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Inadequação da Lei do sigilo do nome da ofendida nas ações de violência doméstica (Lei 14.857/2024): é necessário avançar mais na proteção às mulheres

Por Venceslau Tavares Costa Filho* e Ingrid Zanella Andrade Campos**

 

O Presidente Lula sancionou no dia 21 de maio de 2024 Lei proposta pelo Senador Fabiano Contarato visando assegurar o sigilo do nome das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar nos processos judiciais. A referida Lei acresce a Lei Maria da Penha o art. 17-A, com a seguinte redação: “Art. 17-A. O nome da ofendida ficará sob sigilo nos processos em que se apuram crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher. Parágrafo único. O sigilo referido no caput deste artigo não abrange o nome do autor do fato, tampouco os demais dados do processo”. O texto da Lei também prevê período de vacatio legis, de modo que só passará a viger 180 (cento e oitenta) dias após sua publicação no Diário Oficial.

A priori, causa estranheza a mencionada cláusula de vacatio legis, com prazo de 180 dias. Via de regra, a publicação da lei não coincide com o início de sua obrigatoriedade, em vista da cláusula de vacatio legis. Trata-se de período de tempo entre a publicação da lei e sua efetiva entrada em vigência. A doutrina costuma apresentar duas justificativas para a adoção da cláusula de vacatio legis: “a) a lei torna-se mais e melhor conhecida; b) a vacatio proporciona às autoridades incumbidas de fazer executar a lei e às pessoas por ela atingidas a oportunidade de se prepararem para a sua aplicação”.[1]

Todavia, é questionável que esta pequena alteração da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) necessite de período de vacância superior a vacatio legis da própria Lei Maria da Penha, que foi de singelos 45 (quarenta e cinco) dias (art. 46).

Do ponto de vista dos instrumentos disponíveis para a efetivação da proposta, não é demais lembrar a generalização do processo judicial eletrônico (PJe); de modo que a simples inserção de um comando no sistema dos respectivos tribunais poderia permitir a implementação do sigilo determinado pelo legislador. Apesar de nos faltar a expertise na área de informática, parece-nos que a inserção de tal atualização no sistema do PJe não demandaria prazo tão extenso quanto o previsto na nova norma. Some-se a isto o fato de que tal sigilo deve ser considerado uma pseudonovidade normativa, posto que não inove no ordenamento jurídico.

Fredie Didier Júnior questiona se “novo texto normativo” é sinônimo de “norma jurídica nova”, e em razão disto distingue “normas jurídicas novas”, “pseudonovidades” e “normas de caráter simbólico”. Quanto às pseudonovidades veiculadas no Código de Processo Civil de 2015, pontifica:

O CPC contém enunciados normativos que, embora novos, nada inovam normativamente no direito processual civil brasileiro. São textos normativos novos, mas deles não decorrem normas jurídicas novas. Isso não é uma crítica ao novo Código. Ao contrário. A observação ratifica que o novo CPC está em consonância ao que já se havia consagrado, normativamente, no direito processual civil brasileiro, ainda que à míngua de texto normativo.[2]

Destarte, exemplifica que a regra contida no art. 10 do Código de Processo Civil vigente a vedar a decisão-surpresa é corolário do princípio do contraditório, largamente aceito pela doutrina e jurisprudência nacionais há muito tempo. Ainda que inexistisse regra no novo Código de Processo a veicular tal proibição, a interpretação dada ao princípio do contraditório reputaria nula a decisão surpresa. Neste caso, não faria sentido aplicar tal solução apenas após a vacatio legis, posto que tal enunciado apenas reforce ou ratifique a compreensão atual do direito processual civil pátrio, elaborada antes a vigência da Lei processual de 2015; de modo que podem, em razão disto, “ser utilizados imediatamente como reforço de argumentação”. [3]

Ora, é a própria Constituição Federal que assegura a restrição a publicidade dos atos processuais “quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem” (art. 5º,   LX), bem como permite limitar a publicidade dos julgamentos do Poder Judiciário em nome da “preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo” (art. 93, IX). Pode-se inferir que a restrição a publicidade dos atos processuais com o escopo de proteger a intimidade das mulheres vítimas de violência doméstica já é assegurada pela Constituição. Não há novidade, portanto.

