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Aposentadoria como fato gerador da extinção do contrato de trabalho de servidores celetistas após a EC 103/2019

A etimologia da palavra “Previdenciário” vem do latim “praevidentia” e significa prever, antever. Entretanto, é fato que diante da torrente legislativa, fruto da modernidade líquido – já há muito anunciada por Bauman – fica difícil planejar algo para o futuro sem ter segurança jurídica da solidez legislativa dos anos vindouros, posto que a qualquer momento uma reforma por vir e solapar sua expectativa de direito. Nesse sentido, é possível verificar a contextualização do que se afirma quando analisa-se o § 14 do art. 37 da CRFB/88 que fora introduzido pela EC. 103/2019 e que tem causado um verdadeiro reboliço no tocante a aposentadoria dos servidores celetistas em face da garantia fundamental do direito adquirido.

A EC. 103/2019 entrou em vigor em 13/11/2019 e, devido às mudanças que a reforma implementou no ordenamento jurídico brasileiro, adveio diversas polêmicas. A primeira, encontra-se já no art. 1º que introduziu, no art. 37 da CRFB/88 o § 14, o qual deve ser interpretado em conjunto com o art. 6º da referida emenda constitucional. Assim dispõe o art. 37, §14 “A aposentadoria concedida com a utilização de tempo de contribuição decorrente de cargo, emprego ou função pública, inclusive no RGPS, acarretará o rompimento do vínculo que gerou o referido tempo de contribuição”. Já o art. 6º da EC 103/2019, assim aduz “O disposto no §14 do art. 37 da Constituição Federal não se aplica a aposentadoria concedidas pelo Regime Geral da Previdência Social até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional”.

Da leitura fria da lei (ao menos preliminarmente) parece que o Constituinte Reformador respeitou as cláusulas pétreas e os direitos e garantias fundamentais, sobretudo, o direito adquirido. Todavia, a referida alteração legislativa colocou a Administração Pública e os segurados diante de 02 (duas) situações específicas, as quais são sintetizadas nos seguintes problemas:

  1. É possível ou não a permanência no vínculo funcional do servidor público (empregado celetista): 1.1) Que tinha direito adquirido à aposentadoria antes da entrada em vigor da EC. 103/2019, e que efetuou o requerimento da aposentadoria antes da EC. 103/2019, mas o Processo Administrativo Previdenciário (PAP), só veio a ser concluído concedendo a aposentadoria em período posteriormente a EC. 103/2019? 1.2) Que tinha direito adquirido à aposentadoria antes da entrada em vigor da EC. 103/2019, mas não tinha efetuado o requerimento do benefício antes, deixando para efetuar o referido pedido somente após a EC. 103/2019?

A priori, é possível notar que no primeiro caso, embora o segurado tenha direito adquirido à aposentadoria antes da EC. 103/2019, o benefício só veio a ser concedido após a promulgação da EC. 103/2019. Assim, a partir de uma interpretação positivista da letra fria da lei, pode-se afirmar que o vínculo contratual estaria extinto, tendo como fato gerador o deferimento da aposentadoria após a EC. 103/2019. No entanto, partindo de uma exegese pós-positivista, que leva em consideração na interpretação jurídica não apenas a letra da norma, mas, também o telos, a finalidade, os valores que orientam o ordenamento jurídico, depreende-se que não poderia o segurado ser punido, tendo extinto seu contrato de trabalho, por conta da morosidade da Administração Pública em concluir seu requerimento antes da EC. 103/2019. Além disso, mesmo o benefício sendo concedido após a entrada em vigor da Reforma da Previdência, em garantia ao instituto do direito adquirido, a data de início do benefício (DIB) deveria ser concedida na data de entrada do requerimento, ou seja, antes da entrada em vigor da referida alteração constitucional.

