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Especialização ou visão sistêmica? Reflexões jurídicas a partir de “Por que os generalistas vencem em um mundo de especialistas”.

O Direito, como disciplina e prática profissional, sempre foi estruturado em torno da especialização. Desde os primeiros anos da faculdade, os estudantes são incentivados – se não pressionados – a escolher uma área e aprofundar-se nela de maneira quase exclusiva. O mantra da especialização, amplamente difundido no meio acadêmico e profissional, pressupõe que um advogado deve focar-se em um ramo específico, reduzindo seu campo de atuação para se tornar uma “referência” naquele nicho. No entanto, essa abordagem ignora um fator essencial para a prática jurídica contemporânea: a complexidade e a interconectividade dos problemas jurídicos.

É nesse contexto que “Por que os Generalistas Vencem em um Mundo de Especialistas”, de David Epstein, oferece um contraponto instigante e extremamente relevante. O autor argumenta que a especialização precoce pode ser prejudicial e que profissionais com experiências amplas e diversificadas tendem a ser mais inovadores, criativos e eficazes na resolução de problemas complexos. Ele ilustra essa tese com exemplos de atletas, cientistas e inventores que prosperaram justamente por não se limitarem a uma única área de conhecimento desde cedo.

O Direito sempre teve uma estrutura educacional que favorece a segmentação do conhecimento. A divisão curricular dos cursos de Direito ainda segue, em grande medida, a lógica do século XVIII, com disciplinas estanques e pouca interseção entre elas. A especialização é, portanto, incentivada desde cedo, reforçada pelos programas de pós-graduação e pelo próprio mercado de trabalho, que demanda especialistas para atuar em nichos cada vez mais específicos.

Essa lógica faz sentido em alguns contextos. A proficiência em uma área exige aprofundamento, e é inegável que um advogado de Direito Tributário precisa conhecer profundamente as normas fiscais, assim como um advogado criminalista deve dominar a dogmática penal. A própria ideia, popularizada por Malcolm Gladwell em Outliers, de que são necessárias 10.000 horas de prática para se tornar um especialista em qualquer área, reforça essa mentalidade. Ainda que essa teoria seja debatida no meio acadêmico, reflete uma percepção generalizada: excelência exige tempo e foco.

Porém, será que essa especialização extrema é realmente a melhor abordagem para todos os desafios que um advogado enfrentará? Será que ela não restringe a capacidade de enxergar soluções inovadoras e interdisciplinares?

O principal problema da especialização extrema é a tendência de restringir o campo de visão do profissional. Advogados que se concentram exclusivamente em uma área podem tornar-se especialistas em resolver problemas “dentro da caixa”, mas podem ter dificuldades em conectar conhecimentos de diferentes áreas para oferecer soluções mais criativas e eficazes. Daí a defesa que já fiz em vários textos sobre a necessidade de verticalização do conhecimento jurídico, atingindo não apenas o ramo do Direito, mas também trazendo Economia, Contabilidade, Ciências Sociais, Ciências de dados, Inovação, entre muitos outros campos do conhecimento.

Pegue-se, por exemplo, o Direito Sucessório, um advogado que atua exclusivamente nessa área pode redigir testamentos, lidar com inventários e resolver disputas entre herdeiros com grande habilidade. No entanto, se não tiver um conhecimento sólido de Direito Tributário, pode ignorar completamente os impactos fiscais da sucessão, como a incidência do ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação). Um planejamento sucessório eficiente exige justamente uma visão verticalizada, que englobe não apenas o Direito de Família e Sucessões, mas também tributação, contratos e até mesmo o Direito Empresarial.

O mesmo ocorre em diversas outras áreas. Um advogado empresarial pode estruturar um contrato social impecável, mas, sem conhecimentos básicos de Direito do Trabalho, pode expor sua empresa a riscos desnecessários. Um criminalista que desconhece a legislação tributária pode perder oportunidades valiosas de defesa em casos de crimes contra a ordem tributária. Ou uma demanda envolvendo regulação no mercado de capitais, conhecer estratégias e fundamentos operacionais (análise técnica e fundamentalista) certamente são um diferencial na atuação do advogado. A realidade é que o Direito é um sistema interconectado, e soluções eficazes raramente estão confinadas a uma única área do conhecimento.

Além do domínio do conhecimento jurídico, a atuação em determinadas áreas exige a integração de outras disciplinas para uma prática mais eficaz. No Direito Tributário, por exemplo, a contabilidade já se tornou uma competência essencial, permitindo uma melhor compreensão da estrutura financeira das empresas. Da mesma forma, em operações de fusão e aquisição, o conhecimento em modelagem financeira é indispensável para avaliar riscos e oportunidades com maior precisão. Profissionais especializados em negociação se beneficiam do estudo da psicologia comportamental, enquanto conceitos de economia, matemática financeira e ciência política agregam uma visão estratégica fundamental para diversas áreas do Direito. Essa interdisciplinaridade forma profissionais mais completos, capazes de compreender melhor o negócio do cliente e oferecer soluções jurídicas alinhadas às suas reais necessidades.

