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Indicar e especificar provas: do que se trata?

Por Renê Francisco Hellman[1]

 

Escrever sobre esse tema foi motivado por um breve debate com a querida amiga, professora Paola Damo Comel, colega de Departamento na UEPG. Divergimos a respeito da interpretação a ser dada à exigência de indicação/especificação de provas que o CPC/2015 faz para o autor, na inicial (art. 319, VI), e ao réu, na contestação (art. 336).

E já adianto: o posicionamento a ser defendido neste breve texto destoa do entendimento já sedimentado na doutrina, na jurisprudência e na prática forense.

E cabe, ainda, outro esclarecimento inicial. Ao longo desse texto, os termos indicação e especificação de provas serão tratadas como sinônimos. Isso porque o art. 319 do CPC/2015 usa o verbo “indicar” para atribuir ônus ao autor e o art. 336 do CPC/2015 usa o verbo “especificar” para atribuir o mesmo ônus ao réu. Assim, considerando-se a necessidade de que as partes sejam tratadas de forma igualitária, não se pode, nesse contexto, entender que o autor teria um ônus mais genérico do que o do réu.

Desse modo, compreende-se que indicar/especificar provas na fase postulatória implica necessariamente colocar de forma clara na mesa as armas de que se dispõe para aquele conflito. Rejeita-se aqui a posição de que é cabível formular-se protesto genérico de produção probatória.

Compulsando os clássicos já é possível perceber que vem de há muito a compreensão de que a exigência de especificação de provas comporta tão somente a formulação de um pedido genérico, como aquele que se vê na prática forense.

Nos Comentários ao Código de Processo Civil de 1973, da Editora Forense, Calmon de Passos resgatava lição de Lopes da Costa, relativa ao CPC/1939, em que este já criticava a indicação genérica, atribuindo-lhe a pecha de “ridícula inutilidade”: “Aboli-la, de vez, teria sido melhor solução, se preferível não fora, como o é, exigir-se a indicação específica”.[2] Em tom derrotista, Calmon concluía seu comentário a respeito do tema: “Infelizmente, ontem, como hoje, só a inócua e irrelevante indicação dos meios de prova é que se exige.”[3]

Frederico Marques, por seu turno, ensinava ao tempo da vigência do CPC/1939 desse modo:

O autor precisa indicar os meios de prova com que pretende demonstrar a sua pretensão. Imprescindível, para tanto, é que diga com que provas vai tentar demonstrar as questões de fato em que se baseia o pedido. Não se trata, porém, de indicação de prova individualizada. A lei fala em meios de prova, pelo que o autor dirá com que elementos genéricos de convicção irá procurar demonstrar suas alegações ao juiz. Êle esclarecerá, por exemplo, se quer produzir prova testemunhal, se pretende ouvir o depoimento da parte contrária, se deseja realizar prova pericial, arbitramento ou exames contábeis etc.[4]

 

Para Ovídio Baptista da Silva, a indicação de provas a que fazia referência o art. 282 do CPC/1973, quando se tratasse de provas técnicas, implicava o ônus do autor de especificar, “na petição inicial, o objeto e os motivos pelos quais pretende este tipo de prova, sob pena de o juiz não ter elementos que o capacitem a avaliar o seu cabimento ou a sua relevância para a causa”[5].

Barbosa Moreira, embora admitisse a “referência aos meios de prova, genericamente apontados”, não reputava correta a “alusão vaga a ‘meios de prova em direito admissíveis’”.[6]

Na mesma linha e já à luz das disposições do CPC/2015, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery defendem a necessidade de que o autor requeira as provas que pretende produzir, não sendo suficiente “o mero protesto por provas”.[7]

Em sentido diverso, José Miguel Garcia Medina, ancorando-se em posicionamento do Superior Tribunal de Justiça[8], defende que há duas fases no requerimento de produção de provas: a primeira, na inicial, com protesto genérico e a segunda, após a contestação, quando haverá especificação das provas a serem produzidas.[9]

Diante desse cenário, é preciso que se reflita de forma mais detida sobre as disposições legais que tratam da indicação/especificação de provas pelas partes no processo.

