Clube do livro

Um convite à literatura clássica. A urgência do engenhoso Dom Quixote no século XXI

A pretensão de esboçar qualquer tipo de resenha a respeito do maior clássico em língua espanhola revela-se verdadeiramente desafiador. Primeiro, porque não sou crítico literário, tampouco estudioso da vida e obra de Cervantes. Depois, porque qualquer esforço de síntese esbarraria na limitação da coluna e, por isso, jamais refletiria a dimensão e a complexidade da obra. Portanto, as observações levadas a efeito terão viés muito mais de estimular a leitura que propriamente dissecar os pormenores da inestimável obra. Ademais, os comentários levarão consigo as características de quem os escreve, o que, implicitamente, demonstrará uma visão unilateral.

São clássicos aqueles livros que nunca dizem tudo o que tem a dizer, pois a cada vez que é lido sempre acrescenta algo de substancial ao leitor. Muitas vezes, o livro vale a pena por uma simples frase, por um mero trecho ou mesmo por uma reflexão inferida de uma passagem aparentemente superficial. Não é, definitivamente, o que ocorre com as histórias do fidalgo Dom Quixote.  É que constantemente o leitor se vê obrigado – isso mesmo, obrigado – a contemplar a obra em seus mínimos detalhes. Há elegância; estilo; profundidade; e emoções as mais diversas com a desejável leveza. É comum transitarmos entre situação de risos e momentos de tensão e incredulidade em um mesmo diálogo. Há obstáculos a qualquer pessoa querer, em pouco mais de página, pinçar situações emblemáticas e, a partir delas, extrair o sumo. A caudalosa quantidade de páginas, entretanto, diferente do que se poderia pensar, não representa leitura densa, robusta ou de difícil intelecção. Ao reverso, a escrita, apesar de refletir o notório estilo da época em que elaborada, é palatável e fluída.

Consoante dito, os diálogos construídos transitam com maestria entre momentos que nos levam desde gargalhadas até profunda seriedade e reflexão. Pode-se dizer, com grande esforço de síntese, tratar a obra de uma verdadeira grande conversa travada entre Dom Quixote e Sancho Pança. Assim, o meu sentimento é o de que as histórias narradas são apenas o contexto dentro do qual as conversas entretidas entre os personagens principais são consubstanciadas.

O primeiro volume da obra de Cervantes foi escrito em 1605, já o segundo livro somente em 1615. Não obstante o lapso de 10 anos entre as publicações das obras, no curso da trama transpassa-se só alguns meses, o que evidencia a inalcançável qualidade do escritor, uma vez que não se percebe nenhuma quebra de qualidade nos personagens criados.

Em falando de personagens, é mais do que intuitivo falar um pouco, agora, de Dom Quixote e do seu fiel escudeiro, o Sancho Pança. O cavaleiro da Triste Figura – assim como é também conhecido Quixote – se enxerga como verdadeiro cavaleiro andante e assim se conduz em sua vida; ele sai atrás de aventuras incríveis para que possa justificar a sua alcunha. As aventuras são inúmeras, o que diverte a pessoa que tem o livro em mãos. Sancho é personagem secundário mas desempenha função singular. Talvez, ouso dizer, Quixote não fosse quem o foi se não houvesse Sancho em sua jornada. Sancho é ímpar e, apesar de estar seguro a respeito da loucura de Quixote, ele é instado a, diversas vezes, refletir se o seu amo é realmente mentecapto. Essa confusão interna no espírito de Sancho, que, aliás, reflete em suas condutas nos faz, enquanto leitor, acompanhar as profundas dúvidas existentes a respeito da personalidade de Quixote. Não poderia, por fim, deixar de registrar a inigualável qualidade de Sancho em propagar a torto e a direito inúmeros ditados populares. São fabulosos.

Nessas aventuras é indispensável que Quixote tenha, além de um escudeiro, uma donzela para amar incondicionalmente: Dulcineia del Toboso. Outros personagens colaterais – porém de relativa importância – existem para compor a história: o padre, o barbeiro e até mesmo a esposa e filha de Sancho.

A riqueza na linguagem – sempre a utilizar, Quixote, a 2ª pessoa do plural -, assim como a nunca superficialidade das histórias vivenciadas pelos personagens fazem o leitor se encantar com a grandiosidade de sua construção. Depois de lido, parece tudo óbvio e lúcido: daí, portanto, a genialidade. É comum ingressarmos em estado de reflexão que, para voltarmos à realidade, levemos alguns segundos. É como se a verticalidade iniciada pelo pensamento fugisse completamente ao controle do leitor, na exata proporção dos diálogos despretensiosamente construídos por Cervantes e que envolvem, principalmente, Dom Quixote e Sancho.

Enfim, a obra possui inúmeros detalhes, e jamais alguém poderá dizer que não saiu transformado após concluir a leitura. É corriqueiro, nesse contexto, mencionar a luta de Dom Quixote com “os moinhos de ventos” – embora essa passagem seja narrada bem no início da obra, o que me faz pensar não terem os leitores seguido adiante nela. As imaginações de Quixote a respeito de encontrar castelos e magos encantados. A luta contra gigantes e experiências com reis e nobres. Apesar de extensa, a obra é distinta e merece ser sublinhada três vezes. Não por outra razão é clássico inarredável para qualquer leitor que se proponha a expandir os paradigmas de leitura. Afinal, os tempos hoje são de leituras superficiais e rápidas, o que não se coaduna com os claros propósitos de Cervantes.

No livro, outros tantos personagens são apresentados ao leitor e outras tantas histórias são contadas em paralelo, como o caso do “O Curioso Impertinente”. Há, também, curiosidades invulgares, como, por exemplo, Dom Quixote tomar conhecimento de que está sendo escrito um livro sobre ele próprio, e o seu fiel escudeiro Sancho Pança – esse que está, agora, em nossas mãos, amigo leitor! Entrevê-se que a genialidade é inequívoca e desafia as maiores inteligências. Muito particularmente, já no segundo volume, os conselhos dados por Quixote a Sancho, notadamente quando este está na iminência de ir governar a sua ilha, me são marcantes. A manifesta lucidez de suas palavras – o que, de resto, é evidente na completude da obra – inflama a sempre atual controvérsia: até que ponto é possível afirmar que o nosso cavaleiro era louco? É possível classificá-lo assim?

A resposta não é das mais simples, porquanto, nas ideias, Dom Quixote sempre se apresentou sóbrio, posto as suas condutas serem tidas como tresloucadas, em especial quando envolvem matérias de cavalaria. Seja como for, não me parece adequado continuar a falar da obra por me faltar o desejável fôlego no dimensionamento da maior obra escrita em língua espanhola e, talvez, uma das maiores de todos os tempos de nossa literatura no ocidente.

O propósito, como dito inicialmente, consiste mais em encorajar novos leitores a aderir a esse tipo de leitura que me parece correr risco de extinção e, caso isso tenha sido alcançado em alguma medida, dou-me por satisfeito. Um grande abraço a todos.

Colunista

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Otávio de Oliveira
LL.M em Direito Societário pelo Insper/SP. Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Sócio Fundador do Escritório Buonora & Oliveira Advocacia. Julgador no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/PE. Presidente da Comissão de Direito Empresarial de Olinda. Administrador de Fundo de Investimento Internacional. . Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, da Associação Brasileira de Direito Processual Civil - ABDPro e da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo - ANNEP. . Advogado.

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