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(In)Constitucionalidade da Cooperação Processual – 2ª Parte

Alexandre Callou da Cruz Gonçalves[1]

 

Na primeira parte do estudo (leia aqui), mostrou-se que o Princípio da Cooperação Processual não é o equilíbrio dos modelos procedimentais dos Princípios do Dispositivo e do Inquisitório; que a sua concepção ocorreu no âmago do Socialismo Processual, com imposição de poderes de intervenção ao Estado-jurisdição, em detrimento da autonomia, liberdade e autorresponsabilidade das partes litigantes. Em resumo, o Princípio da Cooperação Processual decorreu da ideia de que (a) a concessão de poderes materiais ao magistrado e (b) a imposição de deveres de colaboração entre os sujeitos processuais, seriam as soluções para a superação de deficiências típicas do processo do Dispositivo. Mas não são. Em verdade, o aumento da intervenção do interesse público na esfera privada (âmbito de atuação das partes no processo), a prejudicar a liberdade e a autorresponsabilidade dos litigantes, ao contrário de ser uma solução às deficiências do Dispositivo, nada mais é que um reforço dos ideais do modelo Inquisitório. Ao fim e ao cabo, a incansável busca pela “justa”, “eficaz” e rápida resolução litigiosa – núcleo duro do Princípio da Cooperação Processual – tende a ameaçar e violar algumas garantias fundamentais dos particulares. O fomento dos papéis interventores do julgador, servindo-se do dever do diálogo entre os sujeitos processuais como álibi, alimenta a parcialidade do juiz já que, confessadamente, reforça poder criativo da atividade jurisdicional. Dessa forma, desde o plano metodológico-dogmático, o Princípio da Cooperação encontra barreiras de constitucionalidade.

Mas não é só. Na égide do Estado Constitucional de Direito, todas as atuações dos agentes públicos estão submetidas aos Princípios da Supremacia e da Força Normativa da Constituição, além de carecerem da previsibilidade em lei – expressão do Princípio da Legalidade. Com efeito, a Constituição é a salvaguarda da sociedade contemporânea, ao passo que limita a soberania do Estado perante o cidadão. Ademais da estruturação e a organização do Estado, a Constituição também aglutina garantias individuais e direitos fundamentais, os quais são concebidos como instrumentos de proteção oponíveis contra o arbítrio estatal; são limitações do poder do Estado em valorização da liberdade dos cidadãos. Não por outro motivo, a importância do constitucionalismo enquanto movimento político-jurídico paira na sua proteção (garantia) dos direitos fundamentais, com as ulteriores racionalização e limitação do poder estatal; propriamente, o constitucionalismo nasceu da necessidade de limitação do governo por meio da Constituição. Assim, haja vista ser a ordem jurídica fundamental, a Constituição normatiza traços fundamentais da ordem total jurídica[2], determinando regras materiais que devem guiar as políticas públicas – inclusive da atividade legiferante – desenvolvidas dentro do Estado Democrático de Direito.[3] Vê-se, com isso, que a ideia do Princípio da Cooperação Processual é contraditória às próprias noções tradicionais sobre Constitucionalismo, Constituição e Direito Fundamental. Enquanto estes se desenvolvem na premissa de, por um lado, racionalizar, limitar, conter, controlar e abalizar o poder e a atuação do Estado, de modo a, por outro lado, favorecer, proteger, salvaguardar, preservar, tutelar, a liberdade dos cidadãos; aquele – o Princípio da Cooperação Processual – fomenta o aumento, reforço e acréscimo dos poderes do Estado-Juiz em prejuízo à autonomia, liberdade e autorresponsabilidade dos litigantes. A esse propósito, como já visto anteriormente, no elo Julgador-Parte, a Cooperação Processual se materializa pela imposição de deveres colaborativos ao segundo, enquanto o primeiro possui poderes-deveres institucionais de intervenção. De mais a mais, a lógica envolta do Princípio da Cooperação Processual é uma só: diminuição do âmbito de liberdade de atuação da parte, no processo, com a consequente e correlata dilação da intromissão do órgão no litígio. Mais Estado e menos particular.

