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Um tapinha não dói? Porque a doutrina de direito de família precisa refletir sobre sua culpa na omissão do Poder Judiciário quanto ao combate a violência doméstica e familiar contra a mulher

Recentemente, diversos portais de notícias repercutiram as falas de uma juíza e de uma promotora em Vara de Família no Rio de Janeiro que culpabilizaram a vítima pelas agressões sofridas. Conforme registros em áudio divulgados pelo portal The Intercept, a magistrada disse durante audiência na 9ª Vara de Família da Comarca do Rio de Janeiro  que a vítima era culpada pelas agressões do ex-companheiro: “Os dois têm culpa. A culpa é dos dois. Um permitiu, o outro deixou, foi permissivo. A culpa é sempre dos dois, a culpa nunca é de um”.[1] O litígio versava sobre a guarda de uma criança de três anos situada no espectro autista. Tendo em vista as violências sofridas pela mãe e que teriam sido perpetradas pelo pai, ela não se sentia segura em deixar o agressor sozinho com uma criança autista e de tão tenra idade. Todavia, o que a mãe ouviu da magistrada foi que uma mulher pode “apanhar [do marido] mas ele pode ser um excelente pai”.[2] Já da integrante do Ministério Público, a mesma vítima ouviu que ela estaria “atrapalhando” a convivência familiar do agressor com o filho devido às denúncias de violência doméstica e o pedido de medidas protetivas; acusando-a de ser autora de alienação parental e ameaçando-a de perder a guarda da criança.[3]

Infelizmente, nossa experiência no enfrentamento a violência doméstica e familiar contra a mulher mostram que tal episódio não é isolado, e se insere em um contexto maior de silenciamento das mulheres vítimas de violência doméstica nas varas de família, bem como de omissão sistemática dos juízes e membros do ministério público com atuação nas varas de família. Entretanto, antes de apontar culpados por este cenário desolador no âmbito do Poder Judiciário, penso que a doutrina brasileira de direito de família precisa fazer um mea-culpa e reconhecer sua parcela de responsabilidade nisto. Antecipadamente, peço desculpa pelas longas citações diretas de doutrinadores entre os mais admirados na seara do direito de família brasileiro. Mas, faço para demonstrar como tais argumentos terminam por contribuir para este estado de coisas.

A priori, é necessário dizer que festejada doutrina familiarista vem defendendo há mais de uma década que até mesmo os deveres de respeito a vida, liberdade e integridade física e psíquica do cônjuge são estritamente privados, afastando a possibilidade de intervenção do Estado-juiz na averiguação do cumprimento de tais deveres:  “O dever de respeito e consideração mútuos consulta mais a dignidade dos cônjuges, pois a lei a eles delega a responsabilidade de qualificá-lo, segundo os valores que compartilhem, sem interferência do Estado-juiz na privacidade e na intimidade. (…). O dever de respeito e consideração mútuos abrange a inviolabilidade da vida, da liberdade, da integridade física e psíquica, da honra, do nome, da imagem, da privacidade do outro cônjuge”.[4] Maria Berenice Dias também converge com este entendimento, ao sustentar que as discussões judiciais sobre graves descumprimentos de deveres conjugais implicaria em uma invasão estatal às esferas privada e íntima dos casais: “Elenca o Código Civil um rol de ‘culpas’ (CC, 1.573), impondo ao cônjuge o ônus de identificar o comportamento do par. Era necessário que o autor revelasse como o casal vivia no interior do lar, o que infringia o cânone constitucional do direito à privacidade e à intimidade. Não de apenas um, mas de ambos os cônjuges. Parece que a lei não atentou que a Constituição prioriza a dignidade da pessoa, consagrando como fundamental o direito à liberdade”.[5]

Mais do que isso, a mesma doutrina defende que até mesmo os deveres de respeito e considerações mútuos (e que compreende o dever de respeito a vida, a liberdade, a integridade física e psíquica do cônjuge, etc): “são juridicamente inócuos, pois não há qualquer sanção jurídica para seu inadimplemento durante a convivência conjugal, restando aos cônjuges, exclusiva e intimamente, avaliarem se a conduta contrária pode tornar suportável ou não o casamento e optarem pelo divórcio consensual ou litigioso, mas sem servir de fundamento a este”.[6] Para tal doutrinador, a ofensa a deveres conjugais pode até dar ensejo a dano moral, mas esta não seria matéria “intrinsecamente de direito de família, e sim de direito civil em geral: a ofensa moral deve ser objeto de reparação civil segundo as regras comuns e não em razão do direito de família”.[7] Eis aí o ponto onde nós queremos chegar: relevante doutrina defende que violações graves a direitos tais como o direito a vida, a liberdade e a integridade física e psíquica das mulheres não devem ser levados ao conhecimento das varas de família, e poderiam no máximo dar ensejo a ações indenizatórias comuns nas varas cíveis.

