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O ingresso policial forçado para realização de busca e apreensão: qual entendimento vigora em nosso ordenamento jurídico?

O ingresso policial forçado nas residências, destinado à realização da busca e apreensão, é um assunto recorrente no ordenamento jurídico pátrio. Isso porque, são vários os temas sensíveis que orbitam a questão, mas, principalmente, porque afronta alguns dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos ao ser humano, como a vida privada, a inviolabilidade de domicílio e a intimidade.

 

Afinal, na prática, quando é permitida a entrada forçada em domicílio? Quando a medida será considerada ilegal e contaminará as provas derivadas do ato? Vejamos.

 

Dispõe o artigo 5°, inciso XI, da Constituição Federal que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. A respeito do tema, o Código de Processo Penal dispõe, em seu artigo 245 que as buscas domiciliares deverão ser executadas de dia, salvo se o morador consentir que se realizem à noite, estabelecendo ainda, critérios básicos para sua realização. Define que a entrada forçada será procedida apenas em caso de desobediência ou ainda, quando da ocorrência de flagrante delito.

 

Ou seja, suscintamente, a busca domiciliar pressupõe a existência de ao menos um dos seguintes requisitos, quais sejam, consentimento válido do morador, durante o dia ou à noite; em caso de flagrante delito; ou ainda, sob ordem judicial fundamentada e individualizada.

 

Importante remembrar que a inviolabilidade domiciliar, a intimidade e a vida privada são direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana, contudo, poderão ser mitigados desde que devidamente justificado e sob ordem judicial, respeitando os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade em suas três derivações: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

 

A primeira dúvida surge no conceito de casa, podendo ser extraído do Código Penal, que dispõe em seu artigo 150, §4° definindo-a como qualquer compartimento habitado; aposento ocupado de habitação coletiva, ainda que se destine à permanência por poucas horas; e compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade. Observa-se que, não se exige para a definição de casa que seja fixada ao solo, abrangendo residências sobre rodas, barcos-residência e a parte traseira do interior da boleia do caminhão1. Com relação ao escritório de advocacia, faz-se a exigência, além do mandado judicial, da presença de um representante da Ordem dos Advogados do Brasil, restringindo-se apenas àqueles clientes diretamente envolvidos no crime investigado.

 

Segundo ponto relevante é o conceito de dia e noite, cuja definição se encontra consolidada pelo Supremo Tribunal Federal, que define dia como sendo o período das 5 horas às 21 horas. O consentimento válido, por sua vez, é aquele emanado do morador com pleno entendimento do significado da medida e das suas consequências.

 

Atualmente, o ponto que se reveste de controvérsia é nos casos de flagrante delito, dos quais derivam atos que não possibilitam o real controle da atuação policial. Para que a polícia possa adentrar na residência em caso de flagrante delito, quando impossível a emissão de decisão judicial, exige-se o que se costuma chamar de causa provável, ou seja, a justa causa, quando os fatos e as circunstâncias permitem a uma pessoa acreditar ou ao menos suspeitar, com base em elementos concretos, que um crime está sendo cometido ou tenha acabado de ter sido cometido.

 

Sobre o tema o Supremo Tribunal Federal fixou o tema n° 280, de repercussão geral no seguinte sentido: “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que, dentro da casa, havia situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados.

 

Desde então, os Tribunais superiores têm fixado algumas decisões paradigmas a respeito do tema, vejamos algumas delas:

 

    • Não justifica justa causa apta a autorizar a invasão domiciliar a mera intuição da autoridade policial de eventual traficância praticada por indivíduo, fundada unicamente em sua fuga de local supostamente conhecido como ponto de venda de drogas ante iminente abordagem policial.
    • Uma denúncia anônima, de per si, desacompanhada de outros elementos preliminares indicativos de crime, não legitima o ingresso de policiais em domicílio alheio.
    • O anterior envolvimento do indivíduo com crime de tráfico de drogas não justifica, por si só, o ingresso forçado em domicílio.
    • Denúncia anônima somada à fuga do acusado, por si sós, não configuram fundadas razões a autorizar o ingresso policial no domicílio do acusado sem o seu consentimento.

 

Depreende-se que tais decisões, e inúmeras outras no mesmo sentido, convergem no fato de que a entrada forçada em domicílio sem autorização do morador ou mandado judicial, em caso de flagrante delito, está autorizada apenas e tão somente quando existir justa causa que faça os policiais acreditarem concretamente na ocorrência de crime.