Nesta toada, o Conselho Nacional de Justiça expediu recomendação aos Tribunais para a “a adoção de medidas preventivas e maior rigor no controle quanto à forma como são geradas, armazenadas e disponibilizadas informações judiciais de caráter sigiloso e/ou sensíveis, sobretudo quando envolvam vítimas de crimes praticados contra a dignidade sexual” (CNJ, Recomendação n. 52, de 20.07.2016, art. 1º).[4]

Neste mesmo sentido, a Resolução n. 121 (de 05.10.2010) do CNJ também determina que “Os nomes das vítimas não se incluem nos dados básicos dos processos criminais”. (art. 4º, § 2º). [5] E o art. 32 da Resolução n. 215 (de 16.12.2015) do CNJ prescreve que: “As informações pessoais relativas à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem detidas pelo Poder Judiciário: I – terão acesso restrito a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que se referirem independentemente de classificação de sigilo, pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da data de sua produção”. [6]

Some-se a isto o fato do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (FONAVID) haver aprovado enunciado no sentido de que: “As medidas protetivas de urgência deverão ser autuadas em segredo de justiça, com base no art. 189, II e III, do Código de Processo Civil” (Enunciado 34).[7]

Há que se considerar também que o art. 189 do Código de Processo Civil prescreve que devem correr em segredo de justiça os processos: “I – em que o exija o interesse público ou social; II – que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes; III – em que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade”. Em relação a hipótese prevista no inciso II do art. 189, anote-se a lição de Eduardo Costa:

Aqui, a margem de interpretação é mínima. O segredo de justiça é praticamente decretado por operação mental de subsunção silogística. Por isso, não há o magistrado de aguardar o requerimento de qualquer uma das partes: a decretação faz-se ex officio. E é preciso que o faça. Afinal, é nessas causas de direito de família que os dramas da vida privada mais se expõem, sujeitando as partes à especulação e ao escárnio populares.[8]

 

É evidente que a norma do inciso II do art. 189 do Código de Processo Civil deve ser interpretada no sentido de considerar que as ações pertinentes às relações de direito de família devem ser protegidas da curiosidade do público pelo segredo de justiça. Anote-se, por exemplo, que (nos termos da Lei Maria da Penha) podem ser apresentados ao juizado especial de violência doméstica e familiar contra a mulher pedidos de divórcio ou dissolução de união estável (art. 14-A), separação de corpos (art. 23, I), alimentos provisórios (art. 22, V) e de restrição ou suspensão de visitas aos filhos menores (art. 22, IV). Os juizados ou varas especializadas em violência doméstica e familiar contra a mulher são dotadas de competência cível e criminal, nos termos do art. 14 da Lei Maria da Penha.

Ante a expressa previsão da aplicação do Código de Processo Civil às causas cíveis que tramitam nas varas de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 13), o que justificaria admitir que o pedido de divórcio tramite sob segredo de justiça nas varas de família e não tenha igual proteção nas varas de violência doméstica e familiar contra a mulher? Sabe-se que um dos fatores que inibe as mulheres de denunciarem crimes é o medo da exposição. Garantir o sigilo dos dados das mulheres em tais procedimentos é medida necessária para resguardar a intimidade das mulheres.

Por fim, além de considerarmos que os Tribunais já podem implementar tais medidas antes do término da vacatio legis da Lei 14.857/2024, consideramos que é insuficiente resguardar apenas o nome da vítima, e deixar acessíveis todos os outros dados pertinentes a identidade dela, de seus familiares e das testemunhas do fato. Neste, sentido, consideramos necessária e urgente a aprovação do Projeto de Lei n. 628/2022, da Senadora Soraya Thronike[9], fruto de anteprojeto redigido a quatro mãos pelos autores deste texto[10]; posto que visa assegurar não apenas o segredo de justiça nas ações que correm nas varas de violência doméstica e familiar contra a mulher, mas também o direito ao depoimento especial da mulher vítima de violência doméstica e familiar nas causas cíveis.

