De onde vem o “dever de cooperar”?
De onde vem o “dever de cooperar”? Resenha crítica do artigo “Omissão do dever de cooperação do Tribunal: que consequências?”, de autoria de Miguel Teixeira de Sousa (2015).
Por Alexandre de Paula Filho*
No texto “Omissão do dever de cooperação do Tribunal: que consequências?”[1], publicado em seu perfil no Academia.edu, o autor, Prof. Dr. Miguel Teixeira de Sousa, se propõe a discutir o princípio da cooperação e repercussões processuais de sua inobservância.
Apesar de colocar a cooperação como dever de todos os sujeitos processuais, a proposta é focar na cooperação como dever do juízo da causa. Segundo o autor, para cumprir com tal função, o tribunal “dirige activamente o processo e providencia pelo seu andamento célere (cf. art. 6.º, n.º 1), como também dialoga com as partes e ainda participa da aquisição de matéria de facto e de direito para o proferimento da decisão”.
Para tanto, destrincha o dever de colaboração em cinco deveres menores e complementares: a) inquisitoriedade (em matéria probatória); b) prevenção ou advertência (quanto a ausência de pressupostos processuais sanáveis e irregularidades/insuficiências das peças e alegações); c) esclarecimento (junto às partes, para melhor entender alegações, pedidos e posições em juízo que padeçam de ambiguidade sintática ou semântica); d) consulta (prévia às partes sempre que pretenda conhecer oficiosamente matéria de fato ou direito), e; e) auxílio (às partes na remoção de dificuldades no exercício de seus direitos ou faculdades no cumprimento de seus ônus u deveres processuais).
Afirma o autor que o exercício de tais deveres em nada fere sua imparcialidade “se essa colaboração tiver um carácter complementar ou corrector da actividade da parte”. Pelo contrário, segundo o autor, “a parcialidade do tribunal só começa onde acaba o dever de cooperação”. Sustenta, ainda, que a cooperação cumpre uma “função assistencial das partes”, ainda que acompanhadas de advogado.
Dada a importância que confere à cooperação – dever funcional do tribunal – Miguel Teixeira de Sousa defende que a aplicação do dever (em seus desdobramentos) em toda e qualquer situação em que o curso do processo demandar. Sendo obrigatório, aduz que há consequências para a não observação adequada que, em apertada síntese, seria a nulidade da decisão de improcedência de pedido da parte em razão da falta de fatos que poderiam ter sido invocados em cumprimento do dever em comento.
A tese de Miguel Teixeira de Sousa, defendida no artigo objeto da presente resenha foi desenvolvida no contexto do CPC português em vigor, código que inspirou consideravelmente o CPC brasileiro, que importou o princípio da cooperação não somente em suas normas fundamentais (art. 6º), mas também previu diversas regras contemplando os cinco sub-deveres dele decorrem, na concepção de Sousa.
Como se sabe, a doutrina majoritária entende, quase como dogma, que o legislador do CPC/15 elegeu a cooperação como modelo processual reitor das regras de condução do processo, tanto as destinadas ao juízo, como às partes. Há autores que entendem que desde antes do CPC vigente já vigorava o modelo em questão, tendo ele simplesmente sido positivado como norma fundamental e influenciado na produção de outras regras ao longo do Código.
Contudo, este dogma da “criação de um modelo processual pela lei” deve ser questionado, pois parte de uma premissa perigosa: a de que a Constituição Federal não prevê modelo processual algum. Essa ideia é incompreensível à luz da previsão de uma série de direitos fundamentais ligados ao processo em nosso texto constitucional, como devido processo legal, contraditório e ampla defesa, juízo natural, inafastabilidade da tutela jurisdicional, duração razoável do processo, inadmissão de provas ilícitas, dever de fundamentação das decisões.
Nesse sentido, antes mesmo do legislador, o constituinte preocupou-se com o processo, prevendo diversas normas de aplicabilidade imediata (diferentemente de princípios), não sendo sustentável nem do ponto de vista hierárquico (pois regras constitucionais não se submetem às legais), tampouco dogmático (pois as regras constitucionais ligadas ao processo são cogentes e dispensam norma infraconstitucional para sua delimitação e aplicabilidade).
Pode-se questionar: em que as regras que correspondem ao suposto modelo cooperativo previsto pelo CPC ferem o modelo constitucional de processo? Nesse sentido, rememore-se a afirmação de Sousa de que a aplicação dos deveres de cooperação não somente não fere a imparcialidade, como é parcial o magistrado que não as aplica.
Ora, nossa Constituição Federal estabelece como direitos fundamentais o contraditório e o juízo natural. A sua adequada aplicação conduz a uma conclusão em sentido diametralmente oposto à ideia de “comunidade de trabalho” ou ainda “cooperação entre juízo e partes”: a da necessária divisão de funções entre partes e tribunal.
A divisão de funções – estabelecendo o que é dever de parte e dever do juízo – é o elemento garantidor de outro direito previsto expressamente na lei (e não na Constituição), mas que decorre da interpretação dos direitos fundamentais ao contraditório e ao juízo natural: a imparcialidade. Imparcial é quem não toma parte, conforme a etimologia da palavra, ideia que, no processo, dialoga diretamente com o dever de observação do contraditório, nos limites do devido processo legal.
Isso porque o contraditório é direito exclusivo das partes. Trata-se da garantia de efetiva participação – das partes – e irradia em diversas situações jurídicas ativas no processo, tendo seu exercício previsão em lei e não se submetendo ao critério do juiz. Assim, dogmaticamente, nada pode o magistrado fazer para corrigir erros ou omissões decorrentes do mau exercício de tal direito.
Não só a dogmática, mas a psicologia também aponta problemas ligados ao exercício de um suposto dever de cooperação. Isso porque o magistrado que, ainda que de boa-fé, para promover uma solução justa, realiza um ato que, a priori, caberia à parte (como estimular a complementação ou correção de postulações mal-feitas/incompletas ou produzir oficiosamente uma prova) enviesa-se na decisão final.
Assim, o suposto modelo de cooperação defendido no artigo ora resenhado bem como por considerável parte da processualística brasileira, não encontra nem previsão e nem fundamento na própria Constituição Federal, em que pese a positivação de diversas normas que lhe dão azo na legislação infraconstitucional.
Referências:
*Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE). Professor universitário e Advogado.
[1] Disponível em: https://www.academia.edu/10210886/TEIXEIRA_DE_SOUSA_M_Omiss%C3%A3o_do_dever_de_coopera%C3%A7%C3%A3o_do_tribunal_que_consequ%C3%AAncias_01_2015_