O segundo caso, entretanto, é mais delicado, posto que o segurado servidor celetista, embora já possuísse o direito adquirido à concessão da aposentadoria antes da EC. 103/2019, o mesmo só veio a formalizar o pedido junto a Administração Pública após a entrada em vigor da EC. 103/2019. Nesse contexto, para equalizar esse caso concreto o qual pode ocorrer não apenas por falta de interesse de agir do segurado, mas por alguma morosidade da própria administração no fornecimento de uma CTC ou a emissão da 2ª via de algum documento indispensável a formalização do pedido de aposentadoria, entendo que não pode a Administração Pública se afastar da Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, posto que de um lado se encontra a garantia fundamental ao direito adquirido.

Nesse sentido, de acordo com Ingo Sarlet, os direitos fundamentais se inserem numa tríade que é formada por um Estado Democrático de Direito, a existência de uma Constituição e que essa Constituição tenha como princípio motriz a dignidade da pessoa humana. Dessa maneira, levando em consideração a eficácia vertical dos direitos fundamentais, dentro de um Estado Democrático de Direito não pode pessoas com direitos subjetivos equivalentes serem tratadas de maneira distinta, haja vista que tal situação colocaria em cheque a segurança jurídica e o princípio da igualdade, os quais são a base de um Estado Democrático e justo.

Desta feita, entendo que o caminho mais razoável a ser tomado pela Administração Pública seria, após o requerimento administrativo de aposentadoria, franquear um prazo para que o servidor público celetista se manifestasse se desejaria se aposentar computando o tempo contributivo até a data de entrada em vigor da EC. 103/2019 e, portanto, abrindo mão das contribuições feitas a posteriori que, eventualmente, pudessem até majorar a renda mensal inicial (RMI) do seu benefício de aposentadoria. Assim, o servidor celetista, embora se aposentasse depois da EC. 103/2019, em atenção a garantia fundamental do direito adquirido, só seria computado como tempo contributivo, o tempo vertido no vínculo para o RGPS antes da EC. 103/2019 e, desta maneira, o servidor empregado não teria como condição sine qua non da sua aposentadoria a extinção do seu vínculo de trabalho.

Portanto, diante da inclusão do novo dispositivo constitucional, para que não se viole a garantia fundamental ao direito adquirido e que não seja desencadeado, dentro do ordenamento jurídico, o que Otto Bachof intitulou de “Normas Constitucionais Inconstitucionais”, entendo como sendo adequado a fixação de 4 teses, no que tange à interpretação do art. 37, § 14, da CRFB/88 c/c o art. 6º da EC. 103/2019:

I) É possível a permanência do vínculo dos servidores celetistas no emprego, cargo ou função pública, caso a aposentação no Regime Geral (RGPS) tenha sido concedida até a vigência da EC. 103/2019, em 13/11/2019, por força do direito adquirido e da expressa disposição do art. 6º da EC. 103/2019;

II) É possível a permanência do vínculo dos servidores celetistas no emprego ou função pública caso a aposentação no Regime Geral (RGPS) tenha sido concedida após a EC. 103/2019, mas a data de entrada do requerimento (DER) tenha sido antes da referida alteração constitucional e a data de início do benefício (DIB) seja na DER;

III) É possível a permanência no vínculo funcional do servidor celetista ocupante de cargo, emprego ou função pública que tenha se aposentado após a EC. 103/2019, mas que fez a opção expressa em utilizar apenas como tempo contributivo para aposentadoria, os períodos trabalhados e vertidos para a Previdência Social até 13/11/2019, data de entrada em vigor da EC. 103/2019, em respeito a garantia fundamental do direito adquirido.

IV) É impossível a permanência do vínculo funcional do ocupante de cargo, emprego ou função pública que tenha se aposentado com utilização do tempo de contribuição após a vigência da EC. 103/2019, por expressa previsão legal do art. 37, §14 da CRFB/88, incluído pela EC. 103/2019.

 

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Abner Jovino
Pós-Graduando em Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Pós-Graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Advogado e Consultor Jurídico.

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