O conflito aparente de normas no julgamento de contratos civis celebrados sob a égide do Código Civil de 1916 na óptica do Código Civil de 2002.
Nos termos do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Eis a lógica normativa do princípio do Tempus Regit Actum, positivado, também, nos artigos 2º, 6º e parágrafo 1º do Decreto-Lei nº 4.657/42, que impõe a aplicação das leis vigentes aos fatos juridicamente relevantes quando do tempo de sua realização, em respeito ao princípio da segurança jurídica.
Por outro lado, narra o artigo 8º do Código de Processo Civil que “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.”
Não obstante, existem no ordenamento jurídico situações excepcionais que escapam ao regramento da irretroatividade da lei, inclusive, no Direito Civil.
Eis o objeto de estudo da presente contribuição.
Os Desembargadores da 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná decidiram no último dia doze de abril que não há óbice à revisão contratual de pacto celebrado e esgotado sob à égide do Código Civil de 1916 consoante as disposições do novo Código Civil de 2002.
Em breve retrospecto, o caso julgado versava de Recurso de Agravo de Instrumento oriundo de Ação de Liquidação Parcial de Sentença por Arbitramento, que homologou os cálculos do Perito e determinou a retificação do valor referente as multas contratuais ao patamar de 20% do valor faturado, ambos corrigidos monetariamente nos termos previstos no contrato, até a data da decretação da falência da ré, com fundamento no artigo 413 do Código Civil vigente.
Inconformada, a parte credora interpôs o devido recurso arguindo que os dispositivos do Código Civil de 2002 seriam inaplicáveis ao caso em tela, eis que os contratos foram firmados no mês de maio do ano 2000 e rescindidos em 2002, em virtude do inadimplemento da parte Agravada, devendo-se observar a irretroatividade do Código Civil ainda não vigente ao tempo dos fatos sub judice. Destacou-se ainda os princípios do Pacta Sunt Servanda e da Força Obrigatória e Vinculante dos Contratos Civis.
Não obstante, a Corte Paranaense observou que o artigo 2.035, caput, e parágrafo único, do Código Civil de 2002, preveem a pujança da legislação atual sobre o Código Civil de 1916, confirmando a decisão que outrora relativizou a avença firmada entre as partes.
A propósito, diz a norma civil:
Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
Arrematou a Corte, ainda, que “não há discussão que o contrato precisa ser interpretado de maneira sistemática, observando-se os preceitos constitucionais, em especial a função social do contrato (condição de cláusula geral), posto que a aplicação daquele deve ser voltada ao social, objetivando a igualdade das partes e o equilíbrio contratual, tornando mais justas as relações jurídicas entre os particulares.”
De fato, verifica-se que o entendimento do Órgão de Justiça coaduna-se com os estudos contemporâneos acerca da disciplina contratual.
Já é amplamente sabido pelos mais diversos operadores do Direito que o legislador ordinário, quando elaborou o “novo” Código Civil, promoveu a chamada Constitucionalização do Direito Civil, dando nova roupagem à legislação civil, trazendo nova expressão jurídica às relações sociais das quais se incluem os contratos.
Nesse ínterim e, também, na seara contratual, confira-se a excerto da decisão proferida pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Agravo Regimental em Recurso Especial nº 838.127/DF, de Relatoria do Ministro Luiz Fux:
6. Deveras, consoante cediço, o princípio pacta sunt servanda, a força obrigatória dos contratos, porquanto sustentáculo do postulado da segurança jurídica, é princípio mitigado, posto sua aplicação prática estar condicionada a outros fatores, como, por v.g., a função social, as regras que beneficiam o aderente nos contratos de adesão e a onerosidade excessiva.
7. O Código Civil de 1916, de feição individualista, privilegiava a autonomia da vontade e o princípio da força obrigatória dos vínculos. Por seu turno, o Código Civil de 2002 inverteu os valores e sobrepõe o social em face do individual. Dessa sorte, por força do Código de 1916, prevalecia o elemento subjetivo, o que obrigava o juiz a identificar a intenção das partes para interpretar o contrato. Hodiernamente, prevalece na interpretação o elemento objetivo, vale dizer, o contrato deve ser interpretado segundo os padrões socialmente reconhecíveis para aquela modalidade de negócio.
(AgRg no REsp n. 838.127/DF, Primeira Turma, julgado em 17/2/2009.)
Destaque-se, por outro lado, que o Direito Civil contemporâneo não deixou de ser influenciado pelos valores liberais do Código Civil de 1916, mormente na contemporaneidade. Vide, a propósito, a Medida Provisória nª 881/2019, convertida na Lei nº 13.874/2019 – que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica – e que promoveu a revisão do Código Civil de 2002, conciliando a contemporânea disciplina contratual e a matriz liberal – tal como a do Código Civil de 1916 – para disciplinar a possibilidade de revisão dos negócios jurídicos, ainda que excepcionalmente.
