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O comparecimento espontâneo do Réu

Por Eduardo José da Fonseca Costa*

 

Ao Dr. Alberto Jonathas Maia

 

I

Imaginem-se duas situações bastante corriqueiras no foro: 1) após descobrir que está sendo demandado e que nesse mesmo dia ocorrerá dentro em pouco uma tentativa de mediação, o réu comparece à audiência sem ter sido citado e sem ter tido tempo para contratar advogado; após ouvir do mediador um resumo da demanda e enjeitar um acordo, regressa à sua casa ignorando os detalhes da inicial, os efeitos da citação, as consequências da sua eventual revelia, a certificação do seu comparecimento e a decorrente deflagração do prazo para contestar; sem embargo, ainda precisará pesquisar um profissional que possa remunerar, que tenha expertise nessa matéria, que queira defendê-lo e que consiga ingressar nos autos a tempo de elaborar a contestação; 2) o réu recebe mandado de citação do qual consta cientificação sobre todos os termos da petição inicial, os efeitos jurídicos da citação e as consequências da sua eventual revelia; dessa maneira, ciente de que a juntada do mandado aos autos não será breve, procura sem pressa um advogado que saiba, queira e possa defendê-lo. Ora, nota-se de plano que, malgrado tenha colaborado com os trabalhos judiciários oferecendo a sua própria presença ao juízo e, desse jeito, suprindo sponte sua a inexistência ou a existência nula da citação, o réu comparecente dispõe de menos tempo real e recebe menos informações para se defender in casu do que o réu citado. Tudo isso acontece porque, na primeira situação, o juízo houve por bem aplicar ipsis litteris o § 1º do artigo 239 do CPC («O comparecimento espontâneo do réu ou do executado supre a falta ou a nulidade da citação, fluindo a partir desta data o prazo para apresentação de contestação ou de embargos à execução») (obs.: no presente texto, não se distinguirá o réu do executado, dado que o executado é o réu da ação executiva; logo, não importa que essa execução esteja compreendida em uma fase processual ou num processo autônomo).

Aliás, de ordinário, o dispositivo é interpretado e aplicado pelos juízes dessa maneira rasa e pedregosa. Daí se vê que a letra árida do art. 239, § 1º, do CPC, pode ensejar um injustificado tratamento assimétrico entre comparecente e citado. Não há razão para o réu beneficiar-se menos do comparecimento espontâneo do que da citação. A defesa não deve ser mais plena aqui do que ali. Não basta garantir que o citado e o comparecente tenham a mesma chance de defesa [= contraditório]; é fundamental garantir que ambos tenham iguais condições de pleno aproveitamento dessa chance [= ampla defesa]. Não existe base constitucional para a citação ser majus e a comparência minus, como elas se fossem, respectivamente, um super-modo e um sub-modo de integração processual. É indiscutível que a citação é o modo comezinho, consueto, corrente, corriqueiro, costumeiro, quotidiano, frequente, geral, habitual, normal. A mecânica do procedimento é idealizada para que o réu seja integrado ao processo pela via citatória. No entanto, anormalidade não é sinônimo de antijuridicidade. O modo anormal não pode ocasionar para o réu uma privação de tempo e de informações para se defender. Não faz sentido que o réu saia super-informado da citação e sub-informado da comparência, que o tempo real de defesa do citado seja super-cronometrado e o tempo real de defesa do comparecente sub-cronometrado. Afinal, o réu comparececon [= todo, por completo, inteiro] + parere [= surgir, aparecer, mostrar-se] + escere [= formante de verbos que indicam processos duradouros e mudanças de estado]; enfim, apresenta-se ao juízo por inteiro, tal como se sucedia na in ius vocativo romana, conquanto de livre vontade, moto proprio, de maneira espontânea, não forçada, cooperando com o Estado-juiz, que não o citou ou o citou mal. Daí o objetivo do presente artigo: propor um novo modelo jurídico-processual para a comparência, que esteja em consonância intransigente e absoluta com a ampla defesa [CF, art. 5º, LV] e, dessa forma, obedeça aos postulados axiais da garantística processual.