Some-se a isto o fato de que grassa nas varas de família um pensamento similar ao expressado pela magistrada, no sentido de que não seria possível identificar culpados nas ações de família. Como disse a juíza: “A culpa é sempre dos dois, a culpa nunca é de um”.[8] Neste raciocínio, contudo, a magistrada parece não estar sozinha. Infelizmente, um dos mais aplaudidos doutrinadores de direito de família diz que com “a eliminação da discussão da culpa” foi possível chegar “à conclusão de que não há culpados e o Estado parou de interferir nesta esfera privada. Afinal, às vezes, nem mesmo os próprios cônjuges, sabem porque o casamento acabou. Às vezes o amor acaba. Ambos são responsáveis pelo fim da conjugalidade. Ficar procurando um culpado em processo judicial era apenas uma forma de sustentar o litigio, uma forma de não se separar, o casal continuava unido pelo processo judicial, unidos pelo ódio”.[9]

Some-se a isto a ideia (equivocada) de que o marido pode ser agressivo com a esposa e ao mesmo tempo ser bom pai para os filhos também não pode ser dissociada desta linha de pensamento. No jargão de boa parte da doutrina atual, trata-se da necessária separação entre conjugalidade e parentalidade: “Já se chegou à conclusão que as funções parentais e funções conjugais não estão, necessariamente, atreladas uma à outra. Em outras palavras, uma boa esposa pode não ser boa mãe e vice-versa, portanto, demonstrar que um dos cônjuges é culpado, foi infiel, deu causa à separação em nada, absolutamente nada, resolve ou melhora a vida do ex-casal. A pensão alimentícia não pode estar vinculada à culpa, sob pena de se condenar alguém a passar fome ou extrema necessidade”.[10] Para que não se diga que este colunista está exagerando, a atual Presidente da Comissão de Direito de Família e Sucessões da OAB/SP em recente entrevista sobre Projeto de Lei que impede a guarda compartilhada de filhos quando há risco de violência doméstica defendeu que nem mesmo a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher deve impedir a guarda compartilhada: “Há situações que podem atingir a mulher, mas não necessariamente atingir os filhos. [Pode ocorrer] eventualmente uma violência patrimonial ou fraude que seja cometida em algum momento (…), mas no curso do processo não atingiu de nenhuma forma a parentalidade, por exemplo”.[11]

Além de minimizar formas de violência contra a mulher tais como a violência psicológica ou a patrimonial, verifica-se que setores da doutrina familiarista também equiparam fatos graves como o feminicídio (tentado) com outras situações que decorreriam de mero “fim do amor”: “O legislador, no entanto, não contemplou a única causa que pode tornar insuportável a vida em comum. Nenhuma das diversas hipóteses elencadas permite a identificação de um culpado. O que traz a lei são meras consequências. A causa é uma só. Comete adultério, tenta matar, agride, abandona, mantém conduta desonrosa quem não ama mais. As atitudes previstas são meros reflexos do fim do amor. O esgotamento do vínculo de afetividade é que leva alguém a violar os deveres do casamento. Como diz Rodrigo da Cunha Pereira, o litígio conjugal é a falência do diálogo”.[12]

Não posso deixar passar batida a evidente contradição no discurso destes doutrinadores: ou não existem culpados, ou ambos os cônjuges são culpados. Não faz sentido afirmar que não há que se cogitar de culpa porque ambos são culpados em alguma medida.

