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Entre Bach e o “Bum Bum Tam Tam”: a pesquisa séria em direito supõe a democracia dos mortos.

Recentemente, soube que o professor de determinado cursinho preparatório para a seleção de cursos de mestrado em direito havia feito a recomendação da utilização de livros publicados há menos de 10 anos. O conselho dado pelo mestre dizia: “Na dúvida, evitem trabalhos e livros muito antigos. Prefiram textos mais novos e atualizados. Isto mostra a preocupação do pesquisador em estar antenado nas novidades”. A ideia desta coluna não é criticar especificamente este professor ou qualquer docente que compartilhe desta concepção, mas ideia em si que é reveladora de uma visão de mundo típica da modernidade e que tem verdadeira repulsa a tradição e ao passado.

Por mais que aprecie o que eu mesmo escrevi recentemente, não consigo conceber que alguém possa considerar preferível ler o que escrevi a partir das ideias de Nelson Saldanha, Clovis Bevilaqua, Pontes de Miranda, Santo Tomás de Aquino, etc. em vez de ler diretamente a obra destes autores. Na condição de examinador de processos seletivos em nível de mestrado e doutorado, confesso que gosto de ler trabalhos que  evidenciem o conhecimento dos clássicos e que não seja mero apanhado de citações de obras recentes.

Penso que este respeito a opinião de juristas do passado é um imperativo que decorre daquilo que Chesterton chamava de “tradição” ou “democracia dos mortos”. Para ele, o respeito a tradição “significa dar votos à mais obscura de todas as classes, os nossos antepassados. É a democracia dos mortos. […]. A democracia nos pede para não ignorar a opinião de um homem bom, mesmo que ele seja nosso criado; a tradição nos pede para não ignorar a opinião de um homem bom, mesmo que ele seja nosso pai”.[1]

Causa-me espécie imaginar que alguém considere que o funk “Bum Bum Tam Tam” é música mais sofisticada do que qualquer sinfonia de Johann Sebastian Bach, como disse recentemente certo crítico musical.[2] É mais uma manifestação da atitude de desprezo à tradição e ao passado que é típica da modernidade.

Antes do advento da modernidade, predominava o passado, a estabilizar as escolhas atuais sob a égide de tradições, status sociais e leis pertinentes. A partir do século XVII, conforme leciona Stephan Kirste, o tempo passa a ser apreciado mediante uma perspectiva voltada para o futuro. Tal posicionamento guarda relações com o crescimento das incertezas, bem como a uma maior velocidade no tocante às transformações das circunstâncias sociais. As predições, que orientavam a tomada de decisões, cedem espaço ao planejamento ativo.[3]

Com a modernidade, as normas jurídicas passam a desempenhar “uma função no contexto da ‘colonização do futuro’, da garantia atual em contraposição à sua imprevisibilidade”.[4]

A premência pelo “novo” em detrimento do “antigo” ou “velho” manifesta-se em franca oposição a uma linha de pensamento histórico que deita raízes na cultura medieval, que fez uma clara opção pelo “latim como língua franca, o texto bíblico como livro fundamental e a tradição patrística como único testemunho da cultura clássica”, de modo que recorre a fórmulas consagradas e a comentários, sem dar a entender que se está afirmando algo novo.

Tal afirmação da cultura medieval e, portanto, dos glosadores, bartolistas, praxistas, etc (enquanto produtos desta cultura) como obstáculos à inovação são falsas. Ocorre que a cultura medieval procura esconder a inovação sob o manto da repetição, em vez de fingir “inovar mesmo quando repete”. Assim, pelo apego que tem à tradição, apressa-se o medieval “a nos convencer de que está simplesmente redizendo o que foi dito antes”, de modo a legitimar o seu discurso.[5]

Opor-se à tradição oficial não era apenas um pecado do orgulho, mas gerava certos riscos para quem sustentava tais ideias. É apenas depois de Descartes que se iniciará a tendência dos pensadores aparecerem como aqueles que pisaram em terras nunca exploradas; o fetiche da inovação do pensamento. Contudo, ainda que não valorizassem a inovação, os medievais “também eram capazes de achados engenhosos e lances geniais”.[6]

Não raro, os avanços são colhidos das lições dos civilistas clássicos, muitas vezes esquecidos pela Academia brasileira. Note-se, por exemplo, como já afirmamos em outra oportunidade[7], que a doutrina brasileira contemporânea de direito civil deve muito à José Soriano de Souza Neto as bases da doutrina da vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium), que foram lançadas por ele ainda na primeira metade do século XX.[8] Cabe à comunidade de pesquisadores das pós-graduações em direito civil, a manutenção de uma vigília crítica em relação à doutrina, à jurisprudência e à legislação.

 

Notas e Referências:

[1] CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2010, p. 49.

[2] CARVALHO, Igor. “Bum Bum Tam Tam” é mais complexo que Bach, afirma pesquisador musical. Disponível em:  https://www.brasildefato.com.br/2021/02/06/bum-bum-tam-tam-e-mais-complexo-que-bach-afirma-pesquisador-musical Acesso em: 04 de junho de 2023.

[3] KIRSTE, Stephan. Constituição como início do direito positivo. Traduzido por João Maurício Adeodato, Torquato Castro Jr. e Graziela Bacchi Hora. Anuário dos cursos de pós-graduação em direito, n. 13 (2003). Recife: Universidade Federal de Pernambuco, p. 113-114.

[4] KIRSTE, Stephan. Constituição como início do direito positivo. Traduzido por João Maurício Adeodato, Torquato Castro Jr. e Graziela Bacchi Hora. Anuário dos cursos de pós-graduação em direito, n. 13 (2003). Recife: Universidade Federal de Pernambuco, p. 117.

[5] ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Tradução de Mario Sabino Filho. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 14.

[6] ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Tradução de Mario Sabino Filho. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 16.

[7] COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Soriano Neto e a doutrina da vedação do comportamento contraditório. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mai-06/tavares-filho-soriano-neto-vedacao-comportamento-contraditorio Acesso em: 04 de junho de 2023.

[8] SOUZA NETO, José Soriano de. Eficácia da legitimação por subseqüente matrimônio e ação do filho legitimado para investigar paternidade diferente da resultante da legitimação. Revista Acadêmica, a. LVIII (1951-1956). Recife: Universidade do Recife. Trata-se de texto publicado na Revista Acadêmica da tradicional Faculdade de Direito do Recife (UFPE) apenas na década de 1950, mas que remete a obra produzida por Soriano Neto ainda na década de 1940.

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Venceslau Tavares Costa Filho
Doutor em Direito pela UFPE. Professor dos Cursos de Graduação em Direito da UPE e da FAFIRE. Professor Permanente dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito, e do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UFPE. Professor convidado do Curso de Especialização em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco-USP. Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) - Seção Pernambuco. Membro da Academia Iberoamericana de Derecho de Familia y de de las Personas. Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Advogado.

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    1 Comment

    1. Ótimo texto do Prof. Venceslau, com uma linguagem bem compreenciva principalmente para mim que sou graduando do curso de Direito na Farire; é otimo para desenvolver meu senso crítico sobre as variadas questões que nos cercam nos dias de hoje.

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