a circunstância de, em ambas as situações, ser o aparelho repressivo chamado para fornecer uma resposta retórica e superficial ao imaginário social. Em outras palavras, a função simbólica de repressão outrora empregada, é mais uma vez invocada.

 

Nesse sentido, é necessário frisar que, embora não exclusivamente, a lotta alla criminalità organizzata si concretizza nel momento della repressione penale e, quindi necessariamente se svolge attraverso il processo,[12] e que o modelo processual empregado nesse quadrante em quase nada difere daquele engendrado para a luta contra os outros medos antes mencionados. A intolerância religiosa e verdadeira ignorância que sustentaram a tortura e o desrespeito ao ser humano naquela forma de persecução hoje se apresentam disfarçadas da necessidade de uma repressão mais eficaz aos delitos aludidos nos parágrafos iniciais.

 

  1. Tecnopoder: vigilância e punição

 

 

A alegada eficácia se sustenta no aparato tecnológico por meio de certificações algorítmicas, cuja construção se dá, paulatinamente, de forma “docilizada” mediante atrativos de mercado e, portanto, inseridas num determinado modelo econômico, estratégia sedutora pela qual a vida cotidiana passa a ser monitorada em níveis inimagináveis há poucas décadas

 

Assim, “Os atuais dispositivos e redes de comunicação digital funcionam como um dispositivo de  inscrição e memória : não apenas enviamos e recebemos mensagens, não apenas buscamos e produzimos informação, como também, ao fazer tudo isso, deixamos automaticamente, e não raro involuntariamente, rastros de nossa presença e de nossa ação . Tais rastros são monitorados e capturados, nutrindo bancos de dados complexos que tratam tais informações para extrair categorias supraindividuais ou interindividuais segundo parâmetros de afinidade e similaridade entre os elementos, permitindo traçar perfis de consumo, de interesse, de comportamento, de competências etc. Como se viu nos exemplos apresentados, tais perfis irão atuar ou diferenciar indivíduos ou grupos com base num suposto saber que conteriam.” [13]

 

 

E, do espaço da lex mercatoria e do canto da sereia de suas virtudes, migra-se naturalmente para o espaço da vigilância institucionalizada em que esse “saber tecnológico” produzido  a priori, (re/des)constrói “verdades” : a supremacia do tecnopoder.

 

Assim, a predição, que não é exatamente uma estratégia nova no ambiente de tomada de decisões, inclusive as públicas, “has been differentially incorporated within apparatuses of discipline and biopower Intelligence, counter-terrorism, policing and counterinsurgency have been transformed by the promise of big data and predictive analytics to uncover unexpected patterns and pinpoint potentially suspect ‘needles’.”[14]

 

Essa predição sustenta toda uma construção de segurança marcada pela antecipação, dado que “O caráter antecipatório do saber algorítmico é notável em seus efeitos de poder. A evidência “supostamente revelada pela análise e correlação  de dados não tem pretensão de ser uma prova ex post facto, mas um meio de legitimação para agir antes do fato[15] . A questão central para sociedades heterogêneas e com amplos espaços de seletividade social é que essa predição tem potencial impacto sobre camadas fragilizadas da população[16].

 

Esse ambiente de excepcionalidade – ou emergencial -, ao que se contraporia aquele da “normalidade” não apresenta um caráter de cultura complementar em face dos padrões desta última, antes, os destroem ou, ao menos, dificulta sobremaneira a sedimentação desses valores na vida social.

 

Sobretudo isso se dá porque o fundo ético da cultura emergencial é substancialmente distinto dos padrões de normalidade, assentado que está na produção de resultados e não no respeito aos princípios, acabando por refletir num conceito de eficiência que lhe é bastante peculiar, baseado que está em supostos resultados pragmáticos, de resto dificilmente comprovados.

 

Se projetados para o espaço jurídico do processo e, em particular, do processo penal A mescla de dois substratos tão distintos pode ser encontrada em muitas das vertentes da técnica e da prática processuais. Contudo, uma delas, pela sua fundamental ubiquação na ciência do processo, merece destaque à parte: a reconstrução da verdade. Se a “verdade” já está predita, o espaço processual corre o risco de servir como instrumento cênico para a tecnologia

 

  1. Um rio sem margens: Um “tecno-devido processo” para a hipersegurança tecnológica?

 

 

O tempo do devido ou justo processo é o tempo do Humano. O tempo de hipersegurança tecnológica não o é. Há, na essência, uma colisão física e espiritual entre ambos. A construção processual se desenvolve no ambiente do  theatron ou, etimilogicamente, “o lugar para olhar”. Ali está, em determinado sentido, mais que a “verdade” e a “realidade” que, no confronto com a tecnologia preditiva encontra-se defasada pois a “verdade” já está dada e a “realidade”, construída.