 

É nesse sentido que se manifesta o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:

 

APELAÇÃO CRIMINAL. TRÁFICO DE DROGAS. PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA POR INOBSERVÂNCIA DE PRECEDENTE – REJEIÇÃO –DISTINÇÃO DO CASO EM COMENTO REALIZADA. PRELIMINAR DE INVASÃO DE DOMICÍLIO – ILICITUDE DA PROVA – AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA ANTERIOR – DESCOBERTA DE DELITO POSTERIOR QUE NÃO JUSTIFICA A VIOLAÇÃO – ESTADO DE FLAGRÂNCIA NÃO CONSTATADO – PRECEDENTES. NULIDADE DO ACERVO PROBATÓRIO – TEORIA DOS “FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA” – AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE DELITIVA. PRELIMINARES PARCIALMENTE ACOLHIDAS. ANÁLISE DO MÉRITO PREJUDICADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO, COM. FIXAÇÃO DE VERBA HONORÁRIA. (TJ-PR – APL: 00288756120168160013 PR 0028875-61.2016.8.16.0013 (Acórdão), Relator: Desembargadora Maria José de Toledo Marcondes Teixeira, Data de Julgamento: 23/01/2019, 5ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 23/01/2019).

 

HABEAS CORPUS – tráfico ILÍCITO DE DROGAS (art. 33, caput, da lei 11.343/06)- PRISÃO EM FLAGRANTE convertida em preventiva – ARGUIÇÃO DE ILEGALIDADE da PRISÃO POR VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO – ACOLHIMENTO – INGRESSO DOS POLICIAIS NA RESIDÊNCIA DO PACIENTE QUE SE DEU EM VIOLAÇÃO AO PRECEITO INSCULPIDO NO ART. 5º, INCISO XI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – POLICIAIS QUE ADENTRARAM A RESIDÊNCIA DO PACIENTE APÓS TEREM RECEBIDO DENÚNCIAS ANÔNIMAS, NÃO TENDO SIDO EFETUADAS OUTRAS DILIGÊNCIAS PRÉVIAS SENÃO O COMPARECIMENTO AO LOCAL – FATO DE O PACIENTE TER FUGIDO PARA O INTERIOR DA RESIDÊNCIA QUE NÃO POSSIBILITA POR SI SÓ O INGRESSO DOS POLICIAIS NO LOCAL – APREENSÃO POSTERIOR DA DROGA QUE NÃO JUSTIFICA O PRÉVIO INGRESSO NO DOMICÍLIO – POSICIONAMENTO CONSOLIDADO NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – PARECER DA DOUTA PROCURADORIA DE JUSTIÇA PELO RECONHECIMENTO DA ILEGALIDADE DO INGRESSO DOS POLICIAIS NO DOMICÍLIO – RECONHECIDA A ILICITUDE DAS PROVAS OBTIDAS, BEM COMO DAS DERIVADAS, NOS TERMOS DO ART. 157 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA A ALICERÇAR A CONTINUIDADE DA PERSECUÇÃO PENAL – TRANCAMENTO DO PROCESSO COMO MEDIDA QUE SE IMPÕE, COM A COLOCAÇÃO DO PACIENTE EM LIBERDADE – ORDEM CONCEDIDA.“(…) A existência de denúncia anônima de tráfico de drogas no local associada ao avistamento de um indivíduo correndo para o interior de sua residência não constituem fundamento suficiente para autorizar a conclusão de que, na residência em questão, estava sendo cometido algum tipo de delito, permanente ou não. Necessária a prévia realização de diligências policiais para verificar a veracidade das informações recebidas (ex: “campana que ateste movimentação atípica na residência. (TJ-PR – HC: 00156841220218160000 Castro 0015684-12.2021.8.16.0000 (Acórdão), Relator: Angela Regina Ramina de Lucca, Data de Julgamento: 12/04/2021, 3ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 12/04/2021).

 

As fundadas razões, em outras palavras, justa causa, devem revestir-se de circunstâncias objetivas no atual ou iminente cometimento de crime no local onde ocorre a diligência policial. Os casos de denúncia anônima, fama local, tráfico praticado na calçada, atitude suspeita e nervosismo, fuga de ronda policial ou ainda informações fornecidas por vizinhos não autorizam a entrada

dos policiais. Por outro lado, será lícita no caso da existência de autorização do morador, quando ninguém mora no local, se houver denúncia de disparo de arma de fogo, ou se o agente de segurança pública, fora da casa, sente forte odor de maconha.

 

Surge então uma nova questão, o consentimento do morador. A Constituição Federal fala apenas em morador, sem a exigência de que seja proprietário, locatário ou ainda possuidor do imóvel, compreendendo todos aqueles que habitam o imóvel. Para os Tribunais Superiores, a prova da legalidade e voluntariedade do consentimento incumbe ao Estado, que deve providenciar que a pessoa que autorizou a entrada faça uma declaração e a assine.

