Brasil e OCDE: As Novas Regras de Preços de Transferência
A OCDE e a Receita Federal do Brasil (RFB) realizaram um evento conjunto no dia 12 de abril de 2022 em Brasília para apresentar as principais características do novo sistema de preços de transferência proposto para o Brasil. A apresentação foi marco do projeto de cooperação entre a OCDE e a RFB para adequar as regras de transfer pricing (TP) brasileiras ao padrão da OCDE.
O projeto também tem recebido suporte do Escritório de Relações Exteriores do Reino Unido (FCDO), que se fez também presente no evento do dia 12.
O que isso tudo quer dizer?
Francamente, quer dizer que estamos atrasados.
Desde 2018 que a Receita Federal trabalha conjuntamente (e negocia) com a OCDE a respeito das regras de TP no Brasil. As grandes conclusões desse trabalho, como já mencionado em posts anteriores, foram publicadas no final de 2019. O próprio slide utilizado no último dia 12 de abril marcava “2020-2021” como o período para apresentação das regras (Slides e apresentação disponíveis no Youtube)
Começamos com o pé direito e um leve tropeço, mas tudo bem…com tanta coisa estranha que tem acontecido no mundo nesses últimos meses, anos…não há do que reclamar. Foquemos no que interessa: O que muda? Por que muda? Vai ser melhor para o Brasil?
Três respostas rápidas:
1) O que muda?
As regras de TP do Brasil, hoje fortemente alicerçadas em limites mais “fixos”, também chamadas de ‘safe harbo(u)rs’ serão substituídas/suplementadas pelas regras da OCDE, que são mais elásticas e baseadas no famoso princípio do arm’s length. Já tratamos um pouco disso, aqui e aqui. Encurtando uma conversa longa: multinacionais no Brasil terão que prestar bem mais atenção quando estiverem lidando com empresas relacionadas no exterior e, sim, entregar mais documentação e gastar mais com compliance.
2) Por que muda?
Opiniões podem divergir, mas uma das razões é bem certa: para o Brasil aceder ao clube da OCDE, essas regras precisam mudar. Outra boa razão seria para alinhar com o padrão internacional.
3) Vai ser melhor para o Brasil?
Essa é a pergunta de um milhão de dólares, não é? Quiçá até mais. A resposta tem que ser sim. Inevitavelmente, alterações implicam adaptações, mas, ao menos, a parcela mais atingida será também a parcela mais bem preparada: grandes empresas e a própria RFB.
Alinhar o método de TP e aceder à OCDE certamente contribuirá para a imagem do país a investidores estrangeiros. Essas alterações efetivamente permitirão o Brasil “falar” a mesma língua fiscal que os parceiros estrangeiros, resultando em maior segurança jurídica e econômica.
É tudo parte de um mesmo processo. Quem já leu, por exemplo, sobre o novo programa da Receita Federal, CONFIA? O projeto-piloto do programa de conformidade cooperativa fiscal é também parte desse grande pacote de mudanças e divide o mesmo objetivo de aumentar a segurança jurídico-fiscal no Brasil.
“Excelente, Túlio, mas eu já sabia de tudo isso. Na prática, como a vida do contribuinte vai mudar com as novas regras de preços de transferência? E a partir de quando as novas regras estarão valendo?” – perguntou-me um colega.
Primeiramente, importa lembrar que nada de concreto foi publicado ainda. Então não há razão para desespero. Há apenas uma promessa e uma intenção. Nenhuma data foi também confirmada. Entretanto, e, como disse antes: estamos atrasados. Assim, pessoalmente, e, no lugar da RFB, aceleraria essa transição como possível – já passou da hora do Brasil sentar-se na mesa de gente grande (em termos de fiscalidade internacional).
Dessa forma a preparação já pode (ou deve) começar.
Apesar de não termos os detalhes de aplicação, ou do período de transição (se é que haverá um), já conhecemos o destino na forma da adequação com as diretrizes e parâmetros da OCDE. Assim, é importante que os contribuintes que lidam cotidianamente com preços de transferência se familiarizarem com o novo modus operandi – já largamente praticado aqui na Europa.