 

II

Após se constituir uma relação jurídica de direito público entre o autor e o Estado-juiz mediante a distribuição da petição inicial, é indispensável constituir-se, outrossim, uma relação jurídica de direito público entre o Estado-jurisdição e o réu. Mas mediante o quê? Como se integra o réu ao processo? Como o processo se completa, se aperfeiçoa, se faz inteiro, tornando-se um tecido orgânico de situações jurídicas a cujos fios estejam simultaneamente atrelados o autor, o Estado-jurisdição e o réu? Decididamente, o modo de integração processual por excelência é a citação. No entanto, para além dos 1) modos citatórios, convocatórios ou heterointegrativos (que se operam por ato jurídico stricto sensu praticado pelo Estado-jurisdição, que é a citação em suas diferentes modalidades), existem os 2) modos comparenciais, não convocatórios ou autointegrativos (os quais se operam por ato jurídico stricto sensu praticado pelo réu, que é o seu comparecimento espontâneo, não forçado, não compelido). No primeiro modo, o réu é integrado ao processo e, assim, é o sujeito passivo da integração; no segundo, o réu mesmo se integra e, dessa maneira, é o sujeito ativo, suprindo a citação faltante ou defeituosa. Ora, não é difícil dar-se conta de que a integração processual é importante demais para ficar à mercê de uma arquitetura funcional. Decerto, é o ato procedimental que se deve resguardar com o grau máximo de garanticidade e, por conseguinte, contra uma instrumentalidade de formas a qualquer preço. Em síntese, é o ato procedimental que, como nenhum outro, deve ser projetado sob o signo do processo como uma tutela do cidadão contra os eventuais arbítrios do Estado-jurisdição [CF/1988, art. 5º, LIV]. Afinal de contas, mediante a integração processual se submete o réu à soberania jurisdicional do Estado em uma causa determinada e aos efeitos jurídicos derivados do exercício estatal das atividades jurisdicionais cognitiva, acautelatória e executiva in casu.

Daí por que essa integração deve ser orientada por uma ética de cuidado e, portanto, por um imperativo de tecnicidade, que assegure a certeza de que o processo foi completado com a pessoa exata do acionado e que ela está ciente da existência da causa, de todo os seus termos, bem como das suas implicações. A contrario sensu, isso significa que a queda no nível de tecnicidade da integração processual acarreta a queda no nível dessa certeza, tornando-se duvidoso o real conhecimento que a pessoa integrada tenha a respeito da causa, dos seus termos e das suas implicações. Sem que se assegure esse conhecimento ao réu, não se lhe pode garantir uma defesa ampla [CF/1988, art. 5º, LV]. Não basta que o réu tenha a ciência inequívoca de que se ajuizou em face dele uma ação. Quem só tem conhecimento acerca da existência de uma ação contra si, não tem o conhecimento suficiente para se defender. Assim, a existência da ação, os seus termos e as suas implicações devem ser comunicados ao réu através da citação (que é um ato técnico), ou do seu advogado (que é o seu representante técnico). Faltando-lhe qualquer dessas informações, só se dá meio passo em direção a uma plenitude de defesa. Destarte, é passo cuja indigência se traduz em inconstitucionalidade. Tome-se o triste exemplo do § 1º do artigo 239 do CPC («O comparecimento espontâneo do réu ou do executado supre a falta ou a nulidade da citação, fluindo a partir desta data o prazo para apresentação de contestação ou de embargos à execução»). Como se vê, a letra fria do dispositivo dá o comparecente por integrado ao processo pelo simples fato do comparecimento, sem haver a certeza de que tem conhecimento inequívoco de todos os termos da ação, bem como as suas implicações. Ante o exposto, é imprescindível conferir ao dispositivo uma interpretação conforme a Constituição. Em suma, é preciso promover uma releitura garantística dos modos de integração processual, propondo-se uma nova gramática a respeito do comparecimento espontâneo do réu. Não se pode permitir que um tema tão sensível seja assingelado por vulgarizações instrumentalistas. Tal como redigido, o § 1º do artigo 239 do Código é uma odiosa agressão à cidadania em juízo.

