Arbitragem em juízo
“Se os impasses gerados pela nova Lei de Arbitragem – e, certamente, serão muitos! – forem tratados com serenidade, à luz dos princípios do direito processual, tudo se resolverá a contento. É evidente que, se a arbitragem vier a empolgar os operadores do direito e a população, certamente, serão encontrados os caminhos para instrumentalizar este utilíssimo mecanismo de solução de litígios (…) o relacionamento de coordenação entre juízes e árbitros dependerá de dois aliados poderosos: o estudo e a boa-vontade![1]”
O excerto acima, elaborado por Carlos Alberto Carmona, da década de 90, ilustra a relevância do assunto que intitula nossa abordagem. O tema não é novo e merece nossa atenção.
À primeira vista, escolher arbitragem como solução de conflitos significaria evitar o Poder Judiciário, escapar de todos os mecanismos recursais, burocracias sem explicação, debates judiciais inconclusos, com decisões imprevisíveis e a quase invencível leniência judicial. No entanto, ainda que se considere possível resolver uma contenda sem qualquer intercessão Judicial, essa não é a regra. A realidade se impõe e, no Brasil, a judicialização da arbitragem é objeto de intensos debates no meio acadêmico e nos ambientes forenses.
Antes que se discuta a conveniência da participação do Judiciário, é necessário destacar que a própria legislação autoriza e até recomenda o manejo de demandas judiciais com o escopo de dar efetividade e apoio à atividade arbitral. Note-se, por exemplo, a ação de cumprimento da cláusula compromissória (Lei 9.307/96, art. 7º) tão necessária nos casos em que há opção genérica pela via arbitral diante de cláusulas vazias ou incompletas. Imaginar um sistema que não possibilite ao Judiciário (e seu poder coercitivo) confirmar tal convenção e dar a ordem para iniciar o procedimento, ou indicar a instituição arbitral (vide processo n. 1005577-98.2016.8.26.0286 que tramitou no Tribunal de Justiça de São Paulo), tornaria praticamente inócua a opção da arbitragem diante de algum contratante reticente.
Na mesma linha de ideias, tem sido festejada a atuação de alguns tribunais em demandas preparatórias de procedimento arbitral em que se busca assegurar a efetividade e utilidade da matéria de mérito a ser decidida por árbitros (vide processo 0025431-75.2016.8.19.0000 decidido pela 11ª Câmara Cível Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Tal medida é fundamental, visto que até o início do procedimento arbitral há um longo caminho (requerimento de arbitragem, recolhimento de custas, indicação e posterior aceitação e árbitros, eventuais impugnações de imparcialidade etc.). Tal questão, aliás, ficou cristalizada no art. 22-A da Lei 9.307/96.
O chamado controle da sentença arbitral talvez seja o assunto mais sensível. Aqui, há possibilidade de o Poder Judiciário anular sentença arbitral e converter em pó meses, às vezes, anos de um trabalhoso e custoso procedimento. As hipóteses de anulação são taxativas (Lei 9.037/96, art. 32), mas ainda assim permitem diversas (e exóticas) interpretações, notadamente quando a questão envolve a manifestação de vontade contida em cláusula compromissória ou extensão (indevida) dos limites da sentença arbitral. Ademais, já foram analisados casos de inobservância dos ajustes fixados no Termo de Arbitragem (vide a recente decisão do 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo no processo n. 1066484-54.2019.8.26.0053) e até honorários arbitrais baseados no êxito da demanda (vide acórdão da apelação 0330997-81.2014.8.13.0027 julgada pela 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais).
Não para por aí, também se observa uma preocupação com a parcialidade dos árbitros que, de certa forma, tendem a atuar reiteradamente em diversos procedimentos arbitrais quase que em revezamento (advogado, parecerista, julgador). Nesse quadro, pesquisas já indicaram um aumento relevante em demandas anulatórias que, no mais das vezes, são confirmadas na segunda instância e no Superior Tribunal de Justiça.
