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Com quantos paus se faz uma política de defesa da concorrência?

Como é de conhecimento geral, o controle de condutas está dividido em dois eixos: a persecução a (i) condutas colusivas e (ii) unilaterais. Quanto ao primeiro eixo, destaca-se a prática de cartel, considerada a mais grave das infrações à ordem econômica, justamente porque é muito difícil (quase impossível) que surjam efeitos pró-competitivos decorrentes da conduta.

Em um ambiente competitivo, espera-se que a competição pela atenção do consumidor se dê através de melhores serviços, menores preços, investimento em P&D, publicidade e qualquer outra estratégia econômica que vise à captação daquela parcela de indivíduos que compõe a estrutura da demanda.

Contudo, quando tais agentes de mercado se reúnem para fixar variáveis concorrencialmente relevantes, o estímulo à competição desaparece. Consequentemente, o cartelista se apropria indevidamente do excedente do consumidor, além de excluir tantos outros que não conseguem adquirir o produto ou serviço em razão do sobrepreço[1] aplicado pelo agente infrator.

Em suma, a literatura aponta que os cartéis estão associados a três tipos de ineficiências econômicas: alocativa, produtiva e dinâmica[2], razão pela qual é completamente justificável que as autoridades empreguem recursos – humanos e financeiros – no combate à prática.

Nada obstante, há todo um horizonte de condutas unilaterais que igualmente carece de atenção e que, em certas hipóteses, pode ser até mais danoso que um cartel ainda que, à primeira vista, não pareça[3].

No Brasil, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional – IBRAC, 135 (cento e trinta e cinco) casos de condutas unilaterais foram julgados na vigência da Lei nº 12.529/11[4]. Desse total, 45 (quarenta e cinco) casos foram arquivados sem condenação, 69 (sessenta e nove) foram objeto de TCC e, por fim, 21 (vinte e um) episódios foram finalizados mediante condenação[5].

O desafio de construir e solidificar uma política de combate de condutas unilaterais é, pelas mais variadas razões, digno de nota. Primeiro porque condutas unilaterais, ainda que restrinjam a concorrência, podem ter justificativas econômicas razoáveis, além de produzirem eficiências que, ao menos em tese, incrementam o bem-estar do consumidor. Dessa forma, a natureza de uma infração unilateral difere da do cartel, o que modifica o standard e o ônus de prova.

Ademais, é necessário, como dito acima, que um corpo técnico, no âmbito da Superintendência-Geral do Cade (“SG/CADE”) seja alocado especificamente para analisar e instruir casos de conduta unilateral.

Assim, há um evidente trade-off entre analisar um acordo de exclusividade e/ou recusar de contratar e examinar um Acordo de Leniência ou um cartel em procedimentos de contratação pública.

Atenta a esta questão, a SG/CADE, desde maio/2022, está subdividida em 11 Coordenações-Gerais de Análise Antitruste (“CGAAs”), sendo que a décima primeira tem o fim específico de analisar condutas unilaterais.

Certamente, um núcleo específico para este eixo é bem-vindo, pois confere celeridade e a expectativa de análise direcionada e pormenorizada do objeto da investigação.

Sobre a importância do que se discute, na 205ª Sessão de Julgamento, por maioria, houve a condenação das empresas Air BP, BR Distribuidora (atual Vibra), Raízen e a Concessionária do Aeroporto Internacional de Guarulhos S.A., por práticas anticompetitivas no mercado de distribuição de combustíveis de aviação no aeroporto de Guarulhos[6].

Em síntese, tratou-se de Processo Administrativo com vistas a apurar duas condutas: (i) “recusa de contratação, por parte da Raízen, de cessão de espaço de sua base de distribuição no entorno da refinaria de Paulínia (conduta 1)” e “imposição de barreiras artificiais à entrada e ao acesso à infraestrutura de abastecimento de aeronaves no aeroporto de Guarulhos (conduta 2)[7]”.

