Nelson Nogueira Saldanha e suas circunstâncias: reflexões por ocasião dos noventa anos de seu nascimento.
Nelson Nogueira Saldanha morreu no dia 10 de julho de 2015, aos 82 anos. Se vivo estivesse, teria completado 90 anos no dia 05 de fevereiro de 2023. Em tempos de fordismo acadêmico[1], pode-se dizer que um escritor como ele é uma avis rara na atualidade. Pois o escritor não é aquele que desperdiça laudas e laudas de papel para repetir o óbvio (a exemplo de livros e mais livros “facilitados” e “esquematizados” que se dedicam a repetir textos de súmulas, artigos de lei e informativos de jurisprudência), mas quem tem realmente algo a comunicar. Infelizmente, “é justamente por não terem de fato o que dizer, que certas pessoas escrevem e publicam vários volumes”.[2] O mercado editorial hoje parece sofrer com a proliferação dos pseudoescritores, que são prolíficos em produzir tratados que nada dizem, imersos no senso comum teórico dos juristas.
Nascido no dia 05 de fevereiro de 1933, no Recife, Nelson Saldanha era graduado em Direito pela tradicional Faculdade de Direito do Recife (da Universidade Federal de Pernambuco), onde também obteve os títulos de Doutor em Direito e de Livre-docente. Notabilizou-se no campo da Filosofia do Direito e da História das Ideias Jurídicas, mas também se destacou no Direito Constitucional e na Sociologia do Direito. Tornou-se um dos grandes juristas do nosso tempo justamente porque não se ateve apenas ao Direito. Apesar de ter feito carreira no Recife, era um cidadão do mundo; reverenciado nos grandes centros europeus e latino-americanos.
Tive a graça de privar de momentos de convivência com o professor Nelson Saldanha por ter sido colega no mestrado em Direito na UFPE de Alexandre Henrique Tavares Saldanha, que hoje também é nosso colega de docência no Curso de Direito da Universidade de Pernambuco e um dos filhos do professor Nelson que seguiu sua trilha na docência jurídica. Além de ouvir com atenção as lições do mestre, nos deleitávamos com a fina ironia dele nos almoços promovidos após as aulas e palestras.
A vasta cultura do professor Nelson talvez fosse devida a convivência desde a tenra idade com os livros e a fina-flor da intelectualidade pernambucana na Livraria Nogueira, pertencente a Manoel Nogueira de Souza, conforme registrado por Mauro Mota (imortal da Academia Brasileira de Letras).[3] Mauro Mota também registrou que Nelson Saldanha atribuía seu gosto pela poesia a influência do seu pai (o poeta Teobaldo Martins Saldanha), o apreço pela música à mãe (Irene Nogueira Saldanha) e o amor pelos livros ao avô Manoel Nogueira de Souza.
Um das frases que lembro ter sido repetida mais de uma vez por ele era a de que a palavra sabor tem a mesma raiz semântica da palavra saber. Anos depois, pude relacionar a referência do professor Nelson a importância da experiência para o conhecimento do fenômeno jurídico (como realçado também por Miguel Reale)[4], bem como a historicidade do fenômeno jurídico. Para Judith Martins-Costa tal perspectiva consiste na “compreensão do Direito in acto, isto é, como ‘concretitude de valoração do Direito’, como ‘realidade histórico-cultural […] atual e concretamente presente à consciência em geral, tanto em seus aspectos teoréticos como práticos’”.[5]
A perspectiva histórica (ou historicismo) foi um traço marcante no pensamento de Nelson Saldanha. Esta foi a nota característica do pensamento do professor Nelson no âmbito do que se poderia chamar de movimento culturalista (apesar dele mesmo não se considerar exatamente um), que tem em Miguel Reale um dos pontos altos. O historicismo procura encarar as “experiências humanas como algo que, não podendo ocorrer senão em situações históricas, adquirem significado na medida em que se encaixam numa interpretação que leva em conta tais situações”.[6] Muita vez, observa-se entre alguns adeptos do chamado “direito civil-constitucional” uma atitude metodológica que parece ignorar esta historicidade do direito, porquanto considere que a Constituição de 1988 fez tabula rasa do direito civil.
