O paradoxo do Navio de Teseu e o Anteprojeto de “novo” Código Civil: reflexões a propósito da Jornada Jurídica da Universidade Estadual do Maranhão
Por Venceslau Tavares Costa Filho*
Ao tempo da publicação do relatório geral da Comissão de Atualização do Código Civil no Senado, publicamos um texto tecendo considerações sobre o relatório na Gazeta do Povo.[1] Em razão de convite do professor Rodrigo Raposo e da professora Jaqueline Demétrio para proferir palestra na tradicional Jornada Jurídica da Universidade Estadual do Maranhão no dia 30 de outubro de 2024, resolvi revisitar aquelas reflexões anteriores, tendo em vista o texto do Anteprojeto apresentado pela Comissão. Trata-se de um novo Código Civil ou é mera atualização do texto atual?
Em março de 2024, o Senador Rodrigo Pacheco ocupou a tribuna da Câmara alta no intuito de tranquilizar a sociedade, e afirmar que o objetivo da Comissão criada por ele “não é elaborar um novo código civil, mas sim suprir lacunas de normas que foram criadas 20 anos atrás”.[2] Entretanto, é curioso notar que não parece ser esta a percepção da comissão nomeada por ele.
Analisemos então a afirmação da Juíza Patrícia Carrijo, membro da Comissão, em texto publicado no Portal Migalhas: “Na seara dos sepultamentos do que é ultrapassado, tive a honra de ser conclamada a participar da comissão de juristas para elaboração do anteprojeto do novo Código Civil brasileiro. Ela foi criada em setembro do ano passado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, é liderada pelo ministro do STJ e corregedor do CNJ, Luis Felipe Salomão. O texto deitará terra sobre o de 2002”.[3]
Neste mesmo sentido, também é possível destacar texto publicado no Conjur pelo Professor Ricardo Campos (outro membro da comissão) intitulado “Responsabilidade civil dos provedores de plataformas digitais no novo CC”;[4] bem como a chamada para o curso ministrado por Maria Berenice Dias na Escola Superior da Advocacia do Distrito Federal, que também foi membro da comissão: “O impacto do novo código civil no direito das famílias”.[5]
Para além do caráter mórbido da referência a sepultamentos e enterros, a afirmação da magistrada (e dos outros membros) revela que a própria comissão tem a percepção de que está a fazer um novo Código Civil, embora o Senador Pacheco negue o intento. Recentemente, foi apresentado Anteprojeto, com mais de mil dispositivos e com a proposta de introdução de um livro de direito digital ao Código, inexistente na legislação atual. Aparentemente, a proposta de modificação do texto será ampla, apesar de alguns membros da Comissão ainda negarem a pretensão de produzir um novo Código Civil.
Tal situação remete ao Paradoxo do Navio de Teseu, divulgado por Plutarco. Após realizar diversas façanhas (tais como a vitória sobre o Minotauro em Creta), Teseu regressou com seu navio a Atenas. Esta embarcação foi conservada por séculos, até a época de Demétrio de Falero, graças aos atenienses que substituíam o madeiramento antigo por um novo: “de tal modo que, para os filósofos, este navio representava um exemplo adequado à discussão sobre o ‘argumento do crescimento’, defendendo uns que o navio continuava a ser o mesmo e outros que já o não era”.[6]
A questão diz respeito ao debate entre identidade e mudança. A partir do momento em que se verifica que todas as tábuas do navio foram trocadas, ainda se pode afirmar que aquele é o mesmo navio de Teseu? E se as tábuas velhas foram utilizadas para a construção de outro navio, pode-se afirmar que este também é o navio original? Ora, pode-se afirmar que o Código Civil atual, cujo direito de família está assentado no princípio da monogamia e rejeita a concessão de direitos próprios de família a relações concubinárias, ainda será o mesmo Código Civil se passar a reconhecer tais uniões paralelas?[7]
Tal problema da identidade remete a uma espécie de vagueza em relação a individuação. A vagueza corresponde a uma carência de precisão, mesmo diante de conceitos que parecem ser precisos.[8] Exemplo disto é o conceito de “democracia”, que pode ser manejado de modo a abarcar regimes que adotam o sistema de partido político único, a exemplo da Coreia do Norte, ou República Popular “Democrática” da Coréia.