Como ponto de partida, é preciso destacar que essas duas fases do requerimento de produção de provas a que se refere Medina e que foram assumidas pelo STJ e boa parte da praxe forense, não existem no procedimento instituído pela lei processual vigente. Assim também não existiam na vigência do CPC/1973.

O que há no CPC/2015, em seu art. 348, é uma das providências preliminares a ser adotada quando o réu for revel e não se perfizer o efeito da confissão ficta, oportunidade em que ao juiz caberá abrir prazo para que o autor especifique as provas que pretende produzir, se ainda não as tiver indicado.

Trata-se de disposição bastante específica, que serve para que o autor tenha conhecimento de que, a despeito da revelia, os fatos por ele alegados não foram considerados verdadeiros, cabendo-lhe a especificação das provas que sejam aptas a demonstração das suas afirmações fáticas, de modo que a instrução seja guiada de forma mais objetiva.

Para os demais casos não há previsão legal semelhante e parece ser assim por uma razão bastante lógica e técnica.

Se ao autor incumbe a indicação das provas na sua petição inicial e ao réu incumbe o mesmo ônus na contestação, sendo lícito ao autor, ainda, manifestar-se e produzir provas, em fase de providências preliminares, na réplica, a respeito de eventuais fatos novos alegados pelo réu em sua defesa (art. 350 do CPC/2015), intui-se que, bem aplicada a técnica, não há necessidade de petição posterior das partes com especificação das provas.

E nem se diga, como é comum dizer-se, que para a especificação das provas é necessária a contestação, para que se saiba, enfim, quais são os fatos objetos de controvérsia.

A controvérsia somente será percebida a partir da contestação, é verdade. Mas ela não é necessária para a indicação das provas e o filtro deve caber ao magistrado.

O autor, na inicial, alega os fatos constitutivos do seu direito e, de regra, nos termos do art. 373, I do CPC/2015, já conhece sobre o ônus que sobre si recai, tendo plena condição de estabelecer sua estratégia processual, em geral, e sua estratégia probatória, em especial.

O réu, na contestação, já sabe que lhe incumbirá ônus probatório se alegar fatos novos, modificativos, extintivos ou impeditivos do direito do autor (art. 373, II do CPC/2015) e também tem condições de estabelecer suas estratégias de defesa e de ataque, quando assim entender cabível. E nessas estratégias inclui-se a produção de provas.

Ainda que haja distribuição diversa do ônus da prova e até mesmo para que se tenha maior segurança em uma decisão nesse sentido, é fundamental que as partes especifiquem as provas na fase postulatória, principalmente aquela que requer a redistribuição, afirmando quais provas entende ser possível produzir, mas para as quais não tem condições.

Trata-se aqui, também de um estímulo necessário à litigância responsável, pois exigir o cumprimento do ônus de indicação das provas já na fase postulatória, abandonando-se a deletéria prática do mero protesto por produção de todas as provas admitidas em direito, é incutir nas partes e nos seus advogados a preocupação em requerer a produção daquelas provas que sejam, de fato, necessárias e pertinentes, a partir de um cálculo sobre as suas possibilidades e dificuldades. Esse cuidado há de significar, inclusive, mais uma barreira às aventuras processuais.

Há severa falha técnica se as partes entram em campo sem que saibam quais provas desejam – mais importante do que isso! – podem produzir. E digo isso com relação aos fatos que já lhes são conhecidos, pois eventuais fatos novos, trazidos posteriormente pela parte adversa, ensejarão nova oportunidade de manifestação e também produção de novas provas, se for o caso.

Por isso, não cabe que se afirme a necessidade de se aguardar o estabelecimento da controvérsia para que se saiba quais provas serão necessárias. As provas já devem ser conhecidas das partes, preparadas que devem estar quando levam os fatos ao conhecimento do juízo.