A arbitragem, inegavelmente, desenvolveu-se bem no Brasil, custando mais de duas décadas para se consolidar, mas, como tudo no Direito, precisa de permanente aperfeiçoamento e reflexão, a fim de evitar o desestímulo ou mesmo o descrédito do instituto.
Diante do exposto, e sem qualquer pretensão de encerrar o debate, dois pontos merecem nossa breve reflexão.
O primeiro talvez possa ser alcançado de forma mais imediata: a cooperação entre árbitro e o Poder Judiciário. Para tanto, a compreensão aprofundada da arbitragem por parte das nossas Cortes Judiciais é importantíssima. João Luiz Lessa[2] menciona uma corrida com bastões, em que o Judiciário e o árbitro atuam de forma harmônica, devido ao reconhecimento da complementariedade entre funções e da ausência de hierarquia. Acerca da questão, o Fórum Permanente de Processualistas Civis entende que o pedido de cooperação jurisdicional (previsto no art. 69 §3º do CPC) poderá ser realizado também entre o árbitro e o Poder Judiciário.
Dessa forma, é necessária e recomendável uma relação equilibrada entre as instâncias jurisdicionais, já que cada uma exerce um papel relevante no acesso à prestação jurisdicional. O equilíbrio pode ser alcançado quando o princípio da autonomia da vontade e do favor arbitratum é adequadamente compreendido. Mais ainda: a compreensão econômica dos contratos não pode passar despercebida ou ser ignorada pelos magistrados, dado que a convenção de arbitragem é ferramenta jurídica utilizada para aparelhar adequadamente as operações comerciais e negócios complexos celebrados por atores privados, nacionais e estrangeiros, e Entes Públicos.
O segundo ponto diz respeito à necessidade de autocrítica dos práticos da arbitragem e consequente aperfeiçoamento instituto. Escutar o que dizem as Cortes Judiciais, acadêmicos e empresários pode ajudar a repensar práticas já consideradas inadequadas e arcaicas. As pesquisas de opinião e satisfação dos usuários da arbitragem e magistrados podem contribuir bastante para uma maior adesão a essas demandas.
Isto posto, o aperfeiçoamento e a implementação de práticas anticorrupção, a oxigenação de listas de árbitros, dando espaço para novos profissionais e de outras áreas do conhecimento, a cautela na redação de cláusulas arbitrais, a atualização dos regulamentos institucionais, a implementação de recursos tecnológicos e de cibersegurança na transmissão e armazenamento de dados são medidas que já são observadas pelas principais câmaras de arbitragem do Brasil e podem reduzir a utilização excessiva de medidas antiarbitragem no Judiciário. Some-se a isso a própria implementação de mecanismos de compliance nas instituições que administram procedimentos arbitrais. O instituto engloba temas estratégicos e se aplica a todos os tipos de entidade, na medida em que o mercado exige cada vez mais condutas éticas e consolidação das melhores práticas por parte das organizações.
Para concluir, deve-se lembrar do antigo ditado: “a diferença entre o remédio e o veneno é a dose, em doses exageradas, ambos podem matar e, em doses insuficientes, um não mata, porém o outro jamais cura”, cunhado pelo médico suíço-alemão Paracelso, no século XVI, pode ser contextualizado para explicar a judicialização da arbitragem. A dose judicial dada à arbitragem é o que determinará se será experimentado um remédio ou um veneno.
Oportuno lembrar também que, (in)felizmente, o Judiciário poderá ser provocado para avaliar problemas que poderiam ter sido evitados no decorrer do procedimento arbitral. Nesse sentido, uma atuação judicial cautelosa e comedida pode auxiliar bastante para fortalecer ainda mais o instituto, bem como para retirar do mercado profissionais e instituições que pouco somam à prática arbitral e muito contribuem para a sua, ainda e insistente, desconfiança.
Referências:
[1] CARMONA, Carlos Alberto. Das boas relações entre os juízes e árbitros. Revista do Advogado (São Paulo), v. 51, 1997, p. 24
[2] Cf. primoroso trabalho sobre o assunto l LESSA NETO, João Luiz. Arbitragem e Poder Judiciário: A definição da competência do árbitro. 1. ed. Salvador: Juspodivm, 2016.