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Processo, Prova e IA: com alcançar a busca pela justiça?

Desde o final de 2022, como lançamento do ChatGPT, a inteligência artificial tornou-se um tema de interesse em diversos setores do mercado, e vem se instalando na rotina de pessoas do mundo inteiro através de softwares, aplicativos e outros recursos presentes na Internet. Inclusive, estima-se que até o final deste ano o mercado global de IA deva atingir mais de meio trilhão de dólares.

A inteligência artificial, também conhecida como IA, é a capacidade de um sistema computacional de realizar tarefas complexas como reconhecimento facial, reconhecimento de voz, tradução automática, predição, automação, entre outros. Para funcionar com tal capacidade, a inteligência artificial utiliza o Machine Learning (Aprendizado de Máquina), especificamente o Deep Learning (Aprendizado Profundo).[1]

Na China, a inteligência artificial tem sido usada para ajudar a reduzir a carga de trabalho nos tribunais do país. Segundo a Academia Chinesa de Engenharia, a tecnologia conseguiu diminuir a carga média de trabalho de um juiz em mais de um terço e poupado aos cidadãos chineses 1,7 bilhões de horas de trabalho, além de economizar mais de 300 bilhões de yuans (R$ 244 bilhões) entre os anos 2019 e 2021.[2]

Por lá, o sistema de inteligência artificial baseado na tecnologia de aprendizado de máquinas, seleciona processos judiciais para referências, recomenda leis e regulamentos, esboça documentos legais e altera erros humanos percebidos em vereditos automaticamente.

No Brasil, o uso da ferramenta caminha pela mesma estrada: oniciado no final de 2017, na gestão da ministra Cármen Lúcia, o programa Victor foi idealizado para auxiliar o STF na análise dos recursos extraordinários recebidos de todo o país, especialmente quanto a sua classificação em temas de repercussão geral de maior incidência.

A pesquisa e o desenvolvimento do Victor demonstraram seus primeiros resultados em laboratório ainda em 2018, com classificador de 27 temas de repercussão geral de maior incidência à época. Além dos desafios próprios de um projeto dessa magnitude, como a própria extração de base de dados para a pesquisa, que por si só levava meses para ser concluída, rapidamente constatou-se que, para entregar um classificador de temas, era necessário resolver também o problema subjacente quanto ao dado – o texto puro.

Para o adequado uso de Inteligência artificial aplicada em linguagem natural (texto), tornou-se objeto do Victor a execução de quatro atividades: conversão de imagens em textos no processo digital ou eletrônico;
separação do começo e do fim de um documento (peça processual, decisão etc);
separação e classificação das peças processuais mais utilizadas nas atividades do STF e a identificação dos temas de repercussão geral de maior incidência.[3]

Atualmente, todos os recursos extraordinários e recursos extraordinários com agravo recebidos no STF são autuados e analisados pela Secretaria de Gestão de Precedentes e decididos pelo ministro presidente. Decidindo-se pelo enquadramento em tema de repercussão geral, o processo é devolvido à instância de origem para sua apreciação. Em caso negativo, e igualmente não se verificando outras questões processuais, como a tempestividade e oportunidade de aplicação de súmulas, o presidente determina a distribuição dos recursos aos demais ministros da Corte.

Contudo, apenas em 2020, tivemos o primeiro normativo responsável pelas primeiras diretrizes sobre o uso de IA no Judiciário, a Resolução CNJ n. 332/2020, considerando que, ao ser aplicada no Poder Judiciário, esse instrumento pode contribuir com a agilidade e coerência do processo de tomada de decisão. [4]

Ato contínuo, em fevereiro deste ano, o Conselho Nacional de Justiça organizou um evento, no STJ, para propor um texto regulamentador sobre o uso de IA generativa na Justiça, com as informações dos tribunais brasileiros de atualização sobre os modelos de inteligência artificial ativos e hospedados na Plataforma Sinapses.

A proposta de regulamentação que será trabalhada ao longo do ano deverá conter modelo de governança para o uso das ferramentas, estudos de mapeamento e gerenciamento de riscos, assim como orientações relativas ao que deve ser permitido, regulado e proibido, tendo como base valores fundamentais como a centralidade da pessoa humana, o respeito aos direitos humanos, não discriminação, transparência e responsabilização. O GT é composto por outros 30 membros, entre eles integrantes do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), promotores, defensores públicos, advogados, magistrados, especialistas em direito digital e proteção de dados[5].

O uso da IA, no Brasil, em julgamentos, não se restringirá apenas ao judiciário. Tribunais administrativos também estão aderindo ao uso da ferramenta visando celeridade e redução de estoques de disputas.

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, por sua vez, também anunciou que irá adotar julgamentos via plenário virtual[6], similar ao que já é realizado no Supremo Tribunal Federal, bem como a utilização de inteligência artificial, com previsão de que esses julgamentos remotos sejam iniciados ainda em 2024. O sistema está sendo feito em parceria com o Serviço Federal de Processamento de Dados.

No Congresso Nacional, tramita um projeto de lei, na Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no Brasil (CTIA), que disciplina o uso de sistemas de Inteligência Artificial na atuação de médicos, advogados e juízes, apresentado pelo senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB). O PL 266/2024 determina que esses recursos tecnológicos sejam utilizados apenas como auxiliares na atuação desses profissionais.

