O olhar da transformação de conflitos
Um físico quântico isolou o exato momento em que duas pessoas deixaram de se compreender.
O ponto de tempo está aberto à visitação em um museu em Berlim.
(Bernardo Brayner)
Muito se fala em “solução” ou “resolução’’ de conflitos no âmbito das práticas de conciliação e mediação jurídica, judicial ou extrajudicial. Essa inclusive é a linguagem utilizada pelo nosso Código de Processo Civil, e também amplamente explorada pela doutrina. Ainda que esses termos comportem a abertura inerente aos múltiplos significados da linguagem, talvez concordemos que eles nos remetem a uma ideia de “encerramento”, de conclusão do conflito.
E não é mesmo esse o desfecho desejado pelas partes envolvidas? O fim do conflito, que tanto angustia, tanto furta o sono, tanto tira a paz?
A nossa capacidade de encerrar certos assuntos é, de fato, real. Não precisamos nem recorrer aos livros ou aos mestres, aprendemos com a nossa própria experiência que é possível sim dar um fim – quase – bem acabado a certos temas ou relações que um dia viveram em nós, mas que eventualmente perderam a voz (o sentido). Contudo, um encerramento “bem acabado” de um conflito não segue muito bem protocolos rígidos, e tampouco combina com a nossa pressa costumeira. Ele exige uma certa dose de desapego, outra tanta de perdão ou um mínimo de compreensão, o que requer uma verdadeira transformação da nossa posição ante a situação, e nem sempre tudo isso vem no tempo cronológico de uma sessão.
Por outro lado, o nosso desejo por um encerramento conflitual, de preferência rápido, prático e seguro, é legítimo, mas por vezes nos faz cair na ilusão de que basta seguir algumas diretrizes, comparecer a um número pré-determinado de sessões de mediação, e todo o conflito estará morto e enterrado.
É certo que é essencial dar um contorno, uma forma, uma segurança procedimental à mediação, porém, quanto mais flexibilidade e espaço ela puder comportar, maior potencial transformativo ao conflito ela emprestará.
Nesse sentido, nos abrirmos a pensar nas bases para uma possível “transformação” de conflitos no âmbito de uma mediação – sobretudo em casos de família, societários ou que envolvam relações significativas a serem preservadas – parece uma importante chave para uma efetiva “solução” do conflito, que envolva um amadurecimento-aprendizado com as dificuldades enfrentadas e um aumento da potência de vida das partes envolvidas.
Mas, afinal, como seria o olhar de uma abordagem transformativa de conflitos?
No poema que inicia este texto, o autor brinca com a possibilidade de identificar com precisão o momento em que duas pessoas começaram a se desentender. Este seria acessível e poderia ser revisitado, como numa ida ao museu. Daí surgem as perguntas: para que revisitar o epicentro de um conflito? Não seria melhor deixar embaixo do tapete os reais motivos da desavença, e focar só no que é prático, objetivo, superficial? Depois, é só cuidar para nunca mais mexer nem um milímetro daquele tapete, para que toda aquela poeira não se espalhe de novo.
Sabemos muito bem, também pela nossa experiência, que isso não é possível. Tal como a Psicanálise, que entende que um conflito interno não se encerra com a superficialidade de um diagnóstico encontrado em um manual estilo “cara-crachá” de pretensões objetivas (DSM), também a abordagem-visão transformativa dos conflitos entende que o um conflito relacional não se encerra sem se enxergar e trabalhar o que nele há de mais profundo, em suas múltiplas camadas. Se a poeira acumulada não for vista, recolhida, analisada e transformada, ela ainda estará ali, se acumulando e prestes a explodir para todos os lados (novos lados) com o mínimo movimento.
