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A questão da cartularidade dos títulos de crédito e o processo judicial eletrônico

É inegável que o processo judicial eletrônico trouxe inúmeras facilidades para os diversos atores processuais. A Lei 11.419/2006 regulou o uso do meio eletrônico para processos judiciais, prevendo em seu artigo 11 a equiparação dos documentos “produzidos eletronicamente e juntados aos processos eletrônicos com garantia de origem e de seu signatário” aos documentos originais; além de assegurar no § 1º do mesmo dispositivo que os documentos digitalizados e acostados aos autos por advogados (públicos ou privados “têm a mesma força probante dos originais”. O processo judicial eletrônico, portanto, termina por eliminar despesas com a autenticação de documentos; e contribui para a racionalização da prestação jurisdicional.

Contudo, remanescem questionamentos sobre a adequação do procedimento em meio eletrônico em relação a execução de títulos de crédito. Será que se faz necessária a apresentação do original do título que lastreia a execução? Afinal de contas, os títulos de crédito são também chamados de cambiais porque se prestam a facilitar as operações de crédito e a transmissão dos direitos nele incorporados.

Tal transmissão de direitos mencionados no título de crédito pode se verificar por endosso, bastando a aposição da assinatura do endossante no verso ou anverso do título, nos termos do art. 910 do Código Civil. Assim, nos termos do art. 911 do Código Civil, o portador do título endossado é reputado seu legítimo possuidor. Ademais, o art. 887 do Código Civil prescreve que o título de crédito é documento necessário ao exercício do direito nele contido. Isto se dá em razão do princípio da cartularidade.

Daí porque, em razão da cartularidade e da possibilidade de circulação do título, faz-se necessária a apresentação do documento original para o exercício da pretensão ao crédito por ele provado: “O princípio da cartularidade é de observância obrigatória por se tratar de norma de ordem pública, conforme se depreende da leitura do art. 887 do CC/2002. Vale dizer: título de crédito é documento indispensável ao exercício do direito nele veiculado, sem o qual o titular, em regra, nada poderá fazer. No entanto, há uma razão por trás dessa previsão legal, que exterioriza o princípio da cartularidade: evitar ação de fraudadores. Conforme destacado anteriormente, o cheque pode circular livremente pelo mercado, característica de todos os títulos de crédito”.[1]

Neste sentido, confira-se as razões apresentadas pela culta Ministra Nancy Andrighi, da terceira turma do Superior Tribunal de Justiça, pela necessidade da apresentação do documento original:

A juntada da via original do título executivo extrajudicial é requisito essencial à formação válida do processo de execução e visa assegurar a autenticidade da cártula apresentada, bem como afastar a hipótese de ter o título circulado. – Afasta-se a nulidade dos atos processuais praticados em processo de execução fundado em cópia do título executivo extrajudicial, entretanto, se for juntada a via original, ainda que em data posterior à oferta dos embargos do devedor, e se, na hipótese, não houver impugnação à autenticidade da cópia apresentada. (EDcl no REsp 337.822/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/03/2002, DJ 08/04/2002, p. 213)

            Para que não se afirme que tal compreensão era anterior a realidade do processo judicial eletrônico, destaque-se também o precedente consubstanciado no REsp 1.277.394 (DJe 28/03/2016), que teve por relator o Min. Marco Aurélio Gastaldi Buzzi, da 4ª Turma daquele Tribunal Superior. O Ministro Buzzi asseverou que o Tribunal a quo, levando em consideração a possibilidade de circulação da cártula do título de crédito e a fim de evitar tal trânsito ilegítimo do título, além de eventual cobrança dúplice contra o devedor, exigiu a apresentação da cédula original. Pois, não obstante a revogação de certas regras pela Lei n. 10.931/2004, “certo é que não houve modificação do entendimento doutrinário e jurisprudencial assente no sentido de que, em sendo a cártula de crédito considerada título executivo extrajudicial, imprescindível o encarte da cédula aos autos de demandas judiciais que objetivem a sua cobrança ou o exercício de direitos dele decorrentes, notadamente naquelas ações que objetivem o pagamento de valor líquido e certo estampado no instrumento”.