 

III

A partir de um imperativo da tecnicidade, pode-se estruturar os modos de integração processual desde uma combinação ou um enlace entre dois elementos ou polos: a) o procedimento integrativo; b) a habilitação instrucional do réu para conhecer os termos da ação, os efeitos jurídicos da citação e as consequências que podem advir da sua eventual revelia. Quanto mais solenizado é o procedimento integrativo, menos habilitação técnico-jurídica se exige da pessoa integrada; quanto menos solenizado é o procedimento integrativo, mais habilitação técnico-jurídica se exige da pessoa integrada. Dessa forma, instala-se uma «lógica de gangorra» ou de «compensação mútua» entre esses dois extremos. 1) Nos modos convocatórios de integração processual, a tecnicidade está presente no procedimento citatório per se, pressupondo-se que a figura do citando é leiga e, em conclusão, desprovida de qualquer formação técnico-processual para compreender a gravidade da citação e calcular estratégias racionais de reação. Por isso, o procedimento citatório é configurado como um algoritmo, isto é, como uma sequência de instruções muito bem definidas, as quais, uma vez observadas à risca, são capazes de comunicar inequivocamente ao réu os termos da ação, os efeitos jurídicos da citação e as consequências que podem advir da sua eventual revelia. 2) Em contraposição, nos modos não convocatórios da integração processual, a tecnicidade está presente na figura mesma do representante letrado, supondo-se que comunicará de modo direto e informal ao representado a causa, os seus termos e as suas implicações. Por isso, para se integrar ao processo, basta que o réu compareça sponte propria com o seu advogado e que esse advogado tenha o poder especial de se integrar ao processo em nome do réu (que é poder outorgável por meio de procuração ad judicia).

Fala-se em «poder específico de receber citação», o qual não se inclui nos poderes gerais para o foro [CPC, art. 105, caput] e, por essa razão, depende de previsão expressa na procuração. Contudo, «receber citação» é só um dos aspectos do fenômeno da integração processual. Logo, a expressão diz menos do que pretende. A mesma cláusula procuratória confere ao representante letrado os poderes especiais de: α) ser integrado ao processo recebendo a citação em nome do representado [= poder de heterointegração]; β) integrar-se espontaneamente ao processo comparecendo em nome do representado [= poder de autointegração]. Trata-se de face e contraface de um único e mesmo fenômeno. Destarte, a rigor, a integração processual do comparecente é sempre indireta, mediata ou reflexa: o efeito integratório percute na esfera jurídica do re-presentante (o advogado) e re-percute na esfera do re-presentado (o réu comparecente). A heterointegração processual é um ato jurídico stricto sensu, não um ato-fato jurídico: a vontade do réu de se integrar ao processo é relevante e se expressa por meio da cláusula outorgativa de «poderes especiais de receber citação». Em outros termos, o suporte fático da heterointegração processual é composto, sobretudo, de dois dados: i) o comparecimento espontâneo [dado objetivo, corpus, elemento atécnico] + ii) a vontade livre e consciente de se integrar ao processo por iniciativa própria [dado subjetivo, animus, elemento técnico], que, em geral, se exterioriza mediante a juntada de procuração ad judicia com cláusula expressa de outorga de «poderes especiais de receber citação». Via de regra, o réu ainda não estará integrado ao processo se comparecer sem advogado, com advogado sem procuração, ou com advogado com procuração sem os poderes especiais de receber citação, pois faltará ao ato o quê devido de tecnicidade. A procuração por si só não faz do advogado um substituto da carta, do oficial de justiça, do edital ou do escrivão. Em outras palavras, faltará ao ato a suposição de que o réu representado foi cientificado informalmente pelo seu representante técnico a respeito da causa sub examine iudicis e de todas as suas circunstâncias processuais.