Não é raro ver certos autores afirmarem que a Constituição Federal de 1988 iniciou uma nova era no direito privado, como se ignorassem o valor da multissecular tradição privatista. Esta visão a-histórica do fenômeno jurídico guarda relação com o insuficiente desenvolvimento de uma teoria filosófica das ciências culturais e com o prestígio do conceito físico-matemático de ciência.[7]
Esta fragmentação do direito civil, que paulatinamente deixa de ter um locus próprio para se misturar ao direito constitucional, era motivo de preocupação para Nelson Saldanha. Para ele, “em nosso tempo de desconstruções, reconstruções, decodificações e hermenêutica, a revisão do sentido da teoria jurídica precisa incluir o reexame da posição privatística como mater do pensamento jurídico ocidental”.[8]
Por fim, a adoção de uma perspectiva historicista (ou culturalista) – como a de Nelson Saldanha, Miguel Reale e Judith Martins-Costa – pode proporcionar uma “vacina” eficaz contra certo tipo de otimismo exagerado que às vezes se apresenta como verdadeira epidemia entre os juristas. Não raro, um civilista afirma que o direito civil atual “após a constitucionalização” foi elevado ao cimo da perfeição, ou que este é o estágio mais avançado da “evolução” normativa.
Esta tendência “otimista” dos juristas no sentido de mitificar o direito (ou de enxergar o momento atual como o melhor dos mundos possíveis) evidencia uma percepção evolucionista da história do fenômeno jurídico, “onde as normas e valores do presente já existem em embrião no passado mais longíquo”. Daí porque é comum ver autores afirmarem que Teixeira de Freitas era um homem “à frente do seu tempo”, ou que Tobias Barreto “antecipou tal teoria”. Como crítica e contraponto a esta visão evolucionista da história, Nelson Saldanha afirma que os grande vultos do passado devem ser interpretados como intelectuais ligados às suas respectivas épocas, sem que se possa cobrar deles a adesão a teses que estão em voga hoje.[9]
Esta lição também se aplica a Nelson Saldanha, Tobias Barreto ou a Pontes de Miranda. Foram homens de seu tempo. Nelson Saldanha, em sua visão relativista, gostava de se referir aos “passados”. Certamente, no Jardim e na Praça (brilhante metáfora para se referir a dicotomia público x privado) existiram diversos Nelsons Saldanhas. Talvez, alguns lembrem do apreciador de boa música, disposto a conversar sobre o último lançamento de Lenny Kravitz. Outros lembrarão do profundo conhecedor de Ortega y Gasset, Hegel e Dilthey.
Enfim, era ele e suas circunstâncias.
Notas e Referências:
[1]Expressão que acredito ter sido cunhada por Otávio Luiz Rodrigues Jr em sua coluna no portal Conjur. Cf.: RODRIGUES JR, Otávio Luiz. O modelo de pós-graduação: o dilema da qualidade e da produção. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-nov-22/direito-comparado-modelo-pos-graduacao-dilema-qualidade-producao Acesso em: 06 de fevereiro de 2023.
[2] SALDANHA, Nelson. Filosofia, povos, ruínas: páginas para uma filosofia da história. Rio de Janeiro: Calibán, 2002, p. 20.
[3] MOTA, Mauro. Modas e modos. Recife: Raiz, 1977. Tive a grata surpresa de tomar conhecimento disto graças a uma live conduzida pelo Professor Antonio Manuel, Diretor do Colégio São Plácido em Recife e nosso colega de faculdade, em seu canal no Youtube. Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=QFmyN9LQrkI Acesso em: 06 de fevereiro de 2023.
[4] Cf.: REALE, Miguel. O direito como experiência. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1992. Não posso também deixar de recomendar a excelente resenha do Professor Marcelo Picchioli da Silveira: O direito como experiência de Miguel Reale – Por Marcelo Picchioli da Silveira. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-direito-como-experiencia-de-miguel-reale-por-marcelo-pichioli-da-silveira#:~:text=O%20Direito%20como%20Experi%C3%AAncia%20%C3%A9,mais%20tarde%2C%20pelos%20fil%C3%B3sofos%20neokantistas. Acesso em: 06 de fevereiro de 2023.
[5] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil, Volume V, tomo I: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 05. Em nossa modesta opinião, Judith Martins-Costa é hoje o maior expoente do culturalismo no Brasil, que tem no Instituto de Estudos Culturalistas (presidido por ela e sediado em Canela-RS) o principal centro de difusão.
[6] SALDANHA, Nelson. Historicismo e culturalismo. Rio de Janeiro/Recife: Tempo Brasileiro/FUNDARPE, 1986, p. 17.
[7] SALDANHA, Nelson. History, reason and law. Archiv für Rechts und Sozialphilosophie, Bd. LXI/1 (1975). Franz Steiner Verlag GmbH, Wiesbaden, BRD, p. 62.
[8] SALDANHA, Nelson. Apontamentos sobre a teoria do direito civil. Revista Acadêmica, n. 84 (2012). Recife: UFPE, p. 465.
[9] SALDANHA, Nelson. Observações gerais sobre Jhering. In: ADEODATO, João Maurício (org.). Jhering e o Direito no Brasil. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1995, p. 183.