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Coisa julgada parcial e cumprimento de sentença: reafirmação de posicionamento diante do REsp 2.026.926

Por José Henrique Mouta Araújo[1]

 

O presente ensaio visa revistar alguns estudos que foram realizados anteriormente[2], ligados ao tema coisa julgada progressiva e cumprimento de sentença (provisório e definitivo), especialmente após o resultado do julgamento ocorrido em abril/2023 (3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no RESp 2.026.926).

 

Este é o ponto de partida: a recente decisão da 3ª Turma serve de estímulo para retomada de algumas conclusões feitas desde a vigência da legislação processual anterior, relativas à existência de múltiplos e variáveis momentos de formação de coisa julgada durante o andamento do processo, com reflexos no cumprimento de sentença e na fluência e objeto da ação rescisória.

 

De toda sorte, especialmente na vigência do CPC/2015, passou-se discutir, com maior fôlego, a possibilidade de fracionamento do objeto litigioso, com múltiplas decisões de mérito e a possibilidade de formação da coisa julgada em vários momentos, especialmente nos casos de pedidos incontroversos.

 

Contudo, na vigência do CPC/1973 existiam posicionamentos, inclusive no Superior Tribunal de Justiça,  contrários à possibilidade de formação da coisa julgada parcial (progressiva ou em capítulos), como se observa na seguinte passagem:

 

“É incabível o trânsito em julgado de capítulos da sentença ou do acórdão em momentos distintos, a fim de evitar o tumulto processual decorrente de inúmeras coisas julgadas em um mesmo feito” (REsp n. 736.650/MT, Relator o Ministro Antônio Carlos Ferreira, Corte Especial, DJe de 1º/9/2014)” (EDcl na Rcl 18565 / MS – Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze – 2ª Seção – J. em 09/12/2015 – DJe 15/12/2015)[3].

 

Contudo, o CPC/2015 deu outro tratamento ao assunto. É importante, para a correta interpretação das variáveis conceituais que adiante serão apontadas,  fazer a leitura destes artigos do CPC/2015: 354, parágrafo único, 356, 502, 503, 523, 524, 702, §7º, 966, §3º, 1008, 1013, §1º do CPC.

 

Não resta dúvida que a coisa julgada trata-se de fenômeno jurídico ligado a estabilidade processual em relação à capítulos decididos e incontroversos, gerando reflexos em institutos como o cumprimento de sentença e a ação rescisória.

 

Nos casos de amadurecimento precoce de um dos capítulos de mérito decididos (e não recorridos), é mister fazer algumas indagações: É possível o desmembramento da resolução do mérito, em relação a um dos pedidos, inclusive mitigando o dogma da unicidade do julgamento de mérito? A estabilização decorrente da coisa julgada pode ocorrer em vários momentos procedimentais? O cumprimento de decisão pode ser provisório e definitivo simultaneamente, desde que atinjam capítulos diferentes do mesmo julgado?

 

Realmente, pedido incontroverso é pedido reconhecido ou mesmo não impugnado, podendo ocorrer quando, havendo cumulação simples de pedidos, o réu impugna apenas um deles, ou em caso de recurso parcial. Acerca desta hipótese de resolução parcial de mérito, ainda no sistema processual anterior, se apresentou a seguinte situação:

“Apenas para melhor aclarar as ideias. Imagine-se uma demanda movida por A em face de B, com a cumulação simples de pedidos 1, 2 e 3. O réu, na contestação, impugna apenas o pedido 1 e 2, inclusive, suscitando fatos, não aproveitáveis ao pedido incontroverso, que devem ser objeto da fase instrutória. Por que não se permitir a antecipação do julgamento da própria tutela (do próprio pedido) envolvendo o n. 3? Imagine que fosse um balão onde existem três instrumentos pesados que dificultam o alcance da altitude ideal. Por que não se permitir que se retire do balão o peso que não será mais necessário, deixando apenas a bordo aqueles que ainda serão utilizados?”[4]

 

De fato, se um dos pedidos torna-se incontroverso por atitude do réu, deve o magistrado resolvê-lo imediatamente, e com isso diminuindo, em relação a este, o pesado ônus decorrente da demora da prestação jurisdicional.

 

Ademais, considerando que a incontrovérsia foi gerada em decorrência de atitude do próprio réu, necessária é a resolução imediata deste pedido incontroverso enquadrando-se nas disposições do art.  art. 356, I, do CPC/15, provocando, em caso de falta de irresignação recursal, a estabilidade com a formação da coisa julgada e abreviando o inicio do cumprimento deste capítulo decidido.

 

Aliás, os pontos ora apresentados trazem importantes consequências, uma vez que a estabilização decorrente da coisa julgada não ocorrerá apenas em um só momento, o que reflete na fluência do prazo decadencial para o ajuizamento da ação rescisória e na possibilidade de ser disparado o sistema de cumprimento (provisório e definitivo) em momentos diferenciados.