 

IV

No entanto, é essencial sublinhar que a comparecimento espontâneo pode ser elemento nuclear dos suportes fáticos tanto da heterointegração como da autointegração. O Código de Processo Civil prevê cinco modos de heterointegração processual: 1) citação por meio eletrônico [art. 246, caput]; 2) citação por correio [art. 246, § 1º-A]; 3) citação por oficial de justiça [art. 246, § 1º-A, II]; 4) citação por edital [art. 246, § 1º-A, IV]; 5) citação por escrivão ou chefe de secretaria [art. 246, § 1º-A, III]. Sextum non datur (obs.: a citação por hora certa, que se regula nos artigos 252 a 255 do Código de Processo Civil, não é uma modalidade autônoma, mas uma submodalidade, uma das formas possíveis de citação por oficial de justiça). Daí por que não é integrado ao processo o réu citado por meio infralegal ou extralegal (no tocante ao tema, v., p. ex., nosso A citação por meio eletrônico no indevido processo resolucional. <https://juridicamente.info/a-citacao-por-meio-eletronico-no-indevido-processo-resolucional/>). Mediante redação demasiado lacônica, o CPC prescreve que a citação será realizada por escrivão ou chefe de secretaria «se o citando comparecer em cartório». Lendo-se o Capítulo II do Título II do Livro IV («Da citação»), nota-se a penúria normativa do regime jurídico da citação por escrivão ou chefe de secretaria. Só as demais modalidades citatórias são pormenorizadas pelo Código. Sabe-se quem deve citar (o escrivão ou o chefe de secretaria), quem deve ser citado (o réu), quando se deve citar (quando do comparecimento) e onde se deve citar (em cartório); porém, nada se diz sobre a forma nem sobre o conteúdo do ato citatório. Seja como for, a partir de um imperativo de tecnicidade é possível uma compreensão mais adequada do dispositivo, preenchendo-se-lhe todas essas lacunas.

Para que o escrivão ou o chefe de secretaria tenham o poder-dever funcional de citar in concreto, é necessário que o réu compareça de modo espontâneo: i) em cartório ou em audiência preliminar de conciliação ou mediação, i.i) sem advogado, i.ii) com advogado ainda sem procuração, ou i.iii) com advogado munido de procuração, mas sem «poderes especiais de receber citação»; ii) em audiência de instrução e julgamento, sem advogado (caso em que o juiz redesignará a audiência para o réu ter tempo suficiente de calcular uma estratégia racional de defesa). Se nascer para o escrivão ou o chefe de secretaria a função de citar in concreto, não deverá circunscrever-se à mera certificação do comparecimento. Existe uma distância abismal entre o citar (que é um ato complexo de força constitutiva positiva) e o tão somente certificar (que é um ato simples de força declarativa). Citar significa identificar o demandado e, uma vez que esteja identificado, dar-lhe ciência formal dos termos da ação, dos efeitos jurídicos da sua citação, bem como das consequências que podem decorrer da sua eventual revelia, convocando-o, assim, para o processo. Para isso, o escrivão ou o chefe de secretaria devem redigir o respectivo termo de ciência de todas essas implicações, lê-lo em voz alta ao réu, identificá-lo, colher-lhe a assinatura em cartório e entregar-lhe em seguida a contrafé, certificando eventual recusa de assinatura e/ou de recebimento. Se o escrivão ou chefe de secretaria nada disso fizeram, restringindo-se a uma mera certificação do comparência do réu em cartório, então o réu não terá sido deveras integrado ao processo. Jamais se estabeleceu uma relação jurídica de direito processual entre o réu e o Estado-jurisdição e, por conseguinte, a decantada angularização, que completa o processo fazendo dele uma rede organizada e envolvente de situações jurídicas. O escrivão ou o chefe de secretaria nem meio passo deram para que a integração processual se efetuasse. Tudo ainda se limita a uma relação jurídica de direito processual entre o autor e o Estado-jurisdição. Só existe A-J, mas não ainda A-J-R. A certificação pura e simples é ato jurídico stricto sensu somente capaz de produzir o efeito certificatório per se. Nada mais do que isso. Sob o ponto de vista prático, é muito pouco.