É esta vagueza talvez que faz com que certos membros da Comissão bradem que não tem a pretensão de legalizar a poligamia, apesar do texto apresentado a apreciação do Senador Rodrigo Pacheco reconhecer direito a partilha de bens para as uniões concubinárias, e retirar a vedação da deixa de bens ao concubino (ou concubina) pela via testamentária.
Outro aspecto a ser analisado neste debate remete a questão do tempo e das condições históricas para a tramitação deste Projeto. O projeto de Clóvis Beviláqua (de 1899) só veio a se converter em Código Civil no ano de 1916, e o projeto de Miguel Reale (de 1973) apenas veio a ser transformado em Código Civil em 2002. Contudo, leis tais como a Consolidação das Leis do Trabalho (1943) e o Código Penal (1940) foram aprovadas em pouquíssimo tempo. A razão para a agilização destes trabalhos legislativos é elementar: a ausência de instituições democráticas.
Como pontuou Otávio Luiz Rodrigues Jr, a demora na tramitação dos projetos não pode ser considerada um desvalor. A Lei de Modernização do Direito das Obrigações, que resultou em ampla modificação do Código Civil alemão em 2002, é fruto de mais de duas décadas de grandes debates na academia alemã.[9] Para o civilista cearense, duas questões devem ser enfrentadas no debate sobre a necessidade de uma nova codificação: 1º) “Os códigos precisam assentar-se em princípios e em um sistema. Mudar um código é, em alguma medida, reconhecer a quebra de um paradigma teórico (ou também filosófico e político); e 2º) “O segundo ponto que merece atenção está na importância dos códigos como símbolos do desenvolvimento civilizatório de uma nação. Os códigos são produtos culturais e, nessa condição, devem também merecer o respeito do legislador”.[10]
Ora, ao menos em relação ao direito de família, parece-nos que a resposta a primeira questão deve ser negativa, posto que inexista consenso doutrinário acerca da substituição de um direito de família assentado no princípio da monogamia por um direito de família aberto a uniões concubinárias. Ademais, em relação a segunda questão, parece-nos que está longe de ser respeitosa uma manifestação tal como a apresentada por membro da comissão no sentido de afirmar que irá “enterrar” o Código Civil atual ou “jogar terra” sobre ele.
As questões relacionadas ao estado civil das pessoas naturais, por exemplo, em virtude da indisponibilidade de tais direitos e da oponibilidade a terceiros, exigem a publicidade. Daí porque a filiação deve ser provada pelo registro civil, a união estável precisa ser pública e porque também se exige publicidade para o casamento. Ademais, por ser um espaço reprodutor de desigualdades, o legislador costuma colocar mecanismos de controle no sentido de reduzir possíveis abusos de direito dos pais e responsáveis por filhos menores ou pessoas incapazes.