 

Notas e Referências:

*Venceslau Tavares Costa Filho é Doutor em Direito pela UFPE, Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da UFPE, Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões – Seção Pernambuco e Membro da Comissão Especial de Responsabilidade Civil do Conselho Federal da OAB.

**Ingrid Zanella Andrade Campos é Doutora em Direito pela UFPE, Professora Adjunta da UFPE e Professora Permanente do Mestrado em Direito da Faculdade Damas, Juíza suplente do Tribunal Marítimo e Vice-Presidente da OAB-PE.

[1]BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Da existência, validade, vigência e eficácia da lei no sistema brasileiro atual. Revista dos Tribunais, v. 683 (setembro/1992). São Paulo: RT, p. 29-36.

[2] DIDIER JUNIOR, Fredie. Eficácia do novo CPC antes do término do período de vacância da lei. Revista da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, a. 6, v. 11 (janeiro/abril – 2015). Porto Alegre: Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, p. 14.

[3] DIDIER JUNIOR, Fredie. Eficácia do novo CPC antes do término do período de vacância da lei. Revista da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, a. 6, v. 11 (janeiro/abril – 2015). Porto Alegre: Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, p. 15.

[4] Diponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2315 Acesso em: 21 de janeiro de 2022.

[5] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=92 Acesso em: 21 de janeiro de 2022.

[6] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2236 Acesso em: 21 de janeiro de 2022.

[7] Disponível em: https://www.amb.com.br/fonavid/enunciados.php Acesso em: 21 de janeiro de 2022.

[8] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Art. 189. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1.087-1.087.

[9] Trata-se de Projeto de Lei que já foi aprovado no âmbito da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, mas que segue aguardando a designação de Relator na Comissão de Constituição e Justiça do Senado desde 04 de agosto de 2023. Cf: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/152265 Acesso em: 30 de maio de 2024.

[10] Cf: “Desta forma, a luta pela dignidade da mulher que sofre violência deve ser incansável, em todas as etapas e fases processuais. Pensando nisso, como vice-presidente da OAB-PE, através de dados obtidos por projeto de pesquisa da UPE, coordenado pelo Professor Doutor Venceslau Tavares, oferecemos sugestões e propostas para alteração da Lei Maria da Penha à Senadora Soraya Thronicke. Não restam dúvidas que a Lei Maria da Penha é uma importante medida no enfrentamento à violência doméstica contra a mulher, todavia precisa garantir medidas que assegurem a oitiva adequada da mulher ofendida e das testemunhas do fato, especialmente nas ações cíveis em que figurem como parte, além do sigilo processual, para preservar a vítima. Assim, entre as propostas, está a inclusão das técnicas do chamado “depoimento sem danos”, que já é adotado com sucesso nos juizados da infância e da juventude. Da mesma forma, a fim de proteger a intimidade e a integridade física e psíquica da vítima, destaca-se a necessidade de as ações cíveis decorrentes de violência doméstica e familiar contra a mulher dever correrem em segredo de justiça, com a manutenção das medidas de proteção como públicas, podendo o sigilo ser dispensado por vontade exclusiva da vítima. Tal publicidade, sem preservar a dignidade e privacidade de vítima, serve de desestímulo a denúncias e a busca da proteção junto ao Poder Judiciário para as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, especialmente nos casos que envolvem violência sexual ou que tenham repercussão sobre filhos menores e incapazes”. Disponível em: https://blogdellas.com.br/pela-valorizacao-e-defesa-da-mulher/ Acesso em: 30 de maio de 2024.

 

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Venceslau Tavares Costa Filho
Doutor em Direito pela UFPE. Professor dos Cursos de Graduação em Direito da UPE e da FAFIRE. Professor Permanente dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito, e do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UFPE. Professor convidado do Curso de Especialização em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco-USP. Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) - Seção Pernambuco. Membro da Academia Iberoamericana de Derecho de Familia y de de las Personas. Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Advogado.

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