Para além da inconsistência orgânica da Cooperação Processual com as matrizes constitucionais basilares, o instituto ainda sofre de deficiências operacionais-funcionais, notadamente, verificadas na crença de que o Princípio da Cooperação Processual provocou a transformação do processo em uma comunidade de trabalho[4] (Zivilprozess als Arbeitsgemeinschaft). Nesse sentido, parte da doutrina cooperativista defende incidência do Princípio da Cooperação Processual em todas as dimensões das relações jurídico-processuais: a) «parte-tribunal»; b) «tribunal-parte»; e c) «parte-parte». Contudo, a existência de uma comunidade de trabalho que, em mútua cooperação, trabalhará para o objetivo em comum de alcançar a “verdade”, permitindo a construção de uma decisão “justa”, “eficaz” e rápida, não corresponde minimamente aos fatores naturais de um litígio.[5] Ora, cooperar nada mais é do que atuar em conjunto para a obtenção de um mesmo fim; portanto, dentro do processo civil, a cooperação exige da parte e da contraparte, o trabalho em conjunto, colaborativo, com o intuito de se chegar ao mesmo resultado. Ocorre que, o “fim comum”, no litígio sub judice, é inexistente, já que as partes, na realidade, têm interesses antagônicos: em termos grossos, o autor quer a procedência do pedido e o réu, a sua improcedência. Com efeito, nem a própria etimologia ampara a colaboração processual; evidentemente, não se pode exigir uma convergência daquilo que por natureza, é divergente.[6] O problema é lógico, antes mesmo se conformar como um problema jurídico. Assim sendo, a crença sobre a presença de uma comunidade de trabalho é ilusória e divorciada da realidade do processo jurisdicional.

Caso fosse factível (que não é), a ingenuidade da comunidade de trabalho requer uma espécie de «auto-mutilação processual» do indivíduo, que não lutaria para fazer prevalecer o direito que acredita ser seu, se necessário fosse, respeitando a finalidade do processo, a realizar o seu o interesse público. Mais do que irrealista, a ideia é enganador[a], porquanto se insinua que entre os interesses do Estado, representado pelo tribunal, do autor e do réu não há antagonismos a resolver.[7] Ademais, a experiência histórica revela outra faceta desta idealização. Como visto no texto anterior, a exigência de um dever de cooperação dirigido às partes para a descoberta da verdade é identificada, de forma inédita, no artigo 524 do Código de Processo Civil português de 1939. Fortemente influenciada pelos trabalhos preparatórios do (autoritário) Codice di Procedura Civile de 1940, a positivação foi alicerçada no interior do socialismo processual, no qual o interesse do Estado é posto acima dos interesses dos litigantes. Pela publicização, exige-se dos particulares a disposição de, caso necessário, sacrificar seus próprios objetivos, em prol de um bem comum (a descoberta da verdade material) sob pena de sanções penais violentas (César Abranches). Dessa forma, é possível afirmar que, para além de utópica, a tese sobre uma comunidade de trabalho é originalmente autoritária.

Mariana França Gouveia reconheceu a impertinência da embrionária concepção do dever de cooperação das partes e vislumbrou o dever de fair play entre os litigantes, necessário ao bom andamento da marcha processual. A comunidade de trabalho proporcionada pela colaboração, herança de Franz Klein (e adotada pelos cooperativistas), está impregnada da tal ideia social do processo e por isso é que é vista como desprezando os interesse individuais das partes. Contudo, hoje, este desprezo não é admissível, não podendo erigir-se a cooperação de tal forma que desemboque numa expropriação de direitos privados em favor de uma ideia pública de justiça.[8] Portanto, não se pode exigir dos jurisdicionados uma colaboração processual com o viés de conduzir o processo a uma mesma direção, qual seja: a (célere) descoberta da verdade.[9] Trata-se de exigência arbitrária, autoritária e irrealista. Retira-se das partes garantias processuais, impõe-se o interesse do Estado em cima do dos litigantes e crê-se numa convergência de posições naturalmente divergentes – autor e réu conduzindo suas manifestações no mesmo sentido.

Tal equívoco é típico de uma tese que cai na confusão entre Efetividade do Processo e Efetividade da Tutela Jurisdicional; a doutrina cooperativista não dissocia as concepções de Efetividade do Processo e Efetividade da Tutela Jurisdicional. Ela apenas parte da premissa de que o processo é instrumento de jurisdição (Teixeira de Sousa = instrumento de poder) e desenvolve seu discurso em prol da efetividade processual umbilicalmente conectada à tese do recrudescimento da jurisdição. Traduzindo os termos, a Cooperação Processual é construída na ideia de fortalecimento do papel dos magistrados (v.g. deveres de cooperação) na busca da efetividade do processo (v.g. descoberta da verdade, construção de decisão justa, com brevidade). Trata-se de reflexo da (equivocada) crença em uma relação natural entre a (a) ampliação dos poderes do Estado-juiz e a (b) efetividade do processo; o que, ao fim e ao cabo, decorre diretamente do mito da publicização processual.[10] A Cooperação Processual foi formada através da concepção publicista do processo civil, com a dotação dos juízes em coadjuvar com as partes no debate jurisdicional, e a imposição de comportamentos às partes mediante a criação de regras mais rígidas com considerável teor ético e moral (v.g. dever de veracidade). Por esse motivo, não é ilegítimo concluir que a tese foi impulsionada na e pela ideologia da socialização processual, o que explica a remissão de cooperativistas (mormente Teixeira de Sousa) às lições teórico-doutrinárias de Franz Klein. Entretanto, o Processo não é instrumento de Poder ou instrumento de Jurisdição. Não há uma única passagem na Constituição brasileira (nem na portuguesa) que alicerce tal perspectiva.

