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NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, O ÓBVIO PRECISA SER DITO: a necessidade de um processo administrativo disciplinar impessoal

Hoje, iniciamos a coluna “Direito Administrativo em evolução”, que recebe esse nome em homenagem à professora Odete Medauar, professora titular da Universidade de São Paulo (USP) e procuradora do Município de São Paulo, umas das pioneiras do Direito Administrativo.

Aqui, teremos um espaço para tratar de temas atuais do Direito Administrativo, conjugando a visão dos doutrinadores a aspectos da atuação prática, sempre com o objetivo de avançarmos no debate.

Nesta primeira coluna, será abordado o princípio da impessoalidade e sua aplicação aos Processos Administrativos Disciplinares (PAD’s), que podem resultar em aplicação de sanções a servidores públicos, inclusive, com a perda do cargo.

Ao acompanhar os julgamentos de dezenas desses PAD’s observa-se alguns comportamentos vedados pelo ordenamento jurídico, que desrespeitam a impessoalidade, como por exemplo, decisões discrepantes de precedentes firmados, sem qualquer justificativa plausível para a superação (overruling) ou o afastamento (distinguishing) do precedente; sanções aplicadas em desacordo com a tipificação legal; servidores com comportamentos similares, recebendo penalidades muito diversas; ausência de critérios objetivos para o dimensionamento dos eventuais danos patrimoniais causados pelos servidores, dentre outras. Isso é preocupante e demonstra que, muitas vezes, o óbvio precisa ser lembrado: é necessário proteger a impessoalidade, um princípio fundamental da Administração Pública, mas que resta desconsiderado em muitos processos.

O referido princípio, previsto no artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988, segundo Moreira Neto (2001, p. 69), significa vedação à distinção de interesses onde a lei não permita que haja discriminação [1].

A impessoalidade exige que a atuação administrativa seja objetiva, pautando-se pela motivação como óbice à arbitrariedade. Trata-se do agir de forma imparcial, sem julgamentos apaixonados, seja com o intuito de favorecer ou de perseguir. Ao estabelecer que deve ser conferido tratamento igualitário aos que se encontrem em idêntica situação jurídica, a impessoalidade aproxima-se do princípio da isonomia.

Na esfera disciplinar, a impessoalidade é de fundamental relevância, com o intuito de garantir tratamento isonômico, devido processo legal e um julgamento pautado na Lei e nos precedentes, pugnando por uma decisão legítima. Haverá desrespeito ao ordenamento jurídico quando alguma benesse indevida for concedida, bem como, quando direitos e garantias do servidor forem desrespeitados. Em um PAD, pode haver a imposição de rigorosas sanções, o que faz da impessoalidade um requisito indispensável, uma garantia elementar.

Ressalte-se que o princípio da impessoalidade é a versão pátria do princípio da imparcialidade administrativa, oriundo do direito inglês (MATTOS, 2010, p. 129) [2]. Os ingleses, com fulcro na chamada “justiça natural”, estabeleceram duas regras fundamentais para uma decisão imparcial:

    1. ninguém pode ser juiz em causa própria. Assim, as autoridades administrativas devem abster-se de decisões sobre assuntos em relação aos quais tenham interesse de cunho pessoal;
    2. os agentes públicos interessados devem ser ouvidos antes da tomada de decisão sobre assunto que lhes diga respeito.

Ainda tratando da influência europeia, a França, origem do direito administrativo, por meio do Conselho de Estado, tem por tradição anular atos administrativos concretizados com violação ao princípio da imparcialidade (RIBEIRO, 1996, p. 65) [3].

Pode-se afirmar que impessoalidade e imparcialidade se assemelham, como afirma Rosa (1997, p. 36) [4], seja pelo contexto em que estão inseridos nas respectivas Constituições, seja pelo seu conteúdo, reforçando o entendimento de que há inspiração no ordenamento jurídico europeu na introdução do princípio na Carta Magna brasileira.

A impessoalidade é a garantia do processo adequado, em que os poderes conferidos à Comissão Disciplinar (trio de servidores que conduz o PAD), não podem violar a imparcialidade, mantendo-se imune a pressões internas ou externas. Por certo, não se pode olvidar a existência do Poder Hierárquico e a influência exercida pelas autoridades superiores sobre a Comissão Disciplinar. Negar essa realidade é desconhecer o funcionamento da máquina administrativa e o quanto o perfil dos superiores hierárquicos é fator determinante para que se estabeleça um modus operandi em relação às apurações e ao rigor dos julgamentos…ou à ausência dele.

Caso seja comprovada interferência indevida nos trabalhos da Comissão, haverá violação à legalidade. Assim como se exige da Comissão o respeito à impessoalidade, a autoridade responsável pelo julgamento deve observar o mesmo dever, com o intuito de evitar comportamentos ilícitos, que poderão ser apontados, inclusive, pelo Poder Judiciário, pois um julgamento que ignora o conjunto probatório, seja ele favorável ou não ao servidor, que aplica uma sanção diversa da prevista em lei, constitui flagrante violação à ordem jurídica.