Aqui, chegamos ao ponto crucial no uso da IA na tomada de decisões em situações tão estratégicas: no meu sentir, o uso desses recursos tecnológicos, semelhante ao que disciplina do PL supracitado deve ser auxiliar ao trabalho técnico desenvolvido por julgadores.

Isso porque a função precípua do julgador, seja ele administrativo, seja ele judicial, é aplicar a lei aos casos concretos, distribuindo a justiça aos que tenham direito, segundo os princípios elencados na Constituição Federal. E, na incumbência da aplicação dessas leis, é função do julgador interpretar a norma adequando-a aos casos concretos.

É justamente na análise probatória que se encontra o “coração do problema do julgamento” [7], tendo em vista que provar um fato é estabelecer sua existência (ou inexistência, na hipótese de pretender-se desconstituir o fato.

Nessa medida, a tarefa daquele que produz a prova jurídica é semelhante à do historiador: ambos se propõem a estabelecer fatos representativos de acontecimentos pretéritos, por meio dos rastros, vestígios ou sinais deixados por referidos eventos e utilizando-se de processos lógico-presuntivos que permitam a constituição ou desconstituição de determinado fato.

Esse é o fim da prova: a fixação dos fatos no mundo jurídico. Exige-se, portanto, o convencimento do julgador para que este, ao decidir, constitua nos autos o fato jurídico acerca do qual se convenceu. É por meio do caráter instrumental da função persuasiva da prova que esta atinge seu objetivo de fixar determinados fatos no universo do direito. [8]

Em regra, conforme art. 937 do CPC, as partes dispõe de 15 minutos para fazer a sustentação oral e apesar de nem todos os recursos admitirem o uso dessa prerrogativa, como julgadora e entusiasta do uso adequado da verdade material[9] nos processos administrativos, entendo que esse instrumento é fundamental para esclarecer pontos que, certas vezes, não estão evidentes no papel. Inclusive, um julgamento realizado por um colegiado traz enormes benefícios: a possibilidade de discussão da matéria sobre diversos pontos de vista e maturação da ideia trazida pela prova a fim de forma uma convicção que esteja cada vez mais próxima da realidade fática e, portanto, mais próxima da “justiça” tão procurada.

Agora lhes questiono: será que a inteligência artificial estaria pronta para analisar as particularidades de cada prova apresentada nos processos, ponderando e analisando casuisticamente?

Longe de mim defender um ponto de vista que se afaste da evolução da humanidade, sobretudo diante das infinidades de benefícios que essas mudanças possam trazer. Mas deixo aqui minha inquietação: quais os limites do uso da IA na valoração das provas por órgãos julgadores?

 

Notas e Referências:

[1] https://canaltech.com.br/seguranca/tribunais-na-china-permitem-que-ias-tomem-o-lugar-de-juizes-220922/

[2] https://canaltech.com.br/seguranca/tribunais-na-china-permitem-que-ias-tomem-o-lugar-de-juizes-220922/

[3] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=471331&ori=1

[4] Em agosto de 2020, foi aprovada a Resolução n° 332/2020 que instituiu o Sinapses como plataforma nacional de armazenamento, treinamento supervisionado, controle de versionamento, distribuição e auditoria dos modelos de Inteligência Artificial, além de estabelecer os parâmetros de sua implementação e funcionamento. A gestão e responsabilidade pelos modelos e datasets cabe a cada um dos órgãos do Poder Judiciário, por meio de seu corpo técnico e usuários e usuárias colaboradoras da plataforma. O Departamento de Tecnologia da Informação do CNJ é responsável por prover a manutenção da Plataforma Sinapses.

[5] https://www.cnj.jus.br/informacoes-dos-tribunais-vao-apoiar-o-gt-do-cnj-sobre-novos-modelos-de-inteligencia-artificial/

[6] Plenário virtual no CARF está previsto no novo RICARF, Portaria MF nº 1634, de 21 de dezembro de 2023.

[7] CARNELUTTI, Francesco. A prova civil, pp. 61-72.

[8] TOMÉ, Fabiana Del Padre. Prova. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/91/edicao-1/prova

[9] O princípio da verdade material deverá subsidiar o processo administrativo, devendo a autoridade julgadora buscar a realidade dos fatos, conforme ocorrida, e para tal, ao formar sua livre convicção na apreciação dos fatos, podendo realizar as diligências que considere necessárias à complementação da prova ou ao esclarecimento de dúvida relativa aos fatos trazidos no processo.

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Anna Dolores Malta
Conselheira da 3 seção de julgamentos do CARF. Professora Universitária dos cursos de graduação em Direito Tributário, Aduaneiro e Regulatório. Leciona as disciplinas de Mediação tributária, Processo Administrativo Fiscal, Tributação do 3 Setor, Regimes Aduaneiros Especiais e Zonas de Processamento de exportação em programas de pós-graduação. Doutoranda em Direito UFPE, LLM em Direito Aduaneiro pela Erasmus University Rotterdam - Holanda. Mestre em Direito Público pela UNICAP. MBA em Gestão Jurídica Aduaneira e Tributação Internacional pela ABRACOMEX/Massachusetts Institute of Business. Formação em Mediação e Arbitragem pela FGV. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Direito Tributário Aduaneiro CNPq/Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente é Presidente da Associação Pernambucana de Direito Aduaneiro e Fomento ao Comércio Exterior e membro colaboradora da Comissão de Direito Aduaneiro e Comércio Exterior da OAB/PE seccional Recife. Advogada licenciada. Annadbarros@gmail.com

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