Contudo, em vez de ser compreendida enquanto fenômeno de interesse estritamente privado, deve-se encarar a violência doméstica e familiar contra a mulher como fenômeno de inegável  interesse público, e que demanda a “intervenção estatal nessas relações, com o objetivo de proteção especial dos elos mais vulneráveis”.[13] Deve-se questionar se o homem que sistematicamente agride sua esposa ou companheira na frente de seus filhos é um bom pai simplesmente porque não os agride da mesma forma. Fazer as crianças testemunharem tal violência já é uma violência!

É importante destacar que não é incomum qualificar as mulheres que denunciam violências sofridas por elas e seus filhos como alienadoras, acusando-as da realização de falsas denúncias. Com medo de serem impedidas de conviver com seus filhos, muitas mulheres terminam por se calar e deixam de efetuar denúncias. Tal conivência ou instrumentalização do Poder Judiciário condena as mulheres ao silêncio e perpetua uma submissão perversa da mulher a figura masculina, o que se caracteriza também como violência de gênero.[14]

Todavia, quero deixar bem claro que não estou acusar os doutrinadores aqui citados de incentivarem intencionalmente a violência de gênero, ou muito menos de estimularem deliberadamente a omissão do Poder Judiciário diante de tal fenômeno. Mas, estou chamando atenção para o fato de que a repetição de certos chavões formulados a partir das ideias destes juristas (por exemplo: não existem culpados; não se pode debater culpa ou descumprimento de deveres conjugais nas varas de família; violência doméstica não é assunto para a vara de família ou não é problema de direito de família; a culpa não pode interferir na fixação da guarda ou da pensão alimentícia, etc) pode ter contribuído para o atual estado de coisas. Ideias tem consequências. E no direito de família, não se pode descurar que as teses doutrinárias terminam por influir diretamente na praxe judicial e na formulação de políticas públicas.

A doutrina de direito de família precisa urgentemente de lentes de gênero, a fim de deixar para trás uma persistente cegueira de gênero (gender blind).  Quando o juízo de família considera a violência doméstica irrelevante para um debate sobre partilha de bens adquiridos durante o casamento ou sobre a guarda de filhos menores termina por fechar os olhos ou “ignorar o dado fático das relações assimétricas de gênero”.[15] Esta deliberada cegueira do Poder Judiciário em relação a questões de gênero, reforçada pela opinião de notáveis doutrinadores, termina por criar um cenário favorável a violência doméstica e familiar contra a mulher ao passar ao público a mensagem de que não existem reais evidências da vontade e da ação do Estado para prevenir, punir e reprimir estes atos em nome da sociedade civil.[16]

Por fim, cabe registrar que atuamos junto com a Professora Regina Beatriz Tavares da Silva no aperfeiçoamento do Projeto de Lei que resultou na atual Lei n. 13.894/2019, que facultou a obtenção do divórcio junto às Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, bem como determinou a intervenção do Ministério Público nas ações de família em que figure como parte vítima de violência doméstica e familiar.[17] Na qualidade de formulador do anteprojeto da mencionada lei, posso afirmar que a nossa intenção foi a de eliminar ou reduzir esta desconexão entre a proteção conferida a mulher nas varas de violência doméstica e a (des)proteção da mulher vítima de violência doméstica nas varas de família. Como pode uma mulher, que obteve medidas protetivas de afastamento do agressor e que até mesmo está escondida sob proteção do Estado por determinação do juízo da vara de violência doméstica, ser obrigada a participar de procedimentos conciliatórios e ficar diante do mesmo agressor na vara de família, ficando exposta a diversos riscos ao sair do fórum após a audiência? Ora, no mínimo, espera-se que os juízos das varas de família compreendam que o dever de combater a violência doméstica e familiar contra a mulher não é atribuição apenas das varas especiais de violência doméstica, mas da sociedade como um todo e também dos que fazem a doutrina de direito de família no Brasil.

 

Notas e Referências:

[1] MANSUR, Gabriel. Promotora e Juíza em Vara de Família no Rio culpam mãe vítima de violência doméstica. Jornal do Brasil (publicado em 29.07.2023). Disponível em: https://www.jb.com.br/brasil/justica/2023/07/1045112-promotora-e-juiza-em-vara-de-familia-no-rio-culpam-mae-vitima-de-violencia-domestica.html Acesso em: 10 de setembro de 2023.

