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Porque chamar de Rocinante uma coluna de direito civil contemporâneo: para não dizer que não falei da civilística e sua síndrome de Gabriela

Principio esta coluna agradecendo a equipe do Portal Juridicamente por haver  concedido este espaço para nossas reflexões sobre questões afeitas ao direito civil contemporâneo.

Como já sabem nossos três leitores, Rocinante era o nome do cavalo de Don Quijote de La Mancha. Assim como Rocinante carregava Don Quijote, esta coluna será o meio de transporte escolhido para as ideias quixotescas que pretendemos apresentar a nossos leitores periodicamente.

Na obra de Cervantes, pouco se fala sobre as origens de Don Quijote. Em compensação, Rocinante é apresentado como bisneto de Babieca, o cavalo lendário de El Cid Campeador. O nome dado ao cavalo remete, entretanto, ao “rocin”, uma espécie de potro que não merece ser chamado de cavalo; por não ter boa raça, por ser muito jovem ou por estar maltratado. Um cavalo demasiadamente magro e sem musculatura, portanto. Não obstante a suposta origem nobre, o nome dado a montaria já denuncia suas limitações.

Tal advertência se faz necessária para que o leitor fique ciente das limitações desta coluna. Ademais, assim como a obra de Miguel de Cervantes pretendeu colocar em xeque um ideal de Cavalaria anacrônico e fora de lugar, aqui também se pretende questionar certas idealizações estéreis no campo do direito contemporâneo.

O adjetivo “contemporâneo” não está aí por acaso. Indica a historicidade do fenômeno que se pretende debater neste espaço junto com nossos dois ou três leitores. Isto pressupõe uma atitude metodológica que busque no direito civil do presente as marcas do “arcaico”, ou seja, aquilo que é “próximo da arké, isto é, da origem”.[1] Daí o apelo a consciência de que o direito civil está sujeito a transformações ao longo do tempo nas diversas experiências jurídicas, de modo a nos conduzir a uma perspectiva metodológica que não fique alheia às rupturas e dinâmicas das ordens jurídicas, e que também reconheça as experiências jurídicas antecedentes.

Pretende-se evitar, portanto, um modo de proceder que se vale de postulados que reconhecem a existência de atributos essenciais e inalteráveis quanto a institutos de direito civil tais como o casamento e o direito de propriedade. O doutrinador, então, termina por se converter em para-legislador ao defender que o casamento foi e sempre será uma união entre homem e mulher; ou que o direito de propriedade é qualificado (desde Roma) como espécie de direito individual, perpétuo e absoluto do homem sobre as coisas. Um direito que não parece ser capaz de se adaptar às novas realidades, parece sofrer da síndrome de Gabriela, retratada na música de Dorival Caymi: “Eu nasci assim, eu cresci assim e sou mesmo assim, vou ser sempre assim. Gabriela…”. Esta defesa extremada da constância ou da continuidade dos institutos de direito civil “apresenta o risco de transposições anacrônicas. Essa exaltação da continuidade convida, sobretudo, a negligenciar as rupturas e a dinâmica das ordens jurídicas”.[2]

Indiscutivelmente, pode-se dizer que o casamento e o direito de propriedade sofreram transformações consideráveis ao longo do tempo, e que o velho já não é mais uma criança. Contudo, as vivências da criança ecoam no velho, de modo que não se pode afirmar também uma completa dissociação entre o velho e a criança. Assim, também o direito civil contemporâneo ecoa a tradição jurídica.

Sei que esta postura parece ser antipática diante da narrativa predominante de que a Constituição (a de 1988, no Brasil) é uma espécie de Big Bang que deu início a um “novo” universo onde antes “nada” existia. A civilística festiva nacional enche a boca ao dizer que a Constituição de 1988 “finalmente” reconheceu a indenizabilidade do dano moral, inovando em relação a um direito infraconstitucional pretérito limitado às questões patrimoniais. Esta é uma visão que terminar por reduzir o ordenamento jurídico a Constituição (uma espécie de legalismo, portanto), ao ignorar a legislação infra-constitucional, a doutrina e a jurisprudência anteriores. Veja-se, por exemplo, que a Lei de Imprensa (Lei n. 5.250/1967) já prescrevia a indenizabilidade do dano moral em seu art. 49.[3] Em verdade, poderíamos até pontuar hipóteses legais de indenização por danos morais nas Ordenações Filipinas.

Também a doutrina anterior não restringia o campo de atuação do direito civil às questões econômicas. Clovis Bevilaqua pontuou que restringir o direito privado ao elemento econômico termina por deixar de fora uma série de situações que não se limitam a ideia “de preço, de consumo ou de troca”; daí por que sustenta que não são apenas os interesses econômicos que merecem tutela jurídica, “mas também o interesse moral e o intellectual, a affeição, o simples prazer, quando legitimo, a tranqüilidade do espírito, a integridade do corpo e um grande numero de outros”.[4] Neste sentido, o Código Civil brasileiro de 1916 reconheceu a relevância do interesse moral ao lado do interesse econômico: “Art. 76. Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legitimo interesse econômico, ou moral”.