 

Em 2021, a 6° Turma do STJ firmou precedente entendendo pela necessidade de gravação da autorização do morador para entrada na residência com a finalidade de investigar a ocorrência de crime quando da ausência de mandado judicial. A violação da medida implicaria na declaração de ilicitude da prova e de todas as que dela decorrerem.

 

No mesmo sentido, vem decidindo o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que, em decisão proferida na data de 03 de outubro de 2022, declarou a nulidade de todas as provas produzidas em decorrência da ausência de justa causa para o ingresso forçado na residência do réu, bem como da inexistência de registro do seu consentimento, seja através de declaração escrita espontânea e voluntária ou meio audiovisual.

 

No caso julgado pelo TJPR, o Judiciário considerou a nulidade do processo em razão da ausência de provas do consentimento do morador, mesmo sendo possível fazê-lo por gravação. Além disso, não existiu justa causa apta a levar a crer na ocorrência de um flagrante delito. Vê-se que tal entendimento é o que prevalece hoje nos Tribunais brasileiros, sob o fundamento de garantia do direito fundamental à inviolabilidade de domicílio, permitindo-se a entrada sem mandado judicial: a. Em caso de indícios concretos da ocorrência de crime, ou seja, em flagrante delito; e b. com o consentimento escrito ou gravado válido e voluntário do morador, circunstâncias que, caso não sejam respeitadas, ensejarão a nulidade da prova.

 

As questões que ficam são: seria mesmo possível o autor de um crime permitir, voluntária e validamente, a entrada em sua residência mesmo sabendo que lá serão encontradas provas do crime? Ou ainda, a autorização para adentrar na residência durante a prática delitiva não frustra êxito da operação policial?

Por essas e outras razões é que o tema sempre foi objeto de discussão e ainda o será, porém, até o momento tem-se entendido que fora das hipóteses de mandado judicial, a entrada forçada em domicílio só é possível diante da presença de causas objetivas que façam os policiais acreditarem concretamente na ocorrência de um crime e, ainda, com consentimento válido e voluntário, documentado ou gravado por meios audiovisuais, do morador.

 

Dados do processo interpretado, já formatados para citação:

(TJ-PR – APL: 00051734620218160196 Curitiba 0005173-46.2021.8.16.0196 (Acórdão), Relator: Renato Naves Barcellos, Data de Julgamento: 03/10/2022, 5ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 03/10/2022).

 

Ementa do processo interpretado:

 

APELAÇÃO CRIME – CONDENAÇÃO PELA PRÁTICA DO CRIME DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES (ART. 33, CAPUT, DA LEI 11.343/2006)- PRELIMINAR – ARGUIÇÃO COMUM DE NULIDADE DE TODAS AS PROVAS PRODUZIDAS EM RAZÃO DA MÁ ATUAÇÃO DOS POLICIAIS RESPONSÁVEIS PELO FLAGRANTE (VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO) – AUSÊNCIA DE FUNDADA SUSPEITA À ESPÉCIE DOS AUTOS – RÉU QUE BAIXA A CABEÇA AO AVISTAR A VIATURA POLICIAL E INICIA ENTRADA EM SUA RESIDÊNCIA – DÚVIDA EM RELAÇÃO AO CONSENTIMENTO DO MORADOR PARA A ENTRADA DOS POLICIAIS À RESIDÊNCIA – INEXISTÊNCIA DE REGISTRO AUDIOVISUAL MESMO SENDO POSSÍVEL A REALIZAÇÃO DA GRAVAÇÃO – ÔNUS ESTATAL DE COMPROVAR A VOLUNTARIEDADE DO CONSENTIMENTO – PRECEDENTES – MÁCULA EVIDENCIADA – ILICITUDE DE TODAS AS PROVAS OBTIDAS – ABSOLVIÇÃO DOS RÉUS QUE SE IMPÕE – RECURSOS PROVIDOS.

(TJ-PR – APL: 00051734620218160196 Curitiba 0005173-46.2021.8.16.0196 (Acórdão), Relator: Renato Naves Barcellos, Data de Julgamento: 03/10/2022, 5ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 03/10/2022).

 

Notas:

1 STJ, 6° Turma, HC 216.437/DF, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 20/09/2012.

Colunista

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Marcela Vinotti
Pós-graduada em Direito Contemporâneo pela Universidade Cândido Mendes, pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná – EMAP, em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS e em Direito Administrativo pela Universidade Única de Minas Gerias em Direito Administrativo. Cursando Gestão de Gabinete pela Escola da Magistratura do Paraná. Assessora jurídica do Juízo Criminal de Campina Grande do Sul (TJPR).

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