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Da relação indissociável entre mercado e intervenção estatal

Não é forçoso afirmar que a questão referente à intervenção nos mercados acompanha a história da evolução da humanidade, pois o início da disciplina da competição não é concomitante ao surgimento do mercado liberal, na medida em que regras aplicáveis aos hoje chamados agentes econômicos são, em muito, anteriores ao sistema de produção capitalista.

Desta forma, desde que haja indivíduos interessados em adquirir e outros em comprar, é possível verificar um direcionamento, ainda que superficial, visando coibir efeitos indesejados nas práticas comerciais com o fim último de manter o sistema de trocas, na medida em que os indivíduos tenderam a promover seus próprios interesses em face das necessidades de seus semelhantes (tradução nossa) .

Partindo das premissas acima, conclui-se que onde há sociedade e trocas, haverá regulação, institucionalizada ou não, dos mercados nos quais tais negociações ocorrem. Essas trocas e interações comerciais, inclusive, são intensificadas em razão do modelo socioeconômico atual, marcado pela complexidade, volatilidade e uso exponencial da tecnologia. O que se quer dizer, em resumo, é que a intervenção do Estado no domínio econômico é, muitas vezes, condição para o desenvolvimento de uma economia de mercado. 

Exemplo prático é a relação umbilical entre a ascensão e o fortalecimento da Royal Navy, com financiamento público do Bank of England, e a expansão econômica no período da Revolução Industrial de tal sorte que é impossível compreender um fenômeno sem analisar o outro. Assim, o caso do “Império onde o sol nunca se põe” não é exceção quando a intenção é demonstrar o Estado como suporte para o desenvolvimento das relações econômicas ou de como se faz necessário em situações de crise.

Inclusive, a própria gênese do Direito Econômico, que nada mais do que uma forma de manifestação da estrutura do Estado, está ligada ao caos global em decorrência da 1ª Guerra Mundial. É neste momento que o Estado, mais do que criar normas que viabilizem a atividade econômica, passa a orientar e disciplinar, direta ou indiretamente, esta atividade.

Dessa forma, a todo momento, em maior ou menor grau, no mundo inteiro, o Estado intervém no e sobre o domínio econômico. Algumas situações, contudo, são paradigmáticas acerca da necessidade de atuação (ou não) do Estado no domínio econômico.

A mais recente ocorreu na China, no caso Evergrande. Basicamente, trata-se de uma das maiores incorporadoras chinesas, que nos últimos meses apresentou sérios problemas em seu fluxo de caixa e anunciou ao mercado que, talvez, não conseguisse honrar com suas obrigações financeiras perante credores (segundo notícias divulgadas em sites especializados, o montante total do débito ultrapassa US$ 305 bilhões ou 2% do PIB da China).

Consequentemente, o preço das ações despencou e a preocupação era de que este fato pudesse causar uma nova crise financeira, a partir de um efeito dominó global, tal qual aconteceu em 2008 e que teve os Estados Unidos da América como epicentro.

Apesar de ainda não ter colapsado, inclusive efetuando o pagamento de uma dívida perante credores internacionais, uma questão que veio à tona foi: Pequim irá ou não intervir na Evergrande assim como os Estados Unidos da América interviram na economia, pós crise do subprime, com um pacote de resgate de centenas de bilhões de dólares, evitando a quebra generalizada de vários setores?

Há diversos pontos que devem ser analisados. Se por um lado, salvar a Evergrande – ainda que isso implique aumento da participação do governo na empresa ou, até mesmo, sua estatização – pode acalmar investidores, credores e adquirentes das unidades imobiliárias construídas pelo titã do setor imobiliário e, eventualmente, frear um efeito cascata, por outro pode passar a mensagem de que a China é complacente com certas práticas temerárias.

De todo modo, ao que tudo indica, a intervenção direta na Evergrande pelo Partido Comunista da China ocorrerá somente em último caso, o que não quer dizer que o governo não está alheio às turbulências do mercado. Por exemplo, no final do mês passado, o Banco Central da China injetou US$ 17 bilhões de dólares, o maior em oito meses, no sistema financeiro, o que foi visto com bons olhos e repercutiu positivamente em outros mercados.

Dessa forma, ainda que não diretamente na incorporadora, o Estado chinês interveio no domínio econômico com a finalidade de diminuir a entropia do sistema. Isso só reforça o que se argumentou no início desta breve opinião: a posição estatal como simples árbitro do jogo econômico não tem mais razão de ser.

Assim, é que o Estado protege direitos de propriedade, os quais não são inatos, e confere o arcabouço jurídico necessário ao desenvolvimento da atividade econômica, visando à garantia do fair game. O Direito, por exemplo, como forma de manifestação do Estado, é um elemento constitutivo do modo de produção capitalista, este, segundo Eros Grau, um modelo essencialmente jurídico.

Ao contrário do que ainda hoje se pensa, a questão a ser analisada, então, não é se o Estado pode ou deve intervir na economia, mas como, por qual motivo, em qual setor e qual a finalidade da intervenção. Mercado e Estado são estruturas complementares; colocá-las em posição de antagonismo e conflito em nada contribui para o desenvolvimento destas duas instituições.

Colunista

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Matheus Carvalho
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (FDR/UFPE). Membro da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica (OAB/SP). Pesquisador no Grupo de Pesquisa em Direito Econômico e Concorrencial (GPEC/IDP) e no Núcleo de Estudos em Concorrência e Sociedade (NECSO/USP). Advogado.

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