 

V

Por exclusão lógica, o réu será integrado ao processo por sua própria iniciativa – portanto, de um modo não citatório – caso compareça espontaneamente: a) em audiência preliminar de conciliação ou de mediação, acompanhado de advogado com «poderes especiais para receber citação»; b) nos autos mediante a juntada de procuração com outorga de «poderes especiais para o advogado receber citação», contanto que seja possível acessá-los de imediato (de maneira oposta, se antes da citação o advogado juntar aos autos procuração sem outorga de «poderes especiais para receber citação», retirá-los em carga, analisá-los e devolvê-los sem peça de defesa, mesmo assim o réu não terá sido integrado ao processo); c) em audiência de instrução e julgamento, com advogado; d) nos autos mediante a juntada de peça de defesa, mesmo que a destempo. Em (c) e (d), pouco importa se o ato é praticado por advogado com ou sem procuração, ou se a procuração lhe confere «poderes especiais para receber citação»: o réu comparece espontaneamente à audiência de instrução e julgamento para a prática potencial ou efetiva de atos imediatos de defesa (ex.: alegação de impedimento ou suspeição do magistrado; alegação de incompetência absoluta do juízo; alegação de nulidades em geral; inquirição do perito, dos assistentes técnicos, da parte contrária e das testemunhas; contradita de testemunhas; impugnação à juntada de documentos; manifestação sobre documentos novos juntados em audiência; formulação de requerimentos; realização de debate ou oferecimento de razões finais orais), podendo-se inferir, portanto, que já tenha a ciência probabilíssima não só da existência em si da ação, mas, acima de tudo, dos exatos termos da ação contra a qual doravante empreenderá reação.

Aí, o suporte fático da heterointegração processual é preenchido com os seus dois elementos fundamentais: i) o comparecimento espontâneo [dado objetivo, corpus, elemento atécnico] + ii) a vontade livre e consciente de se integrar ao processo por iniciativa própria [dado subjetivo, animus, elemento técnico]. Entretanto, essa vontade não é deduzida a partir de uma cláusula procuratória expressa de outorga de «poderes de receber citação». Não há uma declaração negocial específica. A bem da verdade, a vontade do réu não é demonstrada por intermédio de uma investigação sobre os elementos psíquicos do seu interior, mas induzida desde o seu comportamento concludente [al.: konkludentes Handeln], desde um fato externo demonstrativo [lat.: factum concludens], desde uma conduta incompatível com uma vontade diferente daquela que se pode deduzir dos próprios fatos. Ingressar no processo para a prática potencial ou efetiva de um ato imediato de defesa consiste em uma «manifestação tácita indireta» de que o réu quer integrar-se tendo já um conhecimento altamente provável de todos os termos da ação. Em outras palavras, esse ingresso cria uma «imagem global interpretativa», que permite inferir-se – de acordo com a «métrica do litigante médio» e segundo os «usos da vida diária forense» – a vontade livre e consciente do réu, embora implícita, de se integrar ao processo por iniciativa própria (no que concerne à noção jurídica de concludência, v., p. ex.: PINTO, Paulo Mota. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico. Coimbra: Almedina, 1995). Sem embargo, em (c), pode o réu não se defender incontinênti, mas apenas invocar a falta ou a nulidade da citação, pedindo a redesignação da audiência; nesse caso, o prazo para a apresentação de resposta fluirá a contar da intimação da decisão que reconhecer a falta de citação ou lhe decretar a nulidade (o que, abstraindo-se a redação inconstitucional do § 1º do artigo 239 do CPC, tem arrimo na aplicação analógica do § 9º do artigo 272 do mesmo diploma legal). Não se pode compelir o réu a apresentar uma resposta sob condição resolutória, sem antes aguardar que o juiz se pronuncie a respeito da inexistência ou da deficiência da citação.

