Duas Lições da Venezuela
Por José Luiz Delgado*
As recentes eleições da Venezuela têm muitos pontos em comum com as eleições brasileiras. E não só pelos desfechos complicados e controvertidos; e não só por serem eleições de dois amigos (embora tivesse sido proibido, na campanha, no Brasil, mencionar essa grande amizade – ah, que notáveis Supremo e TSE que se dispuseram, assim, a suprimir a liberdade de expressão e a tutelar a nação, para dizer aos cidadãos, aos “manés” mais ou menos idiotizados que somos, o que devemos pensar e como devemos falar!!).
Dão elas ao Brasil pelo menos duas lições – duas lições jurídicas.
A primeira é a da importância absolutamente fundamental e nunca desprezível, do voto impresso auditável. Foi o que permitiu à oposição venezuelana contraditar o governo e denunciar a fraude eleitoral. Lá, o Conselho Eleitoral declara que um candidato X, o atual presidente, foi reeleito. Aqui, o Tribunal Superior Eleitoral, do mesmo modo, declara que o sr. X, o condenado-que-o-Supremo-Tribunal-Federal-tirou-da-cadeia, foi eleito. Mas, cadê as provas? como comprovar uma declaração ou a outra? como ter certeza? Acontece que lá, os votos foram também impressos e podem ser comprovados, e por isso a oposição pôde exigir a publicação das atas eleitorais (que elas haviam, nas milhares de urnas, fotografado). Aqui, não há nada, há somente o registro eletrônico e a palavra do TSE. Na qual, pior do que os dogmas católicos, temos de acreditar, sob pena de sermos silenciados, termos as redes sociais bloqueadas, os “perfis” e “sites” emudecidos e desmonetizados, sermos até presos. Como a ameaça que atingiu o candidato da oposição venezuelana, Edmundo Gonzalez, que teve, por conta disso, de fugir, para se asilar na Espanha.
Se há um mistério absoluto, é este, da insistência de ilustres autoridades judiciárias em impor e manter o voto secreto eletrônico não auditável. Por que tanto receio?
Não importa se nenhuma fraude foi detectada até agora (apesar das suspeitas que se levantaram sobre as eleições de 2014, e do inquérito não concluído, e dos elementos que foram apagados: demos de graça que não houve até agora nenhuma fraude). Acontece que o argumento de que nenhuma fraude, até agora, teria sido identificada e comprovada é obviamente desprezível. A questão é outra: é ter absoluta certeza de que nenhuma fraude poderá acontecer no futuro. Como ter essa certeza? Como garantir isso? Se minha casa não foi roubada até agora, posso assegurar que ela não será roubada nunca?
Se há algumas suspeitas sobre o voto eletrônico (procedentes ou não, é, no caso, irrelevante), se há uma (mesmo mínima) possibilidade de risco, o mais óbvio seria adotar medidas para tornar cada vez mais seguras e inexpugnáveis as urnas eletrônicas – quaisquer medidas, todas as medidas possíveis e imagináveis. Por que não?
Não bastassem todos os argumentos em favor da transparência e da publicidade, e do nenhum receio que deveriam ter os defensores (de boa fé) do voto eletrônico, a evidência do que aconteceu depois das últimas eleições presidenciais no Brasil deveria afastar qualquer dúvida. É evidente que, se o voto eletrônico (que não se quer suprimir, conforme somente uma “fake news” gosta de alegar – “fake news” que não deixa de ser “fake news” só por ter sido verbalizada por alta autoridade do Judiciário) fosse acompanhado pela impressão do voto, que poderia então ser verificado a qualquer momento, sendo a eleição verdadeiramente auditável, não haveria espaço para nenhuma contestação do resultado das eleições. Não haveria espaço para todas as confusões que se produziram… Bastaria mandar proceder à auditagem dos votos…
A outra lição jurídica é a respeito da situação que se cria quando o sistema se torna, ele mesmo, opressor. Diante de uma injustiça qualquer, inclusive uma opressão, que aflige um cidadão particular, o que tem ele de fazer é recorrer ao Judiciário. Mas se essa opressão é o próprio Judiciário que pratica? Se é o próprio Judiciário (no caso da Venezuela, o tal Conselho Eleitoral, que declara eleito quem não foi eleito e se recusa a apresentar os documentos correspondentes, que provariam a eleição? Se é o próprio Supremo Tribunal que transforma a denúncia da fraude acontecida em processo contra a ordem jurídica, e faz, do vencedor real das eleições, um criminoso a ser perseguido e punido? A quem recorrer? A qual outro juiz, a qual outro tribunal, se não há mais tribunal ou juiz a controlar o judiciário opressor?
Este é o drama supremo da Venezuela de hoje: não há solução dentro do ordenamento jurídico vigente, não há saída dentro do sistema dito democrático vigente, não há remédio constitucional. Nessa situação, extrema (mas real), o Estado Democrático de Direito não funciona… E esta é a grande lição jurídica (não apenas política) para o nosso Brasil contemporâneo: as sociedades podem, infelizmente, se encontrar, às vezes, em encruzilhadas tais para as quais não há solução jurídica. E então, o que fazer? Aceitar, em silêncio, a opressão? Conformar-se com a tirania, submeter-se a ela? Contar com a sorte? Esperar que um dia, por um acontecimento qualquer, as coisas mudem? Rezar pela morte breve do tirano? Esperar ajuda do céu? Esperar que Deus intervenha? Que o Papa faça alguma coisa? (Mas o Papa perdeu, há muito tempo, o poder temporal pelo qual supervisionava e até punia os reis…). O que fazer? Que solução jurídica dar a impasses desse gênero? Que solução pode haver dentro das “quatro linhas” da Constituição?
Gostaria muito que juristas e constitucionalistas, muito mais ilustres do que eu, me esclarecessem a respeito. É o que humildemente peço aos iluminados doutores.
*Professor aposentado de Direito Constitucional e de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE. jslzdelgado@gmail.com