Tanto no Brasil como em Portugal, o Processo constitui Direito Fundamental do Jurisdicionado (Art. 20º CRP/76, Art. 5º, LIV, CRFB/88), ou seja, um direito que privilegia o cidadão em face da soberania estatal (= contra o arbítrio estatal). Quer dizer isto que o Processo institui limites ao detentor do poder – o Estado –, que deve processar e julgar as demandas ajuizadas, em estrita observância às garantias constitucionais e legais impostas. Nesse prisma, pode-se afirmar que a Efetividade do Processo está diretamente ligada à observância das garantias constitucionais do (devido) processo legal. A decisão judicial encontra legitimidade (democrática) no respeito às “regras do jogo”, instituídas a partir das garantias constitucionais processuais: devido processo legal (Art. 5º, LIV, CRFB/88), contraditório/ampla defesa e processo equitativo (Art. 5º, LV, CRFB/88 e Art. 20º, n.º 4 CRP/76), duração razoável do processo (Art. 5º, LXXVIII, CRFB/88 e Art. 20º, n.º 4 CRP/76), proibição de provas ilícitas (Art. 5º, LVI, CRFB/88 e Art. 32º, n.º 8 CRP/76), fundamentação das decisões (Art. 93, IX, CRFB/88 e Art. 205º, n.º 1 CRP/76), etc.

 

Disso se compreende que a Efetividade do Processo tem como critério de medição a (in)observância das garantias constitucionais de natureza processual; caso o magistrado confira efetividade às garantias, pode-se falar que o Processo foi Efetivo. Logo, efetivo é o processo em que as garantias constitucionais fundamentais foram respeitadas.[11] Nessa perspectiva, embora seja possível traçar uma certa ligação entre Efetividade do Processo e Efetividade da Tutela Jurisdicional (culminância da atuação do órgão jurisdicional com o proveito do bem jurídico perseguido na demanda – grosso modo), percebe-se que Processo e Jurisdição são conceitos distintos, inconfundíveis. Medir a Efetividade do Processo a partir do resultado do pronunciamento judicial (decisão “justa” e “célere”) revela uma abordagem reduzida do instituto, além ser passível de cair em outro equívoco: a celeridade não constitui requisito imprescindível para a elaboração de decisão justa, assim como a “justiça” não deve ser medida (apenas) a partir da rapidez da construção da decisão. Não por acaso o constituinte optou por utilizar o termo “razoável” (Art. 20º, n.º 4 CRP/76 e Art. Art. 5º, LXXVIII, CRFB/88) para estipular a duração do procedimento judicial, ou seja, nem muito lento, nem muito rápido, e sim em «tempo razoável» para a construção adequada da Decisão Judicial, primada no respeito às garantias constitucionais processuais (= devido processo legal).

 

Notas e Referências:

[1] Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestrando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Portugal. Integrante do grupo de pesquisa de Direito Constitucional do Núcleo de Estudo Luso-Brasileiro (NELB) da mesma IES. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPRO). Advogado.

[2] Citando Konrad Hesse, JUNIOR, Nelson Nery. Princípios do Processo na Constituição Federal. 13 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 52.

[3] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e vinculação do legislador – contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2ª ed. Coimbra, 2001, p. XXIX/XXX.

[4] WASSERMANN, Von Rudolf. Der soziale Zivilprozess: zur Theorie u. Praxis d. Zivilprozesses im sozialen Rechtsstaat, 1978, pp. 97 ss.