Neste sentido, o Código Civil atual (art. 1.534) exige que a solenidade de celebração do casamento deve se dar em prédio público ou privado, com toda a publicidade, de modo que mesmo os prédios privados devem permanecer com as provas abertas durante o ato. A proposta do Anteprojeto contudo é no sentido de simplesmente revogar tal dispositivo, além de eliminar a fase de publicação das proclamas, que visam a conferir prazo para a oposição de impedimentos. Tal proposta rompe com longa tradição do direito jurídico luso-brasileiro, que acolheu a vedação ao casamento secreto desde o Concílio de Trento, encerrado em dezembro de 1563. Tal definição remonta ao Decreto Tametsi, que determinou serem válidos apenas os matrimônios celebrados “na presença do pároco dos cônjuges e de duas testemunhas, precedida a realização, por três vezes da pública proclamação dos matrimônios a celebrar, em três dias festivos subsequentes”.[11]
Além disto, o Código Civil atual afirma que não devem casar o tutor e o curador com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela e não estiverem saldadas as respectivas contas, nos termos do inciso IV do art. 1.523 do Código Civil vigente. A proposta trazida no Anteprojeto é no sentido de simplesmente revogar tal proibição, abrindo a possibilidade para os casamentos entre pessoas tuteladas e curateladas com seus respectivos tutores e curadores, mesmo que estejam sob tutela ou curatela e sem a necessidade de prestação de contas. Abre-se a preocupante possibilidade de confusão entre o patrimônio do tutor e seu pupilo, por exemplo. Fora isto, sendo a pessoa tutelada menor de 18 anos, o tutor deverá autorizar o casamento do tutelado com ele mesmo. Será que pode haver algum abuso?
Parece-nos que tais disposições podem vulnerar a proteção do patrimônio das crianças e adolescentes sob tutela, bem como do patrimônio das pessoas com deficiência sob curatela. Também cabe questionamento sobre possíveis pressões exercidas pelo tutor ou curador para a celebração do casamento, de modo a invalidar o ato; o que explica porque nosso sistema fixou tais proibições há muito tempo.
Em verdade, parece existir uma atitude de desafio até mesmo em relação às decisões do Supremo Tribunal Federal. Um exemplo disto está na proposta de revogar o inciso II do art. 1.641 do Código Civil, que prevê a regra da separação de bens para o casamento e união estável dos maiores de 70 anos. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 1.236, definiu que tal regra não deve ser considerada inconstitucional, desde que interpretada no sentido de admitir que as pessoas com mais de 70 anos possam afastar o regime da separação obrigatória mediante manifestação de vontade. Ou seja, na ausência de manifestação de vontade expressa em sentido diverso, o regime a ser adotado no casamento e união estável dos maiores de 70 anos é o regime da separação de bens. Contudo, a proposta da Comissão é no sentido de revogar tal dispositivo e, assim, aplicar o regime da comunhão parcial de bens mesmo ante a falta de manifestação de vontade expressa dos maiores de 70 anos, em evidente discrepância com o entendimento recentemente adotado pelo Supremo Tribunal Federal, que vai no sentido de respeitar a liberdade dos nubentes.[12]
Outro exemplo de desafio ao STF está na tentativa de reconhecimento de direitos às uniões concubinárias, conforme se pode ver da redação do art. 1.564-D do Anteprojeto, que textualmente diz: “Art. 1.564-D. A relação não eventual entre pessoas impedidas de casar não constitui família. Parágrafo único. As questões patrimoniais oriundas da relação prevista no caput serão reguladas pelas regras da proibição do enriquecimento sem causa previstas nos arts. 884 a 886”. Tal regra constante do parágrafo único do art. 1.564-D pode possibilitar o reconhecimento do direito a partilha de bens adquiridos na constância da união concubinária, ao argumento de que negar tal direito enseja enriquecimento sem causa. É bem verdade que a jurisprudência do STJ já reconhece a possibilidade de reconhecimento de sociedade de fato de modo a viabilizar a partilha de bens entre concubinos; mas, sem dúvida, é problemático o tratamento dado a questão, na medida em que não há uma clareza na definição de critérios para o reconhecimento do esforço pessoal para a aquisição dos bens. A contribuição para a aquisição pode ser indireta e presumida? Isto não fica claro em momento algum.
Some-se a isto o fato de que o inciso III do art. 1.801 do Código Civil veda a deixa testamentária ao concubino do testador casado; e a proposta constante do Anteprojeto é justamente no sentido de revogar tal inciso III, de modo a eliminar tal vedação. Por mais que se possa inferir tal vedação dos princípios do Código Civil e da própria Constituição, sabe-se também que ainda é forte entre nós a mentalidade no sentido de reconhecer que em direito privado é permitido aquilo que não é expressamente proibido pelo legislador.