 

VI

Como se pôde ver ao longo deste pequeno texto, a letra fria do § 1º do artigo 239 do CPC sugere que o dispositivo legal foi concebido à luz de um paradigma inquisitivo-instrumental, nada obstante o inciso LIV do artigo 5º da CF/1988 institua um modelo acusatório-adversarial e, assim, faça do processo um direito de defesa do cidadão jurisdicionado contra os eventuais desvios e excessos do Estado-jurisdição [al.: Abwehrrechte gegen den Staat]. À vista disso, não existe razão para o comparecente ser integrado às pressas, de um jeito vulgar e informal, como se um desfecho processual rápido dependesse a todo custo de uma rápida integração processual. O comparecente é o sujeito, não o objeto da integração. Em vez de se assujeitar a ela, na realidade ele a determina. Compete apenas a ele decidir quandoonde e como se integrará ao processo. Apresentar-se ao juízo prescindindo da citação é uma deliberação de vontade e consciência que o réu toma a partir de um cálculo personalíssimo de oportunidade e conveniência privadas. Enfim, o réu tem o poder formativo gerador de integrar-se ao processo quando, onde e como bem queira, fazendo nascer entre ele mesmo e o Estado-juiz a relação jurídica de direito público que até então faltava. Diante do exposto, é possível estipularem-se alguns parâmetros para a resolução de questões práticas sobre o comparecimento espontâneo: 1) se a vontade do réu de se integrar ao processo for certa ou altamente provável, a sua comparência resultará na sua integração processual; 2) a vontade do réu será certa se comparecer espontaneamente com advogado – em cartório, em audiência ou nos autos – munido de procuração com cláusula de outorga de «poderes especiais de receber citação», contanto que seja possível o pronto acesso aos autos; 3) a vontade do réu será altamente provável se comparecer espontaneamente com advogado – em cartório, em audiência ou nos autos – para a prática, potencial ou efetiva, de ato imediato de defesa; 4) afora essas duas situações, deve-se citar o réu, (re)abrir-lhe o prazo de contestação e provê-lo das informações necessárias ao exercício regular da ampla defesa (obs.: justamente porque o comparecimento espontâneo é um ato jurídico em sentido estrito, não um ato-fato jurídico, só pode ser praticado pelo réu por intermédio de advogado).

Obedecendo a esses critérios, o magistrado nunca se perderá numa postura açodada, que atropele a ampla defesa em prol da celeridade processual ou de algum fetiche moderno eficienticista. Apesar disso, ainda hoje, a comparência tem sido tratada com desprezo tanto pela lei (que lhe dedica um dispositivo sozinho e lacônico) quanto pela doutrina (cuja produção bibliográfica acerca do assunto é nenhuma). Presta-se pouca atenção ao instituto. Na generalidade dos casos, em matéria jurídico-processual, essa escassez legislativo-doutrinária redunda em hiatos bem aproveitados pelo arbítrio judicial. Pior: torna-o rotineiro e, em consequência, desapercebido. Não por outro motivo, a jurisprudência brasileira a respeito do comparecimento espontâneo do réu tem sido resumida a uma interpretação bastante superficial do § 1º do artigo 239 do CPC. Por detrás do «direito sagrado do réu de ser citado», porém, existe algo muito mais amplo: o direito do réu de ser integrado ao processo de modo estruturado. Assim sendo, tanto a citação [= heterointegração] como a comparência [= autointegração] devem assumir uma compleição técnica: a primeira tecnicizada pelo seu procedimento algorítmico; a segunda, pela presença zeladora do advogado do réu. A comparência não é um substituto ou um sucedâneo esfrangalhado, coloquial e profano da citação. Não se trata de uma armadilha na qual o juiz reza para o réu cair. Existe uma forte sinonímia entre integração e palavras como acomodação, agregação, inserção e inclusão. Em um certo sentido, todas elas transmitem a ideia de acolhimento. É bem verdade que o réu recém-integrado não recebe as boas-vindas. Mas é também verdade que não deve ser mal recebido.

 

*Juiz Federal em Franca/SP. Bacharel pela USP. Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (triênio 2016-2018). Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual. Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual

 

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