A propósito:
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
No caso em tela, diante da excepcionalidade do conteúdo do artigo 2.035, caput, e parágrafo único, do Código Civil de 2002, indene que não há de se falar em conflito aparente de normas no julgamento revisional sobre os efeitos do contrato celebrado sob à égide do Código Civil de 1916 consoante as disposições da Lei 10.406/2002, eis que o ordenamento jurídico vigente bem concilia a aplicabilidade dos valores jurídicos contemporâneos com as normas legais de outrora.
Ementa do julgamento citado no texto:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO ORDINÁRIA, EM FASE DE LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA. DECISÃO QUE JULGOU PARCIALMENTE PROCEDENTE O PEDIDO DE LIQUIDAÇÃO POR ARBITRAMENTO. RECURSO DA REQUERENTE.1. RETROATIVIDADE DO ART. 413, DO CC. CONTRATO CELEBRADO NA VIGÊNCIA DO CC DE 1916. POSSIBILIDADE DE ALCANCE, EXCEPCIONAL, AO DIREITO ADQUIRIDO. REDUÇÃO DA CLÁUSULA PENAL QUE É MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. PRECEDENTES. ART. 2.035, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CC, QUE ESTABELECE A RETROATIVIDADE MOTIVADA.- É possível a retroatividade do art. 413, do CC de 2002, já que a redução da cláusula penal é norma geral de ordem pública, alcançando-se, excepcionalmente, o direito adquirido consubstanciado em contratos celebrados ainda na vigência do CC de 1916, de acordo com o estabelecido no art. 2.035, parágrafo único, do CC, assegurando-se os princípios constitucionais da função social da propriedade e dos contratos. 2. POSSIBILIDADE DE ABRANDAMENTO DA CLÁUSULA PENAL, POR TRATAR DE MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. CLÁUSULA QUE PODE SER REVISTA SEM AFRONTA À COISA JULGADA. EM SITUAÇÕES EXCEPCIONALÍSSIMAS, O PODER PÚBLICO NÃO PODE SER CONIVENTE COM O ENRIQUECIMENTO DESPROPORCIONAL DA PARTE, MESMO APÓS A FORMAÇÃO DA COISA JULGADA. NO CASO, VALOR DA CLÁUSULA PENAL QUE É EXCESSIVO E IMPÕE REDUÇÃO.- Ora, “(…) verificada a efetiva existência de coisa julgada quanto à forma de cobrança da multa pela rescisão antecipada do contrato por culpa da ora agravante, fica automaticamente refutada a alegação de que o juiz tem o dever de reduzir a cláusula penal quando se verifique sanção excessiva ou o cumprimento parcial da obrigação (…)” (STJ, Decisão monocrática, ARESP n. 1704267/DF, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, julgado de 1.7.20).- Ademais, embora o Poder Público não possa ser conivente com o enriquecimento proporcional da parte, a relativização da coisa julgada só tem sido admitida quando o valor da cláusula penal é excessivo, como no caso. 3. INCIDÊNCIA DA BASE DE CÁLCULO ESTABELECIDA PARA A CLAÚSULA PENAL, NO TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL, SOBRE POSSÍVEL FATURAMENTO APONTADO PELO PERITO. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE INCIDÊNCIA SOBRE O VALOR DEVIDAMENTE COMPROVADO COMO FATURADO, PELA DOCUMENTAÇÃO, AINDA QUE INCOMPLETA. SITUAÇÃO CONCRETA PECULIAR. REDUÇÃO EXCESSIVA DA CLÁUSULA PENAL. NÃO CONFIGURADA. PERCENTUAL DELIMITADO QUE ATENDE ÀS FUNÇÕES SANCIONATÓRIA E COMPENSATÓRIA. OBSERVÂNCIA DAS REITERADAS INFRAÇÕES CONTRATUAIS.- Não se mostra cabível a adoção dos cálculos por estimativa, pois os serviços prestados eram remunerados por medição, ou seja, dependiam da execução do objeto do contrato por demanda futura e incerta no momento da pactuação.- Por essa razão e diante da falta dos respectivos instrumentos, não restou demonstrada a (in)execução contratual apta para validar o faturamento global estimado como critério de incidência da cláusula penal.- O percentual de 20% (vinte por cento) não se caracteriza como redução excessiva, vez que observa os sucessivos descumprimentos contratuais, além de atender às diretrizes sancionatória e compensatória das multas. Recurso de agravo de instrumento não provido.
(TJPR – 18ª Câmara Cível – 0035622-90.2021.8.16.0000 – Curitiba – Rel.: Desembargador Pericles Bellusci de Batista Pereira – J. 12.04.2023)