Isto destoa abertamente da tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal sob o rito da Repercussão Geral no julgamento do tema 529: “A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro”.[13]
Sem um substrato teórico consistente, parece-nos injustificado obrigar o País a suportar os custos sociais, jurídicos e econômicos de uma alteração tão radical em seu ordenamento jurídico. Some-se a isto a necessidade do legislador e dos membros da comissão não rejeitarem o debate democrático e permanecerem disponíveis a ouvir “a crítica (profunda e ampla) dos meios acadêmicos, corporativos e sociais”[14], condição indispensável a legitimação de qualquer mudança legislativa.
O Código Civil, a exemplo do Navio de Teseu, poderá ser o veículo que conduzirá com segurança as relações privadas e sociais do povo brasileiro se for bem cuidado; ou poderá naufragar de forma trágica se se admitir que os atuais artífices levem a cabo o intento de substituir uma estrutura firme e segura por “tábuas” podres ou corrompidas por ideologias nocivas e estranhas à realidade social brasileira.
Notas e Referências:
*Venceslau Tavares Costa Filho é Doutor em Direito pela UFPE, Professor Adjunto da Universidade de Pernambuco e da UniFafire, Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões – Seção Pernambuco e membro da Comissão Especial de Responsabilidade Civil do Conselho Federal da OAB.
[1] Cf.: https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/paradoxo-navio-teseu-debates-novo-codigo-civil/ Acesso em 30 de outubro de 2024.
[2] Cf.: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/03/07/pacheco-afasta-preocupacoes-sobre-atualizacao-do-codigo-civil Acesso em: 24 de março de 2024.
[3] CARRIJO, Patrícia. O tempo do novo Código Civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/402405/o-tempo-do-novo-codigo-civil Acesso: em 24 de março de 2024.
[4] Cf.: https://www.conjur.com.br/2024-mar-24/responsabilidade-civil-dos-provedores-de-plataformas-digitais-no-novo-cc/ Acesso em: 29 de março de 2023.
[5] Cf.: https://cursos.esadf.org.br/course/o-impacto-do-novo-codigo-civil-no-direito-das-familias—id-557 Acesso em: 29 de março de 2024.
[6] PLUTARCO. Vidas paralelas: Teseu e Rómulo. Tradução de Delfim F. Leão e Maria do Céu Fialho.Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, p. 68-69.
[7] Permita-nos referir a nossa análise publicada em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-12/inconstitucionalidades-do-projeto-de-atualizacao-do-cc-em-materia-de-direito-de-familia/ Acesso em: 24 de março de 2024.
[8] POSCHER, Ralf. Ambiguity and vagueness in Legal Interpretation. In: SOLAN, Lawrence M.; TIERSMA, Peter M. (eds.). The Oxford Handbook of Language and Law. Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 133.
[9] RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Reforma dos Códigos deve ser democrática e pluralista. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-jan-02/direito-comparado-reforma-codigos-democratica-pluralista/ Acesso em: 24 de março de 2024.
[10] RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Reforma dos Códigos deve ser democrática e pluralista. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-jan-02/direito-comparado-reforma-codigos-democratica-pluralista/ Acesso em: 24 de março de 2024.
[11] CARNEIRO FILHO, Humberto João. Entre Leis e Cânones: a marcha da secularização do casamento no Brasil (1822 – 1916). Recife: Universidade Federal de Pernambuco [Tese de Doutorado], 2018, p. 65.
[12] Cf.: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=526043&ori=1#:~:text=O%20Supremo%20Tribunal%20Federal%20(STF,alterado%20pela%20vontade%20das%20partes. Acesso em: 24 de março de 2024.
[13] Cf.: RE 1045273, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 21-12-2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-066 DIVULG 08-04-2021 PUBLIC 09-04-2021.
[14] RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Reforma dos Códigos deve ser democrática e pluralista. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-jan-02/direito-comparado-reforma-codigos-democratica-pluralista/ Acesso em: 24 de março de 2024.