A retroatividade da norma processual penal e a necessidade de representação da vítima no delito de estelionato após a alteração advinda da Lei de nº 13.964/2019
A Lei nº 13.964/2019, ao alterar o Código Penal, acrescentou o § 5º ao art. 171 do CP, que dispõe, in verbis:
[…] § 5º Somente se procede mediante representação, salvo se a vítima for:
I – a Administração Pública, direta ou indireta;
II – criança ou adolescente;
III – pessoa com deficiência mental;
IV – maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.
Portanto, passou-se a exigir representação por parte da vítima do delito de estelionato, exceto quando os crimes forem cometidos contra a Administração Pública, direta ou indireta; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental; maior de 70 (setenta) anos de idade; ou incapaz.
A referida alteração legislativa finaliza uma norma processual material (mista ou híbrida), ensejando em importante modificação na aplicabilidade do regramento de direito intertemporal. Esclarece a doutrina:
“[…] normas processuais materiais (mistas ou híbridas): são aquelas que abrigam naturezas diversas, de caráter penal e de caráter processual penal. Normas penais são aquelas que cuidam do crime, da pena, da medida de segurança, dos efeitos da condenação e do direito de punir do Estado (v.g., causas extintivas da punibilidade). De sua vez, normas processuais penais são aquelas que versam sobre o processo desde o seu início até o final da execução ou extinção da punibilidade. Assim, se um dispositivo legal, embora inserido em lei processual, versa sobre regra penal, de direito material, a ele serão aplicáveis os princípios que regem a lei penal, de ultratividade e retroatividade da lei mais benigna. Não há consenso na doutrina acerca do conceito de normas processuais materiais ou mistas. Uma primeira corrente sustenta que normas processuais materiais ou mistas são aquelas que, apesar de disciplinadas em diplomas processuais penais, dispõem sobre o conteúdo da pretensão punitiva, tais como aquelas relativas ao direito de queixa, ao de representação, à prescrição e à decadência, ao perdão, à perempção, etc. Uma segunda corrente, de caráter ampliativo, sustenta que normas processuais materiais são aquelas que estabelecem condições de procedibilidade, meios de prova, liberdade condicional, prisão preventiva, fiança, modalidade de execução da pena e todas as demais normas que produzam reflexos no direito de liberdade do agente –, ou seja, todas as normas que tenham por conteúdo matéria que seja direito ou garantia constitucional do cidadão. Independentemente da corrente que se queira adotar, é certo que às normas processuais materiais se aplica o mesmo critério do direito penal, isto é, tratando-se de norma benéfica ao agente, mesmo depois de sua revogação, referida lei continuará a regular os fatos ocorridos durante a sua vigência (ultratividade da lei processual penal mista mais benéfica); na hipótese de novatio legis in mellius, referida norma será dotada de caráter retroativo, a ela se conferindo o poder de retroagir no tempo, a fim de regular os fatos ocorridos anteriormente a sua vigência. […]” (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único – 8ª ed. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p. 92-93).
Dito isso, e acerca da temática, no dia 04/10/2023 a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas erais, ao julgar a Apelação Criminal nº 1.0079.16.013453-6/001, decidiu:
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL – ESTELIONATO – NATUREZA DA AÇÃO PENAL – RETROATIVIDADE DA LEI NOVA MAIS BENÉFICA – AUSÊNCIA DE TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO – RETRATAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO – DECADÊNCIA RECONHECIDA. O art. 171, §5º, do Código Penal, acrescido pela Lei 13.964/2019, é norma de conteúdo processual-penal ou híbrido que atinge a própria pretensão punitiva estatal. Essa inovação legislativa, por ser norma penal de caráter mais favorável ao réu, deve ser aplicada de forma retroativa para atingir tanto investigações criminais quanto ações penais em curso até o trânsito em julgado. Verificada a retratação da representação da vítima antes do oferecimento da denúncia, deve-se declarar extinta a punibilidade pela decadência (Precedente do STF). (TJMG – Apelação Criminal 1.0079.16.013453-6/001, Relator(a): Des.(a) Franklin Higino Caldeira Filho , 3ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 04/10/2023, publicação da súmula em 11/10/2023)
Sabe-se que o alcance da retroatividade da referida norma híbrida, após ser objeto de inúmeras divergências nos Tribunais Superiores, foi analisado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 02/05/2023, oportunidade na qual os Ministros, por maioria, decidiram pela retroatividade do §5º do art. 171 do CP, devendo ser aplicado, com fulcro no art. 5º, XL, da CR/88, aos processos criminais que ainda não transitaram em julgado.