Se determinada afirmação de fato restar incontroversa, seja por confissão da parte adversa ou ausência de manifestação sobre ele, caberá ao juiz, na decisão de saneamento, deixá-la de fora do objeto probatório, assim como indeferir as provas que seriam direcionadas a demonstrá-la. Este filtro cabe ao magistrado, sob o controle das partes após o saneamento, quando da oportunidade de pedirem ajustes ou esclarecimentos (art. 357, § 1º do CPC/2015).

E, para além de não haver no procedimento estabelecido pelo CPC/2015 a fase de especificação de provas que antecede o saneamento do processo, há um fator de influência que parte do contraditório e da lealdade processual e que desagua no ônus da indicação das provas.

Considerando que o contraditório é composto pelo direito de não ser surpreendido, seja pelo juiz, seja pela parte contrária, e que o processo, embora ambiente de conflito, não deve tolerar deslealdades, é fundamental que se compreenda a indicação/especificação de provas como um mecanismo de se colocar às claras as armas de que se dispõe.

Não se pode cogitar de exercício pleno do direito à defesa se o réu, pela leitura da inicial, não consegue saber de quais provas o autor dispõe para demonstrar os fatos que constituem o seu direito. E o conhecimento das armas do autor é fundamental já para que o réu elabore sua defesa.

Da mesma forma, é impossível que o autor possa ter pleno direito à defesa da sua pretensão na réplica se, diante de fatos novos alegados pelo réu na contestação, não consegue ter clareza de quais meios de prova este dispõe para demonstrá-los.

Quando se afirma aqui que essa especificação de provas está ligada à lealdade processual não se quer fazer uma leitura moralista do jogo processual. Compreende-se o processo como ambiente de conflito e não se acredita que as partes tenham ambiente de cooperação uma com a outra. A base aqui não é a da cooperação. A lealdade processual oferece melhor leitura e é compreendida aqui como um conjunto de regras que impedem ou punem comportamentos de má-fé e que imponham às partes um conflito às claras.

Armas na mesa. Esta é a finalidade de se exigir o cumprimento do ônus da indicação/especificação de provas.

Por isso tudo, não cabe que se cogite de uma fase posterior à contestação e à eventual réplica e anterior ao saneamento destinada à especificação de provas, como se esta fosse voltada tão somente para esclarecer ao juízo sobre quais provas são necessárias.

Antes de se voltar ao juízo, a especificação das provas é voltada às próprias partes, como mecanismo (1) de litigância responsável; (2) de adequada preparação da estratégia processual; (3) de respeito ao contraditório e à ampla defesa e (4) de lealdade processual.

 

Notas e Referências:

[1] Professor Adjunto do Departamento de Direito Processual da UEPG; Doutor em Direito pela UFPR; Mestre em Ciência Jurídica pela UENP; Autor dos Comentários ao Código de Processo Civil, pela Editora Juruá; Advogado.

[2] LOPES DA COSTA, Alfredo Araújo, apud PASSOS, J. J. Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. III (Arts. 270 a 331). Forense: Rio-São Paulo, s/d, p. 146.

[3] PASSOS, J. J. Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. III (Arts. 270 a 331). Forense: Rio-São Paulo, s/d, p. 147.

[4] MARQUES, José Frederico. Instituições de Direito Processual Civil, vol. III, 4ª ed. rev. Forense: Rio de Janeiro, 1972, p. 41.

[5] SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo de conhecimento, vol 1, 7ª. ed. Forense: Rio de Janeiro, 2006, p. 225.

[6] MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro, 27 a ed. rev. e atual.  Forense: Rio de Janeiro, 2009, p. 19.

[7] NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado, 18ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 883.

[8] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgRg nos EDcl no REsp 1.176.094/RS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª T., j. 05/06/2012.

[9] MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil Comentado, 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 559.

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