[5] No Brasil, Daniel Mitidiero entende que o princípio recai no Juiz para com os litigantes («tribunal-parte»), imputando deveres àquele em detrimento destes, sendo impossível extrair uma colaboração entre as partes, em razão dos interesses antagônicos presentes entre os polos: MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil como prêt-à-porter? Um convite ao diálogo para Lênio Streck. Revista de Processo. Ano 36, vol. 194, 2011, p. 62: “a colaboração no processo civil não implica colaboração entre as partes. As partes não querem colaborar. A colaboração no processo civil que é devida no Estado Constitucional é a colaboração do juiz para com as partes. Gize-se: não se trata de colaboração entre as partes. As partes não colaboram e não devem colaborar entre si simplesmente porque obedecem a diferentes interesses no que tange à sorte do litígio (…)”. No mesmo sentido, ASSIS, Araken de. Processo Civil brasileiro. Vol II, t. I. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, pp. 950 e segs. No entanto, tal posicionamento não é unânime. Fredie Didier Jr. identifica a cooperação em todas as relações processuais identificadas em sua doutrina: “os deveres de cooperação são conteúdo de todas as relações jurídicas: autor-réu, autor-juiz, juiz-réu, autor-réu-juiz, juiz-perito, perito-autor, perito-réu, etc.” DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil. Parte Geral e Processo de Conhecimento. 18 ed. Salvador: Juspodivm, 2016, v. 1, p. 128; no mesmo sentido, entende Lauro Alves de Castro, fortemente influenciado por Didier Jr. (seu orientador no programa de mestrado realizado na Universidade Católica de Pernambuco): CASTRO, Lauro Alves de. Princípio da Cooperação e a Fundamentação Analítica no CPC 2015: Das Decisões às Postulações. Salvador: Editora Juspodivm, 2021.)

[6] No ponto, Ana Paula Costa e Silva é enfática: Esse dever de cooperação entre as partes pressupõe “um homem que, com a maior isenção, possa apresentar a sua versão dos acontecimentos ao tribunal pedindo apenas aquilo que a lei lhe permite e ajudando, tanto o tribunal, como a parte contrária, na recolha de tudo quanto permita chegar ao resultado final justo. A parte que não visa persuadir, mas informar o tribunal, a parte que não age estrategicamente em função do resultado que melhor serve seus interesses, mas que coopera sistematicamente com o tribunal e a parte contrária”. SILVA, Ana Paula Costa e. Acto e processo – o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo. Coimbra. Coimbra Editora, 2003, p. 112.

[7] MENDONÇA, Luís Correia de. Vírus Autoritário e Processo Civil. Lisboa: Revista Julgar, n.º 1, 2007, p. 91.

[8] GOUVEIA, Mariana França. Regime processual experimental anotado. Coimbra: Almedina, 2006, pp. 103-108.

[9] Não se nega a necessidade do diálogo, para o bom andamento da marcha processual. Reconhece-se tal característica como inerente e imprescindível às concepções contemporâneas acerca do procedimento jurisdicional. Mais: exige-se a lealdade recíproca para a construção democrática da resolução litigiosa. Não é disso que se estar a referir, na abordagem crítica da «comunidade de trabalho».

[10] CARVALHO FILHO, Antônio. SOUSA, Diego Crevelin de. PEREIRA, Mateus Costa. Réquiem às medidas judiciais atípicas nas execuções pecuniárias. Londrina: Thoth, 2020, p. 17.

 

[11] HELLMAN, Renê. Efetividade do Processo, Eficiência da Jurisdição e Eficácia da Decisão Judicial. In: Direito, Processo e Garantia – Estudos em Homenagem a J. J. Calmon de Passos. (Org.) Antônio Carvalho Filho e Eduardo José da Fonseca Costa. Londrina: Thoth, 2021, pp. 159-171.  No ponto, o autor cita uma passagem de Calmon de Passos: “Obedecendo ao governo de normas e não ao governo de homens, permanecemos livres quando somos submetidos, ao passo que nada mais somos do que servos ou súditos quando obedecemos apenas a quem formalmente se diz investido de poder para submeter-nos. A sentença que desfigura e desconsidera a promessa contida nas normas previamente postas para nortear o comportamento dos cidadãos, antes de ser algo que reclama efetividade, é algo que pede a mais veemente repulsa, por tipificar um delito político dos mais graves numa ordem democrática – o da usurpação do poder, ou dos mais graves sob o enfoque ético – da prevaricação. Do que vem se afirmando, conclui-se, portanto, que advogar pura e simplesmente a efetividade do processo como equivalendo a efetividade da sentença nele proferida mascara, pérfida e perversamente, mesmo quando esta não seja a consciente intenção dos que o fazem, o propósito de instituir o magistrado como um tirano, como déspota que tantos séculos de luta e resistência procuraram, exatamente, de uma vez por todas, eliminar da vida política”.

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