Com isso em mente, podemos com alguma facilidade elencar os pontos de atenção que compõem as diretrizes da organização internacional e que também foram mencionados no dia 12 de abril:
A) Análise de Comparabilidade
A nova base do sistema de TP no Brasil não mais seria as alíquotas fixas, mas uma análise de comparabilidade fundamentada nas circunstâncias e condições econômicas relevantes da transação controlada. Em outras palavras: um verdadeiro estudo do mercado a partir de uma perspectiva da OCDE. Este serviço é, por exemplo, parte do que faço e por muitas vezes terceirizado para especialistas aqui na Europa.
B) Métodos
A proposta deve implementar os métodos TP reconhecidos pela OCDE, incluindo o método da margem líquida transacional (TNMM) e o método de divisão de lucros (PSM). Outros métodos também seriam aceitos para casos específicos, como é o caso de intangíveis.
C) Ajustes
As novas regras permitirão um ajuste ‘primário’ quando os contribuintes não cumprirem com o arm’s length principle (ALP) – pense: glosa de custo ou arbitração de lucro. Esse ajuste, voluntário ou não, desencadeia a necessidade de um ajuste ‘secundário’ para lidar com as incongruências geradas nos livros, i.e., se o dinheiro realmente já foi enviado para o exterior quando não deveria (e.g.), teremos que corretamente enquadrar a situação para fins fiscais quando sua repatriação não for possível.
Esse ajuste secundário pode, por exemplo, descaracterizar parte de um pagamento por serviços feito fora do ALP em nome de um empréstimo ou adiantamento – onde juros serão tributados.
D) Master & Local File
Em consonância com a Ação 13 do BEPS, a abordagem em “três níveis” será implementada: relatório por país (CbC), master file e local file. O que isso quer dizer? O primeiro você já conhece (também chamada de DPP[1]): O CbCR resume informações sobre as atividades econômicas de uma multinacional em cada jurisdição. Ela permite o usuário para avaliar a metodologia utilizada para alocar lucro entre empresas membros do grupo.
O master file inclui informações gerais sobre os negócios de uma multinacional, trazendo uma visão geral das abordagens básicas de preços de transferência. Especificamente, os arquivos principais devem refletir: (i) a estrutura organizacional de uma MNE; (ii) uma descrição geral dos processos empresariais; (iii) uma descrição geral dos intangíveis de uma MNE; (iv) uma descrição das transações financeiras intragrupo; (V) a posição financeira e fiscal de uma multinacional.
Por fim, o local file contém informações mais detalhadas sobre transações intragrupo específicas em uma jurisdição. É uma análise das transações interempresariais com foco na entidade local (filial brasileira, por exemplo), que será preparada e apresentada à autoridade fiscal.
E) Regras Específicas
Outra alteração que certamente está por vir é um tratamento específico para transações envolvendo: acordos de participação de custo (hoje faltante), commodities, intangíveis, serviços intragrupo, reestruturação de empresas, cash pooling etc.
Muito provavelmente as novas regras não serão implementadas no ano que vem, mas convenhamos: vai acontecer mais cedo ou mais tarde. Seja em 2023 (como no gráfico original) seja em 2024, quanto tempo efetivamente precisaremos para readequar o departamento financeiro das multinacionais para os novos parâmetros da OCDE? Quantos contratos e acordos precisarão ser revisitados? Quantos estudos de comparabilidade precisarão ser executados para atingir 100% de compliance? E o local file da subsidiária, já começou a preparar? Essas coisas levam tempo e treino. Não é para plantar desespero, mas a lista é grande e o tempo é mais curto do que parece.
Já vale iniciar a conversa com oi tributarista de plantão para entender como essas alterações afetarão os contratos existentes e futuros dentro de cada grupo. Do contrário, estaremos todos à mercê da nova janela que a Receita Federal apresentar para adequação. Confia?
Notas:
[1] Segundo o ‘Perguntas e Respostas’ da RFB: “A DPP consiste em um relatório anual por meio do qual grupos multinacionais deverão fornecer à administração tributária da jurisdição de residência para fins tributários de seu controlador final diversas informações e indicadores relacionados à localização de suas atividades, à alocação global de renda e aos impostos pagos e devidos. Também deverão ser identificadas todas as jurisdições nas quais os grupos multinacionais operam, bem como todas as entidades integrantes do grupo (incluindo estabelecimentos permanentes) localizadas nessas jurisdições e as atividades econômicas que desempenham.”