Ademais, e mais importante, o ilustre Ministro também consigna naquele precedente que o advento da Lei n. 11.419/2006 não alterou tal realidade: “pois a presença do título continua sendo essencial para a execução, nos termos do artigo 614, I, do CPC, tramite ela em autos impressos em papel ou em meio eletrônico: Art. 614 do CPC. Cumpre ao credor, ao requerer a execução, pedir a citação do devedor e instruir a petição inicial: I – com o título executivo extrajudicial; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006). II – com o demonstrativo do débito atualizado até a data da propositura da ação, quando se tratar de execução por quantia certa; III – com a prova de que se verificou a condição, ou ocorreu o termo (art. 572). Não há dúvida de que o documento representativo do crédito líquido, certo e exigível é requisito indispensável não só para a execução propriamente dita, mas, também, para as demandas nas quais a pretensão esteja amparada no referido instrumento representativo do crédito. Essa é a regra. A dispensa da juntada do original do título somente ocorre quando há motivo plausível e justificado para tal, como exemplo, quando estiver instruindo outra demanda ou inquérito, envolver quantias vultosas, não possuir a serventia judicial local apropriado para a sua guarda, casos em que essa Corte Superior tem abrandado a regra geral, admitindo demanda fundada em fotocópias”.

Não se pode olvidar que foi a própria Lei n. 11.419/2006 (art. 20) que acrescentou regra no Código de Processo Civil de 1973 justamente no sentido de permitir ao juiz que determinasse a apresentação dos originais dos títulos executivos extrajudiciais, nos termos do § 2º do art. 365: “Tratando-se de cópia digital de título executivo extrajudicial ou outro documento relevante à instrução do processo, o juiz poderá determinar o seu depósito em cartório ou secretaria”.

Ora, como pode a Lei n. 11.419/2006 haver equiparado as cópias dos respectivos títulos aos originais, se permite que o juízo determine justamente a apresentação dos originais correspondentes as cópias digitais? Tal regra manteve-se no Código de Processo Civil de 2015, como se pode verificar do § 2º do art. 425: “Tratando-se de cópia digital de título executivo extrajudicial ou de documento relevante à instrução do processo, o juiz poderá determinar seu depósito em cartório ou secretaria”.

Na mesma linha de entendimento, a Terceira Turma do STJ decidiu no sentido de considerar que a apresentação da via original do título executivo extrajudicial é requisito essencial a regular formação do processo de execução, a fim de garantir a autenticidade da cártula e evitar sua circulação. Nas palavras da relatora, Ministra Nancy Andrighi, apenas se admite extraordinariamente a instrução com a cópia do original “quando não há dúvida quanto à existência do título e do débito e quando comprovado que o mesmo não circulou” (REsp 1.946.423/MA, julgado em 09.11.2021, DJe 12.11.2021).

É possível concluir, portanto, que a apresentação da via original do título de crédito no processo de execução apenas pode ser dispensada caso inexista qualquer dúvida quanto a existência do título e do débito e reste cabalmente demonstrado que o título não circulou e nem está apto a circular no mercado. Alguns Tribunais Estaduais vem adotando a interessante e correta medida de determinar a apresentação da via original do título a secretaria para que seja acrescentada informação na cártula de que aquele título se encontra vinculado a determinado feito executivo, a fim de certificar a existência do título e da dívida e justamente evitar a sua circulação.

 

Referências:

[1] BARBOSA, Marco Antonio; SCABELLI, Carlos Alberto; ROSSETTO, Guilherme Ferreira. O cheque e o princípio da cartularidade no processo digital. Revista de Processo, v. 254 (abr./2016). São Paulo: RT, p. 321-338.

Colunista

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Venceslau Tavares Costa Filho
Doutor em Direito pela UFPE. Professor dos Cursos de Graduação em Direito da UPE e da FAFIRE. Professor Permanente dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito, e do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UFPE. Professor convidado do Curso de Especialização em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco-USP. Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) - Seção Pernambuco. Membro da Academia Iberoamericana de Derecho de Familia y de de las Personas. Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Advogado.

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    1 Comment

    1. Excelente Temática!!!! Parabéns pela assertividade e competência Professor Venceslau!!!

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