 

É mister observar que o art. 966, do CPC/15, ao consagrar o conceito de decisão de mérito como objeto da rescindibilidade, permite ao intérprete pugnar pelo cabimento da demanda desconstitutiva na hipótese em que o pronunciamento não é tecnicamente sentença, mas resolve parcialmente o mérito ou extingue parcialmente o processo com resolução de mérito e se enquadra em um de seus incisos. O sistema processual atual admite a possibilidade de rescindibilidade de partes de uma única decisão, nos termos do disposto no art. 966, §3º, do CPC/15.

 

Este dispositivo deve ser analisado, a meu ver, especialmente nos casos de interposição de recursos parciais (impugnação de partes de uma única decisão). Os capítulos autônomos decididos e não impugnados de um pronunciamento judicial podem, desde já e dependendo do caso concreto, ensejar o cumprimento definitivo, mesmo inexistindo efetivamente o trânsito em julgado total do decisum.

 

Demais a mais, outros capítulos da mesma decisão, em caso de pendência de recurso sem efeito suspensivo, ensejam o cumprimento provisório (art. 520, do CPC); ou seja, uma única relação processual pode estar, na fase recursal, no cumprimento provisório e também definitivo – a depender dos capítulos decididos e dos recursos interpostos.

 

No mínimo estes dispositivos do CPC demonstram que os conceitos de decisão, mérito, coisa julgada, efeito suspensivo e rescisória são dinâmicos, permitindo, de um lado, a formação da coisa julgada em vários momentos e, de outro, a possibilidade de cumprimento provisório e definitivo simultaneamente:

 

– Arts. 354, parágrafo único, e 356, do CPC (extinção parcial e julgamento antecipado parcial do mérito)

 – Arts. 502 e 503, do CPC (coisa julgada como fenômeno ligado à decisão e não ao conceito de sentença).

– Arts. 523 e 524, do CPC (cumprimento definitivo de decisão envolvendo quantia – parcela incontroversa).

Art. 702, §7º (embargos à ação monitória parciais, com constituição em titulo executivo judicial da parcela incontroversa).

Art. 966 e §3º (cabimento de rescisória em face de decisão de mérito e tendo por objeto apenas um capítulo do julgado).

Art. 1008, do CPC (efeito substitutivo do recurso limitado ao objeto recursal).

Art. 1013, §1º (efeito devolutivo do recurso limitado ao capítulo impugnado).

 

O Superior Tribunal de Justiça vem revistando estes temas, especialmente após a vigência da legislação processual atual.

 

No REsp 1.845.542, a 3ª Turma da Corte apreciou questão ligada à possibilidade de julgamento antecipado parcial de mérito pelos tribunais, assunto que foi objeto de análise específica em outro texto[5] . Transcrevo itens 3 e 4 da Ementa (REsp 1.845.542- Rel. Min. Nancy Andrighi – J. 11.05.2021 – Dje 14.05.2021):

 

“3. O art. 356 do CPC/2015 prevê, de forma clara, as situações em que o juiz deverá proceder ao julgamento antecipado parcial do mérito. Esse preceito legal representa, portanto, o abandono do dogma da unicidade da sentença. Na prática, significa dizer que o mérito da causa poderá ser cindido e examinado em duas ou mais decisões prolatadas no curso do processo. Não há dúvidas de que a decisão interlocutória que julga parcialmente o mérito da demanda é proferida com base em cognição exauriente e ao transitar em julgado, produz coisa julgada material (art. 356, § 3º, do CPC/2015).
4. No entanto, o julgador apenas poderá valer-se dessa técnica, caso haja cumulação de pedidos e estes sejam autônomos e independentes ou, tendo sido deduzido um único pedido, esse seja decomponível.

Além disso, é imprescindível que se esteja diante de uma das situações descritas no art. 356 do CPC/2015. Presentes tais requisitos, não há óbice para que os tribunais apliquem a técnica do julgamento antecipado parcial do mérito. Tal possibilidade encontra alicerce na teoria da causa madura, no fato de que a anulação dos atos processuais é a ultima ratio, no confinamento da nulidade (art. 281 do CPC/2015, segunda parte) e em princípios que orientam o processo civil, nomeadamente, da razoável duração do processo, da eficiência e da economia processual”.

 

Em outro julgado, a mesma Turma concluiu que “a questão apreciada na decisão agravada e não impugnada nas razões do recurso não pode ser analisada por força da preclusão consumativa e da coisa julgada” (AgRg no AREsp 769.892/PR, 3ª Turma – Rel. Min. João Otávio de Noronha – J. 15/03/2016 – DJe 29/3/2016).

 

Já a 4ª Turma do Tribunal, no REsp 1909451 / SP (Rel. Min. Luis Felipe Salomão – J. em 23/03/2021 – DJe 13/04/2021), enfrentou situação ligada aos limites do efeito devolutivo e a consequência em relação ao capítulo decidido e não impugnado (art. 1.013, §1º, do CPC), afirmando que: “sobre o capítulo não impugnado pelo adversário do apelante, podendo a reforma eventualmente significar prejuízo ao recorrente, incide a coisa julgada. Assim, não há pensar-se em reformatio in pejus, já que qualquer providência dessa natureza esbarraria na res iudicata”.