Conforme noticiou o Diário de Pernambuco em 29 de Outubro de 1919, a indenizabilidade do dano moral já era questão a ser considerada no concurso de admissão a magistratura do Tribunal do Estado de Pernambuco previsto para aquele ano: “Terá início hoje, às 11 horas, no edifício do Senado estadual, o concurso para o cargo de juiz de direito das comarcas de Petrolina, Ouricury, Villa Bella e Boa Vista. Pela respectiva comissão examinadora, (…), foi organizado o seguinte programma de theses: (…) Direito Civil: (…) 2º – Damnos resultantes de atos ilícitos, sua indemnização. São indemnizáveis os damnos moraes? Qual o criterio para a sua avaliação?”.[5] Tal ponto no programa do concurso para a magistratura em 1919 evidencia que poderia existir alguma divergência quanto a indenizabilidade do dano moral, mas que parecia prevalecer no Tribunal o entendimento pela indenizabilidade, posto que se exigisse o conhecimento dos critérios para a sua avaliação.

Na jurisprudência das Cortes Superiores, destaque-se Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal em 1942, sob a relatoria do Ministro Orozimbo Nonato, a reconhecer a indenizabilidade do dano moral ao tempo da vigência do Código Civil de 1916: “Pelo sistema do nosso Código Civil, como para o do B.G.B., (art. 293) a reparação pecuniária do dano moral só é possível nos casos previstos em lei” (ACi 7526, julgado em 03/11/1942).

A perspectiva histórica permitirá, portanto, um conhecimento mais amplo acerca da indenizabilidade do dano moral e de outras questões de direito civil. A perspectiva histórica (ou historicismo) será um traço marcante no pensamento de Nelson Saldanha. O historicismo procura encarar as “experiências humanas como algo que, não podendo ocorrer senão em situações históricas, adquirem significado na medida em que se encaixam numa interpretação que leva em conta tais situações”.[6]

Muita vez observa-se entre alguns civilistas uma atitude que parece ignorar esta historicidade do direito. Não é raro ver certos autores afirmarem que a Constituição Federal de 1988 iniciou uma nova era no direito privado, como se ignorassem o valor da multissecular tradição privatista. Esta visão a-histórica do fenômeno jurídico guarda relação com o insuficiente desenvolvimento de uma teoria filosófica das ciências culturais e com o prestígio do conceito físico-matemático de ciência.[7]

Esta fragmentação do direito civil, que paulatinamente deixa de ter um locus próprio para se misturar ao direito constitucional, é preocupante. Pois, “em nosso tempo de desconstruções, reconstruções, decodificações e hermenêutica, a revisão do sentido da teoria jurídica precisa incluir o reexame da posição da privatística como mater do pensamento jurídico ocidental”.[8]

Esta é uma dentre as várias imposturas e mistificações cometidas pela civilística nacional que serão objeto de nossa análise nesta coluna. Até a próxima!

 

Referências Bibliográficas:

[1] GEDIEL, José Antônio Peres; LEONARDO, Rodrigo Xavier. Editorial. Revista de Direito Civil Contemporâneo, n. 2 (2015). São Paulo: RT, p. 19.

[2] THÉNARD, Nicolas Cornu; LAURENT-BONNE, Nicolas. Desafios de uma crítica fundada na História do Direito e no Direito Comparado. Tradução de Alan Wruck Rangel e Alfredo de Jesus Flores. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, n. 45 (abr./2021), p. 21. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/revfacdir/article/view/113354 Acesso em: 25 de maio de 2021.

[3] Cf.: “Art . 49. Aquêle que no exercício da liberdade de manifestação de pensamento e de informação, com dolo ou culpa, viola direito, ou causa prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar: I – os danos morais e materiais, nos casos previstos no art. 16, números II e IV, no art. 18 e de calúnia, difamação ou injúrias; II – os danos materiais, nos demais casos”.

[4] BEVILAQUA, Clovis. Em defeza do projecto de código civil brazileiro. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1906, p. 33-34.

[5]Cf.: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=029033_09&Pesq=%22damnos%20moraes%22&pagfis=21150 Acesso em: 17 de outubro de 2021.

[6] SALDANHA, Nelson. Historicismo e culturalismo. Rio de Janeiro/Recife: Tempo Brasileiro/FUNDARPE, 1986, p. 17

[7] SALDANHA, Nelson.  History, Reason and Law. Archiv für Rechts und Sozialphilosophie, Bd. LXI/1 (1975). Franz Steiner Verlag GmbH, Wiesbaden, BRD, p. 62.

[8] SALDANHA, Nelson.  Apontamentos sobre a teoria do direito civil. Revista Acadêmica, n. 84 (2012). Recife: UFPE, p. 465

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Venceslau Tavares Costa Filho
Doutor em Direito pela UFPE. Professor dos Cursos de Graduação em Direito da UPE e da FAFIRE. Professor Permanente dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito, e do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UFPE. Professor convidado do Curso de Especialização em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco-USP. Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) - Seção Pernambuco. Membro da Academia Iberoamericana de Derecho de Familia y de de las Personas. Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Advogado.

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    1 Comment

    1. Ótimo texto, Prof. Venceslau. Sem falar que os articulados textuais da constituição federal e da legislação privada (o CC, por exemplo) atendem a técnicas e propósitos bem distintos, não se podendo tomar um pelo outro. Veja, por exemplo, como o texto constituição possui, propositalmente, maior densidade semântica e ética (para não dizer ideológica) em vista de um propósito ou projeto político mais ressaltado se comprado com a legislação civil. Além disso, a pressuposição de uma tal “virada copernicana” a partir da “constitucionalização” também pressupõe (ao meu ver, misticamente!) uma centralidade topográfica no ordenamento que é difícil de provar cientificamente. Parabéns pelo texto. Ansioso pelos próximos.

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