Culpa consciente e dolo eventual
Sabe-se que o Brasil, consoante disposto no art. 18, I, do Código Penal, adotou a teoria da vontade, ou seja, para que exista dolo é necessária a comprovação de que o agente possuía consciência e vontade de produzir o resultado (dolo direto), ou este agente aceitou o risco de produzir o resultado (dolo eventual) (ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Manual de Direito Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 112-113).
Para diferenciação de ambos os institutos, pode-se dizer que para a caracterização do dolo eventual, é que preciso que o agente, ainda que possua previsão do resultado, assuma o risco de produzi-lo; enquanto na culpa consciente, embora se tenha previsão acerca do resultado, o agente acredita que tal resultado não acontecerá. Contudo, a tarefa atribuída ao julgador de decidir se o agente atuou com dolo eventual ou culpa consciente enseja acalorada discussão doutrinária e jurisprudencial, originando às teorias volitiva e cognitiva sobre o dolo.
Para a jurisprudência dominante, em situações cujo perigo à vida da vítima foi criado conscientemente pelo autor, a análise sobre o dolo de homicídio depende da constatação de que o autor se resignou com o resultado ou se confiou na sua não ocorrência de forma séria.
As teorias mais contemporâneas sobre o dolo defendem uma abordagem “normativa” da vontade, buscando estabelecer critérios gerais quanto à capacidade do agente de prever o risco do resultado prejudicial causado conscientemente por ele. Segundo a doutrina mais conceituada, o agente incorre em dolo ao criar um risco que fundamentaria a intenção de produzir o resultado, caso desejasse fazê-lo, ao realizar uma ação que seria um meio adequado para alcançar o resultado.
Segundo os ensinamentos de Ingeborg Puppe:
[…] Se o risco que agente conscientemente cria é tão elevado e aparente que um homem racional, no seu lugar, não teria criado no caso de não aceitar o resultado, então, pelo contrário, configura mesmo um sinal de crassa indiferença em face do resultado que o agente coloque de lado a representação do risco, com o pensamento de que ficará tudo bem. Se interpretamos o comportamento do autor no sentido de fazer a censura de que ele se resignou com o resultado ou o aceitou, não nos comunicamos com ele no plano psicológico, mas sim no plano do entendimento sobre as normas. Neste plano, comunicamos uns com os outros quando nos relacionamos em contextos jurídicos, morais ou convencionais. Portanto, tratamo-nos reciprocamente como pessoas racionais, que nos seus comportamentos dão expressão às normas reconhecidas como vinculantes. Dessa perspectiva, as descrições tradicionais do dolo eventual – de que o agente se resignou com o resultado, ou de que o aceitou –, obtêm um sentido claro, ou seja, o seu sentido literal. O comportamento do agente na situação individual será então interpretado no sentido de que ele aprovou o resultado e o aceitou, ou seja, que ele expressa a norma segundo a qual este resultado está autorizado (sein darf) nas circunstâncias dadas. Podemos interpretar neste sentido o comportamento do autor que cria um risco claro, manifesto, e de tal grandeza para a ocorrência do resultado, que um agente racional, no seu lugar, somente o produziria se ele, no sentido mais literal da palavra, aprovasse o resultado. Também se deixa interpretar neste sentido a ação do autor que está seguro da ocorrência do resultado na hipótese de se obter ou procurar obter o seu objetivo de ação. Se é assim para este caso, tanto mais será para o caso do agente intencional que busca diretamente o resultado ilícito. Este é, assim, o critério comum a todas as formas de dolo. Para o agente que atua com culpa consciente, admitimos, pelo contrário, que o risco conscientemente criado de produção do resultado ainda não deve ser interpretado como sua aprovação ou aceitação (PUPPE, Ingeborg. O dolo eventual e sua prova. Trad. Wagner Marteleto Filho e Beatriz Corrêa Camargo. Artigo publicado na revista “Anatomia do Crime”, vol. 8, 2018).
Sobre essa discussão, decidiu a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, in verbis:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – HOMICÍDIOS SIMPLES – ALEGAÇÃO DEFENSIVA DE TER O RÉU AGIDO COM CULPA CONSCIENTE, E NÃO DOLO EVENTUAL – DÚVIDAS – NECESSIDADE DE SUBMISSÃO DO TEMA AO CONSELHO DE SENTENÇA – DESCLASSIFICAÇÃO INVIÁVEL – PRONÚNCIA CORROBORADA IN TOTUM – RECURSO DESPROVIDO. 1. Verificada a materialidade delitiva, bem como a preponderância de elementos probatórios de autoria, colhidos sob o crivo do contraditório, indicando a probabilidade de o réu ter praticado o crime doloso contra a vida narrado na exordial acusatória, revela-se impositiva a manutenção de sua pronúncia, nos termos do art. 413, caput, do CPP. 2. Assim, havendo dúvidas sobre a dinâmica dos fatos, sendo plausível a versão ministerial de possível assunção do risco de produção do resultado pelo agente, considerando a análise dos atos que exteriorizaram sua conduta à luz das circunstâncias do caso, não se aconselha a desclassificação, ao menos neste momento, do crime do art. 121, caput, do CP para o delito do art. 302 da Lei n.º 9.503/96. 3. Recurso não provido. V.V. O dolo eventual é caracterizado pela ação com assunção do risco de provocar resultado lesivo. A culpa consciente, por sua vez, pode ser definida como a realização da conduta com o convencimento genuíno de que o resultado antijurídico não ocorrerá. Não havendo nos autos elementos que possam demonstrar, inequivocamente, que o réu perpetrou a conduta imbuído da convicção de que o resultado lesivo ocorreria e que diante disso decidiu agir desconsiderando as consequências negativas, impõe-se a desclassificação do delito de homicídio doloso para o delito de homicídio qualificado culposo na direção de veículo automotor (302, §3º, do CTB). (TJMG – Rec em Sentido Estrito 1.0629.21.000474-9/001, Relator(a): Des.(a) Eduardo Brum , 4ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 24/04/2024, publicação da súmula em 26/04/2024).
Em virtude de sua complexidade, observa-se que a discussão se tornou evidente até mesmo entre os componentes da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, considerando que o meio utilizado pelo agente em sua ação. Assim, para determinar a resignação e a “aceitação” do resultado pelo autor, é imprescindível realizar uma análise do comportamento do agente e das circunstâncias envolvidas na ação.
Decisão: TJMG – Rec em Sentido Estrito 1.0629.21.000474-9/001, Relator(a): Des.(a) Eduardo Brum, 4ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 24/04/2024, publicação da súmula em 26/04/2024).
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