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Diante dos Enunciados do FONAJE

Por Luís Gustavo Reis Mundim[1]

 

No conto denominado “Diante da Lei”, Franz Kafka relata que um camponês se apresenta diante de um guarda, protetor de uma porta, que representa a lei. O camponês solicita ao guarda a sua entrada na lei, no entanto, o guarda não permite a sua entrada, mesmo com a porta aberta, bem como não apresenta qualquer fundamentação para tal impedimento.

É o que se extrai de sua leitura:

 

Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar-lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde.

 – “É possível” – diz o guarda. – “Mas não agora!”.

O guarda afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz:

 – “Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara, sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim”.

O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. Mas, ao olhar o guarda envolvido no seu casaco forrado de peles, o nariz agudo, a barba à tártaro, longa, delgada e negra, prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar. O guarda dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras coisas, mas são perguntas lançadas com indiferença, à semelhança dos grandes senhores, no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar. O homem, que se provera bem para a viagem, emprega todos os meios custosos para subornar o guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre:

 – “Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste”.

Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei. Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e depois, ao envelhecer, limita-se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao fim de tanto examinar o guarda durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste, pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda. Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, no meio da escuridão, um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte está próxima. Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Faz-lhe um pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo já arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar até muito baixo porque a diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo.

 – “Que queres tu saber ainda?”, pergunta o guarda.

 – “És insaciável”.

 – “Se todos aspiram a Lei”, disse o homem.

– “Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?”.

O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte:

– “Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”.[2]

 

A ideia do guardião kafkiano nos remete às questões relativas ao denominado acesso à jurisdição, todavia, é possível interpretá-lo para ilustrar a problemática dos enunciados do FONAJE nos Juizados Especiais.

É cediço que o FONAJE – Fórum Nacional de Juízes de Juizados Especiais -, instituído em 1.997, trata-se de uma reunião de juízes de Juizados Especiais com a finalidade de elaborar enunciados acerca da legislação atinente aos Juizados, padronizar procedimentos e trocar informações.

São diversos enunciados já elaborados, com a finalidade de guiar a interpretação e aplicação da legislação aplicável aos JESP’s, os quais, inclusive, são revogados ou modificados. Interessante notar que o número de enunciados é maior que o número de artigos na própria Lei 9.099/95.

E quais são alguns dos problemas e a correlação dos enunciados com o conto de Kafka?

Em primeiro lugar, os enunciados do FONAJE não possuem qualquer equiparação à lei e como tal não podem ser aplicados. Sequer perpassam pelo devido processo legislativo.[3]

Em segundo, Alexandre Morais da Rosa alerta que os enunciados não apresentam qualquer fundamentação das razões pelas quais foram criados, revogados ou alterados.[4]

Nessa rota, é possível conjecturar, com Jacques Derrida, sobre a existência da distinção de duas violências no direito, a violência fundadora e a violência conservadora. A primeira é aquela que “institui e instaura o direito”, enquanto a segunda é aquela que “mantém, confirma, assegura a permanência e a aplicabilidade do direito”.[5]

O direito sempre institucionalizará a violência “como lugar normativo e adequado de permanência”[6], sendo o conceito de violência pertencente a uma ordem do direito, da política e da moral, vez que conexa a todas as formas de autoridade ou autorização.[7]

O interesse do direito é monopolizar a violência, essa enquanto autoridade, que visa proteger o próprio direito, a ordem jurídica e não fins justos ou legais, que acabam por preservar a própria autoridade. Nas palavras de Derrida:

 

Falar de um interesse do direito pode parecer ‘surpreendente’, é a palavra usada por Benjamin, mas é ao mesmo tempo normal, é da natureza de seu próprio interesse pretender excluir as violências individuais que ameaçam a sua ordem; é com vistas a seu interesse que ele monopoliza, assim, a violência no sentido de Gewalt, a violência enquanto autoridade. Há um ‘interesse do direito na monopolização da violência’ (Interesse des Rechts an der Monopolisierung der Gewalt). Esse monopólio não tende a proteger determinados fins jutos e legais (Rechtszwecke), mas o próprio direito. [8]

 

Giorgio Agamben denuncia essa interdição e suspensão da lei como Estado de Exceção. Para o autor, o Estado de Exceção é a abertura de um espaço em que aplicação e norma são separadas, realizando uma pura força de lei. Ou seja, suspende-se a aplicação da norma e cria-se um espaço no qual o soberano decide ilimitadamente “onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real”.[9]

Nas palavras do filósofo:

 

O soberano, que pode decidir sobre o estado de exceção, garante sua ancoragem na ordem jurídica. Mas, enquanto a decisão diz respeito aqui à própria anulação da norma, enquanto, pois, o estado de exceção representa a inclusão e a captura de um espaço que não está fora nem dentro (o que corresponde à norma anulada e suspensa), ‘o soberano está fora [steht ausserhalb] da ordem jurídica normalmente válida e, entretanto, pertence [gehört] a ela, porque é responsável pela decisão quanto à possibilidade da suspensão in totto da constituição.

Estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer: tal é a estrutura topológica do estado de exceção, e apenas porque o soberano que decide sobre a exceção é, na realidade, logicamente definido por ela em seu ser, é que ele pode também ser definido pelo oximoro êxtase-pertencimento. [10]

 

Assim, o Estado de Exceção é simultaneamente ancorado pelo ordenamento jurídico e permite ao soberano suspender a normatividade para a aplicação de seus interesses, vontades, sensibilidades e consciência. A autoridade está ao mesmo tempo fora e dentro da lei. [11]

Desse modo, a conferência de força de lei aos enunciados do FONAJE evidencia a violência no, do e pelo direito em seus dois aspectos: (i) violência fundadora, vez que os enunciados são criados sem qualquer procedimento legislativo regido pelo devido processo e sem apresentar fundamentação das razões de sua existência e (ii) violência conservadora, na qual os enunciados são aplicados nos procedimentos em curso nos Juizados Especiais em substituição à lei, sem observar o devido processo legal.

Ou seja, a força de lei que é dada aos enunciados, além de fundar e conservar a violência judicial, também se aproxima do estado de exceção, já que eventual espaço de anomia jurídica é substituída e preenchida pelos critérios definidos em uma reunião de juízes, a partir de suas conveniências e senso pessoal de justiça.

Assim, “passa-se a admitir, sem questionamentos, que uma classe especialíssima de homens instale, na casuística dos conflitos, a exceção cotidiana. Intrometem-se, na atividade decisória, contingências arbitrariamente selecionadas que estariam a impor a negação da aplicação da ordem jurídica vigente”.[12]

Nesse sentido, os enunciados do FONAJE se assemelham à postura do guardião kafkiano, pois, mesmo que a porta da lei esteja aberta, o camponês “não consegue entrar nela. O guarda sem qualquer fundamentação para tanto, deixa o camponês numa espera eterna, sendo ele próprio o obstáculo que separa a lei de seu destinatário”.[13]

É de se perceber que o conto de Kafka nos remete a um processo autoritário, em que as partes (camponês) estão em subserviência ao Estado-Juiz (guarda) que, como supra parte, pode decidir de modo solipsista e sem apresentar qualquer fundamentação jurídica como sustentáculo de sua decisão.

E nesse aspecto é que o cidadão (jurisdicionado-consumidor) se encontra diante dos enunciados do FONAJE, visto que a legalidade vigente é substituída, na decisão do guardião, por enunciados criados sem qualquer legitimidade. Preserva-se o limbo em que se encontra o cidadão, de estar eternamente diante da lei, mas sem que possa dela fruir.

Concluímos, então, que os enunciados possuem flagrante déficit de democraticidade e são um risco de degeneração do direito[14], devendo sua aplicação ser afastada em prol da preservação da constitucionalidade e legalidade.

 

Notas e Referências:

[1] Mestre e especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Pós-graduado em Gestão com ênfase em Negócios pela Fundação Dom Cabral (FDC). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPRO), da Academia de Direito Processual (ACADEPRO) e do Instituto Popperiano de Estudos Jurídicos (INPEJ). Membro da Comissão de Processo Civil da OAB/MG (2022/2024). Advogado e professor. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7803822098394070.

[2] KAFKA, Franz. Diante da lei. A colônia penal. Tradução de Torrieri Guimarães. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. v. 7, p. 71-72.

[3] DEL NEGRI, André. Controle de Constitucionalidade no Processo Legislativo: teoria da legitimidade democrática. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2008.

[4] ROSA, Alexandre de Morais. Por ausência de motivação adequada, enunciados do Fonaje são nulos. Conjur. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2017-jun-03/diario-classe-ausencia-motivacao-adequada-enunciados-fonajesao-nulos>.

[5] DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 2. ed. São Paulo: WWF Martins Fontes, 2010, p. 73.

[6] LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p.124.

[7] DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade, cit., p. 75.

[8] DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade, cit., p. 75.

[9] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 63.

[10] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, cit., p. 63.

[11] Agamben designa o estar dentro e fora da lei como o “Paradoxo da Soberania”, que “se enuncia: ‘o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico’. Se o soberano é, de fato, aquele no qual o ordenamento jurídico reconhece o poder de proclamar o estado de exceção e de suspender, deste modo, a validade do ordenamento, então ‘ele permanece fora do ordenamento jurídico e, todavia, pertence a este, porque cabe a ele decidir se a constituição in toto possa ser suspensa’”. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p.22.

[12] LEAL, André Cordeiro. THIBAU, Vinicius Lott. A dogmática processual e a exceção cotidiana. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n.92, p. 13-29, out./dez.2015, p. 28.

[13] MADEIRA, Dhenis Cruz. Argumentação jurídica: (in)compatibilidades entre a tópica e o processo. Curitiba: Juruá, 2014, p. 348.

[14] RÜTHERS, Bernd. Derecho degenerado: teoria jurídica y juristas de cámara en el Tercer Reich. Madri: Marcial Pons, 2016.

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