No bojo do julgamento, conforme certidão anexada aos autos em 18.11.2022, o Conselheiro-Relator Luiz Hoffmann votou pelo arquivamento em relação às duas condutas. Seu voto foi seguido pela Conselheira Lenisa Prado.

A divergência foi instaurada pelo Conselheiro Luis Braido, que entendeu haver infração à ordem econômica na 2ª conduta investigada. Seu posicionamento foi seguido pelos Conselheiros Gustavo Augusto, Victor Fernandes e Sérgio Ravagnani.

Sem adentrar no mérito do acerto da decisão, o aprofundamento do debate e a intensificação das discussões referente a condutas unilaterais é importantíssimo. Isso porque, somente dessa forma é que será construída uma jurisprudência sólida em torno das mais variadas formas pelas quais uma conduta unilateral pode se caracterizar como lesiva à dinâmica de competição.

Em interessante texto publicado no Conjur, Ricardo Inglez de Souza aponta que “há outras infrações à ordem econômica praticadas por empresas com muito poder de mercado […] que podem causar tanto dano aos cidadãos quanto o cartel”[8].

Caminhando para conclusão, evidente que uma política de defesa da concorrência sólida e robusta só é feita com igual atenção aos dois eixos que compõem o controle de condutas. Do contrário, abre-se um imenso ponto cego para qualquer autoridade de defesa da concorrência, que certamente será aproveitado por agentes interessados em distorcer o processo de competição.

Como visto, a ideia de que a persecução a carteis merece protagonismo e o enfrentamento a condutas unilaterais o papel de coadjuvante é equivocada. Felizmente, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e operadores do direito da concorrência rechaçam esta visão.

De todo modo, pelas dificuldades não exaustivamente indicadas acima, há muito trabalho a ser feito. O resultado, contudo, compensa: (i) a competição se dá por mérito, (ii) destacam-se as empresas mais eficientes e dotadas de maiores vantagens competitivas e (iii) ganha o consumidor através de melhores serviços e/ou menores preços.

 

Notas e Referências:

[1] Segundo estudos empíricos, o sobrepreço médio em relação ao preço competitivo está na faixa de 15% a 20%. Para aprofundamento, ver: OECD. Hard core cartels: recent progress and challenges ahead. Disponível em: https://read.oecd-ilibrary.org/governance/hard-core-cartels_9789264101258-en#page4

[2] Para maiores detalhamentos, ver: MARTINEZ. Repressão a cartéis: interface entre Direito Administrativo e Direito Penal. 1ª ed. São Paulo: Singular, 2013, p. 38 – 45.

[3] Segundo fala do Presidente do Cade Alexandre Cordeiro. Ver: https://www.conjur.com.br/2021-dez-07/conduta-unilateral-pior-cartel-concorrencia

[4] IBRAC. Relatório do Trabalho de Mapeamento de Decisões em Condutas Unilaterais.

[5] Id. Ibid.

[6] Processo Administrativo nº 08700.001831/2014-27

[7] Nos termos do voto do Conselheiro Victor Fernandes, a conduta 2 seria uma “recusa construtiva de contratar”, hipótese em que “a empresa ou as empresas dominantes buscam fazer com que os termos de negociação se tornem excessivamente objetivamente desrazoáveis, de modo a naturalmente afastar a negociação, ainda que aquelas empresas não assumam expressamente estarem praticando uma recusa”. Maiores aprofundamentos no voto-vogal do Conselheiro Victor Fernandes. SEI nº 1150946

[8] SOUZA, Ricardo Inglez. Por uma data para se defender a livre concorrência. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-out-08/inglez-souza-data-defender-livre-concorrencia

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Matheus Carvalho
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (FDR/UFPE). Membro da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica (OAB/SP). Pesquisador no Grupo de Pesquisa em Direito Econômico e Concorrencial (GPEC/IDP) e no Núcleo de Estudos em Concorrência e Sociedade (NECSO/USP). Advogado.

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