Nesse sentido, o pacificador internacional John Paul Lederach foi um dos primeiros a se utilizar dessa terminologia e a pensar seus sentidos, ainda nos anos 1980. Ele conta em seu livro “Transformação de Conflitos” que considera essa “uma expressão precisa”, pois contempla os “esforços de mudança construtiva” ao longo de um procedimento – de mediação, por exemplo –, que “vão além da resolução de problemas específicos e pontuais”. “Trata-se de uma linguagem correta do ponto de vista científico porque se baseia em duas realidades verificáveis: o conflito é algo normal nos relacionamentos humanos, e o conflito é motor de mudanças”[1], complementa.
Considerando essas duas realidades observáveis, de que o conflito é inerente à vida e que é precisamente a partir da tensão que progredimos, John Paul Lederach propõe um olhar para os conflitos a partir de três lentes[2]:
(i) uma lente ampla, que ajude a focalizar as coisas que estão a grande distância;
(ii) uma lente média, que mostre as coisas que estão a meia distância;
(iii) uma lente de aumento, que mostre o que está mais próximo.
A lógica no raciocínio do autor é que, quando enxergamos apenas com as nossas lentes de aumento, focando apenas nos problemas imediatos que se apresentam, gastamos todo o nosso tempo, energia e recursos em soluções que podem até diminuir a nossa ansiedade e sofrimento no momento, mas que não se sustentarão a longo prazo, justamente por estarmos deixando de olhar o conflito em seu aspecto mais amplo. Isso, contudo, não significa que as “lentes de aumento” não sejam necessárias: “cada lente tem sua função, que é a de focalizar um determinado aspecto da realidade”[3], como diz o autor.
Tal como um mecanismo de uma câmera fotográfica, cujo foco varia a partir da manipulação da sua abertura (diafragma), quando focamos em determinado aspecto da realidade, os demais ficam desfocados. Já quando focamos em outro, mais ou menos amplo, os outros perdem sua nitidez, e por aí vai. E nessa linha, como conclui o autor, “precisamos de várias lentes para enxergar diferentes aspectos de uma realidade complexa. […] Todas devem se relacionar com as outras para que as várias dimensões da realidade apareçam juntas como um todo”[4].
Utilizar as diversas lentes (aberturas de foco para as diversas camadas do conflito) nos ajuda a encontrar o exato momento em que duas pessoas deixaram de se compreender, como dizia o nosso poema inicial. Foi esse momento que marcou e influenciou todas as demais reações e discussões envolvidas em um conflito, que muitas vezes já nem se lembra ou nunca se soube como começou. Ainda que não se consiga ir tão longe – porque, afinal, todo o trabalho da mediação depende da disposição, abertura e sobretudo do tempo oportuno das partes (Kairós) –, chegar o mais próximo possível desse epicentro já liberará um tanto de energia represada, bomba relógio a ser a qualquer gatilho disparada.
Tudo isso tem a ver com uma mudança de perspectiva e consequentemente de postura diante dos conflitos. Da mesma forma como, antigamente – se é que já podemos falar assim –, a reação automática a um conflito envolvendo direitos era a de rapidamente acionar um advogado para que este, quase que belicamente, contasse ou muitas vezes criasse histórias e argumentos que dessem conta de servir como uma verdadeira faca a ser enfiada no peito da outra parte, para que ela fique sem reação, sem resposta possível, e, logo, sem direito plausível, podemos arriscar dizer que uma nova cultura-postura autocompositiva está surgindo. E dentro dela, cabe a nós, profissionais de práticas colaborativas, ampliar as camadas de satisfação de uma autocomposição, pois essas reverberarão positivamente naquelas vidas envolvidas e, em último nível, em toda a sociedade.
Afinal, se ganhar a briga, consagrar-se vencedor e eliminar o perdedor, já sabemos, não satisfaz, por que arranhar a superfície de um conflito- relação o faria?
Nosso desejo por praticidade precisa saber negociar com a nossa profundidade.
Referências:
Poesia: BRAYNER, Bernardo. Bicho Geográfico. Recife: CEPE, 2020.
[1] LEDERACH, John Paul. Transformação de Conflitos. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012, p. 17.
[2] Ibidem, p. 21.
[3] Ibidem, p. 21-22.
[4] Ibidem, p. 22.