[2] MANSUR, Gabriel. Promotora e Juíza em Vara de Família no Rio culpam mãe vítima de violência doméstica. Jornal do Brasil (publicado em 29.07.2023). Disponível em: https://www.jb.com.br/brasil/justica/2023/07/1045112-promotora-e-juiza-em-vara-de-familia-no-rio-culpam-mae-vitima-de-violencia-domestica.html Acesso em: 10 de setembro de 2023.

[3] MANSUR, Gabriel. Promotora e Juíza em Vara de Família no Rio culpam mãe vítima de violência doméstica. Jornal do Brasil (publicado em 29.07.2023). Disponível em: https://www.jb.com.br/brasil/justica/2023/07/1045112-promotora-e-juiza-em-vara-de-familia-no-rio-culpam-mae-vitima-de-violencia-domestica.html Acesso em: 10 de setembro de 2023.

[4] LÔBO, Paulo. Direito Civil – v. 5: Famílias. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 66

[5] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14 ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 125.

[6] LÔBO, Paulo. Direito Civil – v. 5: Famílias. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 67.

[7] LÔBO, Paulo. Direito Civil – v. 5: Famílias. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 67.

[8] MANSUR, Gabriel. Promotora e Juíza em Vara de Família no Rio culpam mãe vítima de violência doméstica. Jornal do Brasil (publicado em 29.07.2023). Disponível em: https://www.jb.com.br/brasil/justica/2023/07/1045112-promotora-e-juiza-em-vara-de-familia-no-rio-culpam-mae-vitima-de-violencia-domestica.html Acesso em: 10 de setembro de 2023.

[9] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 118.

[10] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023,p. 246

[11] Cf:https://www.migalhas.com.br/quentes/392676/advogados-analisam-pl-que-proibe-guarda-compartilhada-com-agressor Acesso em 10 de setembro de 2023.

[12] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14 ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 125.

[13] COSTA FILHO, Venceslau Tavares; LIMA, Aline Arroxelas Galvão de; DANTAS, Ana Elizabeth Oliveira de Mariz. Alienação parental e violência psicológica: intercessões entre os microssistemas jurídicos de proteção a crianças, adolescentes e mulheres. In: DUARTE, Lorena Guedes; HONORATO, Gabriel; GIRUNDI, Leonardo; SANTIAGO, Maria Cristina (coord). O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões. Brasília: OAB Editora, 2022, p. 52.

[14]COSTA FILHO, Venceslau Tavares; LIMA, Aline Arroxelas Galvão de; DANTAS, Ana Elizabeth Oliveira de Mariz. Alienação parental e violência psicológica: intercessões entre os microssistemas jurídicos de proteção a crianças, adolescentes e mulheres. In: DUARTE, Lorena Guedes; HONORATO, Gabriel; GIRUNDI, Leonardo; SANTIAGO, Maria Cristina (coord). O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões. Brasília: OAB Editora, 2022, p. 59-60.

[15] COSTA FILHO, Venceslau Tavares; SILVA, Camila Cristiane da; FERREIRA, Carolina de Macêdo. A reparação civil por danos morais em razão de violência doméstica e familiar contra a mulher à luz do tema 983 dos Recursos Repetitivos (REsp 1.643.051): análise de sua inefetividade no âmbito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. In: DUARTE, Lorena Guedes; HONORATO, Gabriel; GIRUNDI, Leonardo; SANTIAGO, Maria Cristina (coord). O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões. Brasília: OAB Editora, 2022, p. 241.

[16] COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Anotações críticas a adequação procedimental da lei brasileira de violência doméstica e familiar contra a mulher. In: DEL CARPIO RODRIGUEZ, Columba Maria del Socorro Melania (coord.). Derecho de Família y Personas: Família, Mujer, Niñez y Violencia. Arequipa: Editorial UNSA, 2019, passim.

[17] Cf: https://www.migalhas.com.br/quentes/316138/sugestoes-da-adfas-estao-presentes-em-norma-que-alterou-lei-maria-da-penha Acesso em: 10 de setembro de 2023.

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Venceslau Tavares Costa Filho
Doutor em Direito pela UFPE. Professor dos Cursos de Graduação em Direito da UPE e da FAFIRE. Professor Permanente dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito, e do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UFPE. Professor convidado do Curso de Especialização em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco-USP. Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) - Seção Pernambuco. Membro da Academia Iberoamericana de Derecho de Familia y de de las Personas. Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Advogado.

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