Colaciona-se a ementa do referido julgado:
EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL. RETROATIVIDADE DO § 5º DO ART. 171, INCLUÍDO NO CÓDIGO PENAL PELA LEI N. 13.964/2019. ALTERAÇÃO DA NATUREZA DA AÇÃO PENAL PARA O CRIME DE ESTELIONATO COMUM. INCLUSÃO DE CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. NORMA DE NATUREZA HÍBRIDA. RETROAÇÃO EM BENEFÍCIO DO ACUSADO. MÁXIMA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. INC. XL DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO DA VÍTIMA PARA PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO. PRECEDENTES. ORDEM CONCEDIDA.
(HC 208817 AgR, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 13/04/2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 28-04-2023 PUBLIC 02-05-2023).
Extrai-se dos votos proferidos pelos Ministros que, em síntese, a norma de natureza mista retroage em benefício do réu, devendo ser aplicada a investigações e processos em andamento, ainda que iniciados em momento anterior à vigência da Lei nº 13.964/19.
Diante de tal posicionamento, o Superior Tribunal de Justiça alterou seu entendimento e passou a anuir com as decisões exaradas pelo Excelso Pretório, passando a aplicar o disposto no §5º do art. 171 do CP de forma retroativa:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ESTELIONATO. PRETENDIDA APLICAÇÃO RETROATIVA DO ART. 171, §5º, DO CÓDIGO PENAL, INCLUÍDO PELA LEI N. 13.964/2019 (PACOTE ANTICRIME). ENTENDIMENTO DO STF PELA RETROATIVIDADE DA LEI NOVA. NECESSIDADE DE NÃO ESTAR DEMONSTRADO O INTERESSE DA VÍTIMA NA PERSECUÇÃO PENAL. CASO CONCRETO EM QUE AS VÍTIMAS MANIFESTARAM EXPRESSAMENTE O DESEJO DE VER OS ACUSADOS PROCESSADOS. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
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- A Terceira Seção deste STJ, no julgamento do HC 610.201/SP, em 24/3/2021, superando divergência entre as Turmas, pacificou a controvérsia e decidiu pela irretroatividade da norma que instituiu a condição de procedibilidade no delito previsto no art. 171 do Código Penal, quando já oferecida a denúncia.
- O Supremo Tribunal Federal pacificou a divergência até então existente entre suas Turmas e, por maioria, proclamou a retroatividade da lei nova, mesmo após o recebimento da denúncia anterior à Lei n. 13.964/2019. Precedente: HC 208.817 AgRg, Relatora Ministra Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 13/4/2023, DJe 2/5/2023. Neste precedente restou assentado que a retroatividade da lei deve ser aplicada apenas àqueles casos em que não haja demonstração inequívoca do interesse da vítima na persecução penal.
Ainda assim, se inexistentes elementos indicativos da vontade da vítima na persecução penal, deve o magistrado proceder à respectiva intimação dos ofendidos para que apresentem eventual representação. […]
(AgRg no HC n. 846.046/PE, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 30/10/2023, DJe de 3/11/2023 – sem grifos no original).
Portanto, em consonância com o atual entendimento exarado pelos Tribunais Superiores foi a decisão proferida em sede da Apelação Criminal nº 1.0079.16.013453-6/001 que, ao verificar nos autos originários a presença de retratação da representação da vítima antes do oferecimento da denúncia, aplicou retroativamente a norma mais benéfica e, consequentemente, declarou extinta a punibilidade do agente pela decadência.
Decisão: TJMG – Apelação Criminal 1.0079.16.013453-6/001, Relator(a): Des.(a) Franklin Higino Caldeira Filho , 3ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 04/10/2023, publicação da súmula em 11/10/2023