Razão de decidirTJMG

A discricionariedade motivada do Ministério Público e o oferecimento do acordo de não persecução penal

A partir da vigência da Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), inseriu-se uma importante alteração no Código de Processo Penal brasileiro, qual seja, o denominado acordo de não persecução penal. Tal instituto pode ser definido como uma espécie de negócio jurídico pré-processual, que se realiza entre o Ministério Público e o investigado, devidamente assistido por seu defensor; no qual as partes negociam cláusulas que deverão ser cumpridas pelo acusado, para que, ao final, ocorra a extinção da punibilidade.

O artigo 28-A do Código de Processo Penal dispõe, in verbis, que:

“Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

 I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);

IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou

V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

§ 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.

§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:

I – se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;

II – se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;

III – ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e

IV – nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

§ 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor.

§ 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade.

§ 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.

§ 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal.

§ 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo.

§ 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia.

§ 9º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento.

§ 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia.

§ 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo.

§ 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo.

§ 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.

§ 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.”.

 

Dentre várias discussões acerca da temática, como, a título de exemplo, acerca da retroatividade do instituto, muito se debateu sobre o instituto caracterizar, ou não, um direito subjetivo do réu. O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o RHC nº 161.251, decidiu:

“PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL – ANPP. PLEITO DE REALIZAÇÃO DO ACORDO. NÃO CABIMENTO APÓS O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. FACULDADE DO PARQUET. RECUSA DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. O acordo de não persecução penal, previsto no art. 28-A do Código Penal, implementado pela Lei n. 13.964/2019, indica a possibilidade de realização de negócio jurídico pré-processual entre a acusação e o investigado. Trata-se de fase prévia e alternativa à propositura de ação penal, que exige, dentre outros requisitos, aqueles previstos no caput do artigo: 1) delito sem violência ou grave ameaça com pena mínima inferior a 4 anos; 2) ter o investigado confessado formal e circunstancialmente a infração; e 3) suficiência e necessidade da medida para reprovação e prevenção do crime. Além disso, extrai-se do §2º, inciso II, que a reincidência ou a conduta criminal habitual, reiterada ou profissional afasta a possibilidade da proposta. 2. A Corte de origem entendeu que a negativa do Ministério Público Federal em ofertar a proposta de ANPP estava devidamente fundamentada. Consoante se extrai dos autos, a denúncia foi recebida pelo juízo de primeiro grau em abril de 2017. De fato, “o acordo de não persecução penal (ANPP) previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei n. 13.964/2019, terá aplicação somente nos procedimentos em curso até o recebimento da denúncia (ARE 1294303 AgRED, Relatora: ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 19/4/2021). 3. Além do mais, o acordo pretendido deixou de ser ofertado ao recorrente em razão do Ministério Público ter considerado que a celebração do acordo, no caso concreto, não seria suficiente para a reprovação e prevenção do crime, pois violaria o postulado da proporcionalidade em sua vertente de proibição de proteção deficiente, destacando que a conduta criminosa foi praticada no contexto de uma rede criminosa envolvendo vários empresários do ramo alimentício e servidores do Ministério da Agricultura. 4. Esta Corte Superior entende que não há ilegalidade na recusa do oferecimento de proposta de acordo de não persecução penal quando o representante do Ministério Público, de forma fundamentada, constata a ausência dos requisitos subjetivos legais necessários à elaboração do acordo, de modo que este não atenderia aos critérios de necessidade e suficiência em face do caso concreto.5. De acordo com entendimento já esposado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, a possibilidade de oferecimento do acordo de não persecução penal é conferida exclusivamente ao Ministério Público, não constituindo direito subjetivo do investigado. 6. Cuidando-se de faculdade do Parquet, a partir da ponderação da discricionariedade da propositura do acordo, mitigada pela devida observância do cumprimento dos requisitos legais, não cabe ao Poder Judiciário determinar ao Ministério Público que oferte o acordo de não persecução penal. 7. Recurso não provido.” (AgRg no AREsp n. 2.306.044/SC, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 24/10/2023, DJe de 27/10/2023 – sem grifos no original).

Assim também já decidiu o Supremo Tribunal Federal, o afirmar que o “art. 28-A do Código de Processo Penal, alterado pela Lei 13.964/2019, foi muito claro nesse aspecto, estabelecendo que o Ministério Público ‘poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições'”. Ou seja, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) não obriga o Ministério Público nem garante ao acusado verdadeiro direito subjetivo em realizá-lo. Simplesmente permite ao parquet a opção, devidamente fundamentada, entre denunciar ou realizar o acordo, a partir da estratégia de política criminal adotada pela Instituição” (HC n. 195.327 AgR, Relator Ministro ALEXANDRE DE MORAES, publicado em 13/4/2021).

Nos termos do entendimento exarado pelos Tribunais Superiores, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu:

Apelação criminal. Uso de documento falso. Oferta de acordo de não persecução penal. Direito subjetivo. Inexistência. Preclusão. Justiça gratuita. Isenção do pagamento de custas. Matéria afeta ao juízo da execução. – O acordo de não persecução penal não caracteriza direito subjetivo do investigado, mas se insere na discricionariedade motivada do Ministério Público, não cabendo ao Poder Judiciário determinar sua celebração, sobretudo quando preclusa a matéria. – O pedido de justiça gratuita, com isenção do pagamento das custas processuais, configura matéria a ser conhecida pelo juízo da execução. (TJMG – Apelação Criminal nº 1.0000.23.186434-9/001, Rel. Des. Franklin Higino Caldeira Filho, 3ª Câmara Criminal, j. em 19.12.2023, p. em 08.01.2024).

O eminente relator, no referido acórdão, sustentou que “o novel acordo trazido pela Lei nº 13.964/2019 não configura direito subjetivo do investigado e tampouco cabe ao Poder Judiciário impor sua celebração junto ao Ministério Público, a quem incumbe, em discricionariedade motivada, avaliar a sua suficiência e adequação para a repreensão e prevenção dos delitos” (TJMG – Apelação Criminal nº 1.0000.23.186434-9/001, Rel. Des. Franklin Higino Caldeira Filho, 3ª Câmara Criminal, j. em 19.12.2023, p. em 08.01.2024).

Pontua-se, então, que o provimento jurisdicional prestado quando do julgamento da Apelação Criminal nº 1.0000.23.186434-9/001 encontra respaldo no posicionamento atualmente defendido pelos Tribunais Superiores.

 

Decisão: TJMG – Apelação Criminal nº 1.0000.23.186434-9/001, Rel. Des. Franklin Higino Caldeira Filho, 3ª Câmara Criminal, j. em 19.12.2023, p. em 08.01.2024.

Link: https://www8.tjmg.jus.br/themis/baixaDocumento.do?tipo=1&numeroVerificador=1000023186434900120236198612

 

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Brenda Nascimento
Mestranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Ciências Criminais. Graduada em Direito pela Universidade José do Rosário Vellano. Assistente Judiciário no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG).

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