Como afirma Rocha (1994, pp. 147-149) [5] “[…] à generalidade da lei corresponde a impessoalidade na Administração, e é isto que garante a resistência contra usos e abusos do Poder do Estado por pessoas ou grupos”, e na seara pública “[..] a objetividade não permite que se mostre ou prevaleça a face ou a alma do administrador”.

Segundo Carvalho Neto (2014, pp. 306-307) [6] para que uma decisão administrativa seja impessoal, faz-se necessário observar, ao menos, três deveres fundamentais, que se interrelacionam:

    1. a decisão deve conter fundamentação suficiente e adequada;
    2. decisões impessoais demandam ambiente processual. Concepções processuais e procedimentais, para fins de legitimação, rechaçam decisões tomadas sem racionalidade, imparcialidade e equilíbrio. O que se almeja é evitar motivos espúrios, de índole pessoal e fins estranhos ao interesse público;
    3. participação do interessado, que no caso do PAD, é o servidor, o que implica controle sobre a atividade desenvolvida. Acredita-se que se houver respeito à processualização, essa participação, naturalmente, ocorrerá.

O desrespeito à impessoalidade administrativa decisória gera consequências jurídicas que vão além da possibilidade de anulação do ato, implicando responsabilização do Estado e dos servidores/autoridades que, a depender do caso concreto, também poderão responder na via criminal.

As tentativas de evitar decisões eivadas de pessoalidade devem, conforme Carvalho Neto (2014, pp. 306 e seguintes) [7], trilhar três passos:

    1. investir no servidor para que esteja apto a conduzir um processo e a decidir em nome do Estado;
    2. adotar condutas de identificação dos interesses em jogo; isolamento e destaque dos interesses confrontáveis; avaliação da juridicidade; eliminação fundamentada de interesses ilegítimos; análise isolada de cada um dos interesses em disputa; cotejo dos interesses legítimos; conciliação possível para que prevaleçam os interesses mais relevantes com o menor sacrifício possível dos demais;
    3. publicizar a decisão com objetividade, primando-se pela justiça material e clareza dos fundamentos adotados.

Nessa linha, nunca é demais lembrar os ensinamentos de Ataliba (2011, p. 156) [8], ao afirmar que “[…] quanto mais segura uma sociedade, tanto mais civilizada. Seguras estão as pessoas que têm certeza de que o direito é objetivamente um, e que os comportamentos do Estado, ou dos cidadãos, dele não discreparão”.

Considerando que a segurança jurídica, a impessoalidade, são uma questão de legitimação da atividade decisória, de racionalidade e civilidade, haveria, como afirma Feitosa (2002, p.372) [9], um processo de deslegitimação do Estado, que ao não cumprir suas promessas, inclusive as que são veiculadas por meio da Constituição Federal de 1988 (como garantir a impessoalidade administrativa), provoca acentuada frustação nos indivíduos?

Fica a reflexão, sempre em busca da evolução.

 

Referências:

[1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

 

[2] MATTOS, Mauro Roberto Gomes. Tratado de Direito Administrativo Disciplinar. 2 ed. São Paulo: Grupo GEN, 2010.  Disponível em: Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/978-85-309-5609-7/.

 

[3] RIBEIRO, Maria Teresa de Melo. O Princípio da Imparcialidade da Administração Pública. Coimbra: Almedina, 1996.

 

[4] ROSA, Renata Porto Adri de. In: FIGUEIREDO, Lúcia Valle (Org.) Princípios Informadores do Direito Administrativo. São Paulo: NDJ, 1997.

 

[5] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

 

[6] e [7] CARVALHO NETO, Tarcisio Vieira de. O Princípio da Impessoalidade nas Decisões Administrativas. Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo/Faculdade de Direito. 2014. 335 f. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-01032016-125610/pt-br.php.

 

[8] ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Malheiros, 2011.

 

[9] FEITOSA, Raymundo Juliano R. A Ordenação da Atividade Financeira e Tributária do Estado. In: ADEODATO, João Maurício (org). InAnuário dos Cursos de Pós-graduação em Direito. Recife: Edição do Programa de Pós-graduação em Direito/Universidade Federal de Pernambuco/CCJ. n. 12, 2002, pp. 345-384.

 

Colunista

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Roberta Cruz da Silva
Doutora em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Mestre e Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora da Universidade Católica de Pernambuco (graduação e especialização); e da pós-graduação do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Autora e coautora de diversos artigos científicos e livros jurídicos. Pesquisadora do Grupo GEDA/UNICAP/CNPQ. Advogada.

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