David Epstein argumenta que a inovação acontece com mais frequência quando um profissional traz uma nova perspectiva para um problema, especialmente quando ele transita entre diferentes áreas do conhecimento. Ele cita diversos exemplos de como cientistas, atletas e inventores se beneficiaram de experiências diversas antes de se especializarem, permitindo-lhes enxergar soluções que especialistas rígidos não conseguiam perceber.

Essa lógica pode ser perfeitamente aplicada ao Direito: o advogado generalista, que transita por diferentes áreas do conhecimento jurídico antes de escolher uma especialização, desenvolve uma capacidade analítica mais ampla, aprende a conectar conceitos e torna-se mais preparado para lidar com problemas complexos.

O mundo jurídico está repleto de exemplos de grandes juristas que foram generalistas antes de se tornarem especialistas. Ministros do Supremo Tribunal Federal frequentemente possuem carreiras diversificadas, atuando como professores, advogados e juízes em áreas distintas antes de assumirem seus cargos. Grandes advogados, como Sobral Pinto, Rui Barbosa, Pontes de Miranda, Ives Gandra Martins, Paulo e Barros Carvalho, Modesto Carvalhosa, eram conhecidos por sua versatilidade e por não se limitarem a uma única área. Essa abordagem permite uma visão mais abrangente do Direito e aumenta a capacidade de encontrar soluções inovadoras para os desafios jurídicos contemporâneos.

Epstein não rejeita a especialização, mas argumenta que o caminho até ela é o que faz a diferença. Em vez de uma especialização precoce e rígida, ele defende um percurso mais longo e diversificado, onde o profissional experimenta diferentes áreas antes de se aprofundar em uma específica. Esse modelo, que podemos chamar de “explorador”, permite que o advogado desenvolva habilidades diversas, compreenda melhor o funcionamento sistêmico do Direito e tenha maior capacidade de adaptação a novas realidades.

O Direito está em constante transformação, novas áreas emergem regularmente – como a proteção de dados, o Direito Digital e a regulação de novas tecnologias – exigindo profissionais capazes de se adaptar rapidamente. Advogados que passaram por diferentes áreas do conhecimento têm uma vantagem nesse sentido, pois desenvolvem maior flexibilidade cognitiva e uma visão mais sistêmica dos problemas jurídicos.

A especialização continuará sendo importante no Direito, mas é essencial repensarmos a forma como chegamos a ela. A abordagem tradicional, que incentiva a escolha precoce de um nicho e a imersão absoluta nele, pode limitar a criatividade e a capacidade de inovação. Em contrapartida, um caminho mais generalista, que permita ao advogado transitar por diferentes áreas antes de se especializar, pode gerar profissionais mais completos, preparados para enfrentar os desafios jurídicos do século XXI.

David Epstein nos lembra que, em um mundo cada vez mais complexo, a habilidade de conectar ideias de diferentes áreas é um diferencial inestimável. Para o Direito, essa lição é especialmente relevante. A solução para um caso raramente está confinada a um único ramo jurídico, e os advogados mais bem-sucedidos serão aqueles que conseguirem navegar entre diferentes especialidades, trazendo novas perspectivas e soluções inovadoras.

O advogado do futuro não será apenas um especialista em uma área específica, mas um profissional com visão sistêmica, capaz de conectar conhecimentos e oferecer soluções criativas e eficazes para desafios cada vez mais complexos. Em posições juniores, a especialização em uma matéria específica é valorizada; no entanto, à medida que o profissional avança para níveis mais estratégicos – como cargos sêniores e de sócio – a especialização, aliada a uma compreensão abrangente de áreas externas ao Direito, torna-se uma competência essencial para a tomada de decisões e a criação de estratégias jurídicas mais eficientes. Esse ponto, inclusive, afeta o processo de contratação, como será discutido em um próximo momento.

Essa percepção do setor jurídico remodela a forma de contratação, tanto para jurídicos internos como para escritórios, fazendo com que os headhunters mudem a sua forma de observar o setor, passando a buscar profissionais mais verticalizados, capazes de agir de forma estratégica na operacionalização dos negócios.

 

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Pedro Carvalho
Advogado e Professor Universitário com mestrado em Direito pela UFPE. Especialista em Contratos pela Harvard University e em Negociação pela University of Michigan. Possui certificações em Sustentabilidade, Governança e Compliance pela Fundação Getúlio Vargas. É docente em instituições de prestígio como UNICAP, IBMEC e PUCMinas.

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