 

Fica em aberto enfrentar a construção de um “tecno-devido processo” e seus mecanismos de controle. Instrumentos como a cadeia de custódia digital, por exemplo, têm um papel crucial nessa construção e outros podem ser concebidos com a mesma finalidade de contenção, sobretudo os que atrelem o “tecno devido-processo” a mecanismos de obrigatória transparência e auditabilidade das informações, estas construídas a partir de softwares preferentemente públicos e acessíveis e que não contenham vieses pré-seletivos de segmentos sociais fragilizados.[17]

 

Mas o dilema é muito mais amplo  e a questão que se coloca é se a construção Humana do devido processo pode, realmente, ser um contraponto existencial ao movimento de hipersegurança tecnológica de modo a que o processo não se torne, como já afirmado, numa opera bufa, com seus principais atores desempenhando papéis burlescos nos quais políticas de segurança lastreadas em alegado saber preditivo sejam capazes de definir o desfecho de antemão.

 

Notas e Referências:

[1] Versão brasileiro do texto homônimo produzido para a obra coletiva “Cheminer dans les systèmes et les espaces juridiques – Mélanges ouverts en l’honneur de Mireille Delmas-Marty” org. Geneviève Giudicelli-Delage, Stefano Manacorda, Juliette Tricot, Kathia Martin-Chenut, Camila Perruso, Hugo Pascal, Hubert Bouchet.Paris: Mare & Martin. No prelo

[2] Pós- Doutorado pela Universidade de Coimbra (2012/2013). Doutorado (1999) e Mestrado (1994) em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo.Especializado em Direitos Humanos pela Universidade de Oxford (New College; 1996) e em Direito Processual Penal pela Universidade Castilla la Mancha (2007). Coordenador do PPGD da Facamp – Faculdades de Campinas.Promotor de Justiça no Estado de São Paulo (desde 1989)

[3] GOODE, Erich. ‘The American Drug Panic of the 1980s: Social Construction or Objective Threat?”, in Violance, Agression and Terrorism.

[4] SEDERBERG Peter C. (Terrorist Myths – Ilusion, Rethoric and Reality, p. 23), the phenomenon of terrorism, however defined, generally evokes strong emotional responses in victims, onlookers, and, inevitably, analysts.

[5]LAFER,Celso. “A Dialética da Ordem e da Desordem na Obra de Antonio Cândido”, in Ensaios Liberais, pp. 135 e seguintes.

[6] BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia – Uma Defesa das Regras do Jogo. Para seu emprego no sistema repressivo na forma aqui tratada, CAHN, Olivier. «Cet ennemi intérieur, nous devons le combattre». Le dispositif antiterroriste français, une manifestation du droit pénal de l’ennemi. Archives de politique criminelle, n. 1, p. 89-121, 2016.

[7] LIMA, Thallita Gabriele Lopes; Rocha de Siqueira, Isabel (Orientadora); Viana, Manuela Trindade (Co-orientadora). Punição e desresponsabilização na prevenção de possíveis futuros perigosos: multitude de dados, algoritmos e a construção de perfis antecipados de “terroristas” na França. Rio de Janeiro, 2020. 82 p. Dissertação de Mestrado – Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

[8] DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente – 1300-1800, especialmente a segunda parte.

[9] op. cit., p. 357.

[10] Não é diferente do que hoje ocorre se for levado em conta o decantado neoliberalismo atrelado à globalização econômica, estes surgidos diante do alegado esgotamento do modelo de Estado assistencial ou puramente liberal e do comprovado fracasso do Estado socialista na forma como acabou sendo colocado em prática.

[11] RICCIO, Guiseppe. Polticia Penale dell’ Emergenza e Costituzione, p. 50.

[12] Grevi, Vittorio. “Nuovo Codice di Procedura Penale e Processi di Criminalità Organizzata: Un Primo Bilancio”, in Proceso Penale e Criminalità Organizzata, p. 3

[13]  BRUNO, Fernanda. Rastrear, classificar, performar. Ciência e Cultura, v. 68, n. 1, p. 34-38, 2016.

[14] ARADAU, Claudia; BLANKE, Tobias. Politics of prediction: Security and the time/space of governmentality in the age of big data. European Journal of Social Theory, v. 20, n. 3, p. 373-391, 2017.

[15] BRUNO,op. cit., p.34

[16] BIGO, Didier; WALKER, Rob. Global-Terrorism: From war to widespread surveillance. In: Warlike outlines of the Securitarian State. Life control and the Exclusion of people. Challenge-OSPDH-Universitat de Barcelona, 2009. p. 9-26.

[17] ZOUAVE, Erik T.; MARQUENIE, Thomas. An inconvenient truth: algorithmic transparency & accountability in criminal intelligence profiling. In: 2017 European Intelligence and Security Informatics Conference (EISIC). IEEE, 2017. p. 17-23.

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Fauzi H. Choukr
Pós- Doutorado pela Universidade de Coimbra (2012/2013). Doutorado (1999) e Mestrado (1994) em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo.Especializado em Direitos Humanos pela Universidade de Oxford (New College; 1996) e em Direito Processual Penal pela Universidade Castilla la Mancha (2007). Coordenador do PPGD da Facamp - Faculdades de Campinas.Promotor de Justiça no Estado de São Paulo (desde 1989).

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