 

Resta abordar o julgado mencionado no início deste texto. Em abril/2023, a 3ª Turma do Superior Tribunal  novamente debateu o tema recurso parcial e a formação da coisa julgada parcial/progressiva. Transcrevo os itens 5 a 8, da Ementa do Acórdão REsp 2.026.926 (Rel. Min. Nancy Andrighi – J. 25/04/2023 – DJe 27.04/2023):

 

“5. Quando não impugnados capítulos da sentença autônomos e independentes, estes transitarão em julgado e sobre eles incidirá a proteção assegurada à coisa julgada. Possibilidade de o mérito da causa “ser cindido e examinado em duas ou mais decisões prolatadas no curso do processo” (REsp 1.845.542/PR, 3ª Turma, DJe 14/5/2021).

6. A sistemática do Código de Processo Civil, ao albergar a coisa julgada progressiva e autorizar o cumprimento definitivo de parcela incontroversa da sentença condenatória, privilegia os comandos da efetividade da prestação jurisdicional e da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF/88 e 4º do CPC/15), bem como prestigia o próprio princípio dispositivo (art. 2º, do CPC/15).

7. Mostra-se possível o trâmite concomitante de cumprimento provisório, sobre o qual pende o julgamento de recurso sem efeito suspensivo (art. 520 do CPC/15), e cumprimento definitivo de parcela incontroversa do mesmo título judicial de condenação ao pagamento de quantia.

8. Desnecessidade de desmembramento do processo, sendo competente para processar ambos os cumprimentos de sentença o Juízo que decidiu a causa no primeiro grau de Jurisdição (art. 516, II, do CPC/15) – ainda que determinado órgão estadual tenha estabelecido, por motivos de conveniência, setores especializados. Viabilidade dos procedimentos seguirem em conjunto, desde que observada a exigência de caução pelo exequente para o cumprimento provisório da sentença (art. 520, IV, do CPC/15)”.

 

Como se pode observar, o novo CPC e a sistematização da possibilidade de cisão da resolução de mérito com múltiplas consequências processuais também gerou a mudança de entendimento de Turmas da  Corte da Cidadania.

 

É possível, portanto, a formação parcial e progressiva da coisa julgada, a existência de cumprimento provisório e definitivo no mesmo processo e a existência de múltiplas ações rescisórias com objetos diferentes e estabilizados pela coisa julgada também de forma progressiva.

 

A ação rescisória é cabível contra decisão (em sentido amplo) de mérito – seja efetivamente sentença, acórdão ou interlocutória – como expressamente consagrado no art. 966, do CPC/15. Esta observação serve para ratificar o aduzido em texto anterior em relação a algumas consequências práticas[6] como:

 

“a) a necessidade de se demonstrar, mediante certidão, o trânsito em julgado da resolução (quaisquer das três – sentença, interlocutória ou mesmo acórdão) de mérito;

b) a possibilidade de conciliar o instituto do cumprimento definitivo de um pedido apreciado prematuramente com outro sequer transitado em julgado;

c) possibilidade de coexistir a execução (cumprimento) provisória e definitiva na mesma relação jurídica processual, etc.”

 

Os conceitos aqui discutidos, portanto, são dinâmicos e geram múltiplas consequências processuais, desafiando, ao intérprete, atenta análise para a adoção da melhor estratégia no caso concreto.

 

[1]Mestre (UFPA), Doutor (UFPA) e Pós-doutor (Universidade de Lisboa), professor do CESUPA/PA e IDP/DF, procurador do Estado do Pará e advogado. www.henriquemouta.com.br

 

Notas e Referências:

[2] Sobre o tema ver, dentre outros, o livro, de minha autoria, intitulado Coisa julgada progressiva & resolução parcial de mérito. Curitiba, Juruá, 2007, o artigo Tutela antecipada do pedido incontroverso: estamos preparados para a nova sistemática processual? Revista de Processo n. 116, São Paulo : Revista dos Tribunais, 2004 e o texto publicado na coletânea em homenagem ao professor José de Albuquerque Rocha (decisão interlocutória de mérito no projeto do novo CPC: reflexões necessárias. In O projeto do Novo Código de Processo Civil – Fredie Didier Jr, José Henrique Mouta e Rodrigo Klippel – organizadores, Salvador : Juspodivm, 2011, pp. 219-230.

[3] Ainda no tema, ver: REsp 781923 / DF (2ª Turma/STJ – Rel. Min. Castro Meira – J. 21/08/2007 – DJ 31/08/2007).

[4] ARAÚJO, José Henrique Mouta. Tutela antecipada do pedido incontroverso: estamos preparados para a nova sistemática processual? Revista de processo. n. 116. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 217.

[5] https://www.conjur.com.br/2021-jul-31/araujo-julgamento-parcial-merito-pelos-tribunais-stj. Acesso em 01.08.2023.

[6] Ver ARAÚJO, José Henrique Mouta. Decisão interlocutória de mérito no projeto do novo CPC: reflexões necessárias. In O projeto do Novo Código de Processo Civil – Fredie Didier Jr, José Henrique Mouta e Rodrigo Klippel (orgs), Salvador : Juspodivm, 2011, pp. 230.

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