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Novas possibilidades de contratação devem fomentar a inovação tecnológica na prestação de Serviços Públicos

Criatividade, inovação e desenvolvimento são fenômenos que caminham juntos. Não à toa, a Constituição brasileira, que incorpora horizontes para superação do subdesenvolvimento no país, destaca os caminhos da ciência, tecnologia e inovação como estratégicos ao atingimento dos objetivos fundamentais republicanos. Tanto é assim que a norma do parágrafo único de seu art. 219 atribui como obrigação do Estado brasileiro o estímulo à inovação nas empresas, assim como nos demais entes, públicos e privados, e determina a constituição e a manutenção de parques e polos tecnológicos e outros ambientes promotores da inovação.[1]

 

Com fundamento nestes horizontes constitucionais, algumas iniciativas legislativas foram empreendidas na busca de instrumentalizar institutos jurídicos que favorecessem a criação de ambientes inovadores no Brasil[2]. É o caso, por exemplo, da Lei nº 10.973/2004/2004, e suas alterações posteriores definidas pela Lei nº 13.243/2016, que conhecida como “Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação” instituiu, entre outras disposições, a utilização do poder de compra do Estado como estratégia de fomento à inovação tecnológica no país.

 

Atualmente, em tempos redefinição de paradigmas tecnoeconômicos impostos pela ubiquidade das tecnologias digitais, o fomento à inovação tecnológica ganha centralidade ainda maior. É que, conforme diagnóstico preciso de Carlota Pérez[3], períodos como este podem apresentar janelas de oportunidade estratégicas para que economias estruturalmente subdesenvolvidas avancem e alcancem o seu (catching up) desenvolvimento.

 

Diante deste cenário, cabe ao próprio Estado, em relação simbiótica com o setor privado[4], propor horizontes que favoreçam a criação e manutenção de ambientes econômicos criativos e de fomento à inovação tecnológica na direção do desenvolvimento econômico e em conformidade com as demandas concretas de sua sociedade. Para isso, as contratações públicas são centrais na definição de prioridades, metas e aplicação de recursos em setores reconhecidos como prioritários e estratégicos à concretização dos postulados constitucionais sobre inovação e tecnologia.

 

Assim, apesar do senso comum de que licitações são procedimentos burocráticos engessados e inaptos a contratações inovadoras, o ordenamento jurídico brasileiro tem evoluído no sentido de proporcionar institutos que sejam aptos, eficientes e eficazes às contratações públicas de inovação e tecnologia. Exemplo disso é a própria Lei nº 14.133/2021, a “nova” Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que estabeleceu o incentivo à inovação e ao desenvolvimento nacional sustentável entre os objetivos do procedimento licitatório.

 

Para seu atingimento, o diploma disciplina instrumentos próprios para incorporação da inovação nas contratações administrativas, como, por exemplo, o “diálogo competitivo”. Conforme definição da própria Lei de Licitações, esta ferramenta institucional é uma modalidade de licitação para contratações em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos.

 

No diálogo competitivo, ao invés da Administração Pública convocar potenciais licitantes para executar um objeto contratual detalhadamente definido, como é comum nas contratações ordinárias, é aberto um procedimento por meio do qual potenciais proponentes apresentam soluções para determinadas demandas ou atingimento de objetivos específicos.

 

Este procedimento, que pode ser utilizado para contratações variadas, inclusive concessões de serviços públicos e parcerias público-privadas, é formado por duas fases: a primeira, fase de diálogo e a segunda, fase competitiva. Na fase de diálogo a Administração mede as possíveis soluções para suas necessidades, não podendo revelar a outros licitantes as soluções que foram propostas para solução de sua demanda ou atingimento de seu objetivo. Ao final dessa fase de diálogo, fundamentadamente, a Administração decide qual solução atende melhor as suas necessidades. Encerrada a fase de diálogo, inicia-se a fase competitiva, devendo ser publicado o edital contendo a especificação da solução escolhida e os critérios objetivos a serem utilizados para seleção da proposta mais vantajosa para todos os licitantes pré-selecionados.

 

Outro instrumento da Nova Lei de Licitações que favorece a incorporação da pequena empresa de base tecnológica no âmbito dos serviços públicos é a possibilidade de realização de Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) restrito a startups. O PMI é um instrumento de que dispõe o poder público para otimizar suas tarefas de planejamento com a colaboração e expertise de setores privados, especialmente naquilo que se refere à mobilização de recursos para viabilização e incremento da infraestrutura pública e da expansão qualitativa dos serviços públicos por meio de contratações administrativas que geralmente se perfazem sob os regimes de concessão de serviços públicos ou parcerias público-privadas.[5]

 

O instrumento que já era amplamente utilizado pelos entes da federação foi incorporado no regime ordinário das contratações públicas com a nova Lei de Licitações, sendo permitido que a Administração restrinja sua participação às startups que, conforme redação do § 4º do art. 81 são “ os microempreendedores individuais, as microempresas e as empresas de pequeno porte, de natureza emergente e com grande potencial, que se dediquem à pesquisa, ao desenvolvimento e à implementação de novos produtos ou serviços baseados em soluções tecnológicas inovadoras que possam causar alto impacto, exigida, na seleção definitiva da inovação, validação prévia fundamentada em métricas objetivas, de modo a demonstrar o atendimento das necessidades da Administração”.

 

Assim, tanto o diálogo competitivo como o PMI restrito a startups favorecem o ingresso de startups no âmbito das contratações administrativas ainda na fase interna, de planejamento da contratação que melhor atenda a necessidade identificada, de modo a auxiliar a Administração concretamente na definição dos horizontes e premissas que estruturação a contratação pretendida.

 

Para além destes novos institutos trazidos ao direito brasileiro pela Lei de Licitações, outro instrumento que deve favorecer o ingresso de startups no âmbito dos serviços públicos é o “Contrato Público de Solução Inovadora” (CPSI), disciplinado pela Lei Complementar nº 182/2021, o Marco Legal das Startups.

 

De modo a institucionalizar o protagonismo que cabe ao Estado no fomento à inovação e à criação de ambientes criativos, o Marco Legal das Startups disciplina uma tipologia contratual própria que visa facilitar e garantir segurança jurídica à contratação de startups pela Administração Pública direta e indireta.[6] Assim, conforme descreve seu art. 12, o CPSI tem por finalidade resolver demandas públicas que exijam solução inovadora com emprego de tecnologia e promover a inovação no setor produtivo por meio do uso do poder de compra do Estado.

 

De modo parecido com o que ocorre com o diálogo competitivo, o Edital de licitação que tenha por objeto o CPSI pode se restringir à indicação do problema a ser resolvido e dos resultados esperados pela administração pública, incluídos os desafios tecnológicos a serem superados, dispensada a descrição de eventual solução técnica previamente mapeada e suas especificações. Cabe, então, aos licitantes propor diferentes meios para a resolução do problema, conforme descrito no art. 13, § 1º, do Lei Complementar nº 182/2021.

 

O CPSI do Marco Legal das Startups é, portanto, um procedimento mais fluido e flexível que as licitações ordinárias, e que já vem sendo adotado por alguns órgãos públicos para contratação de soluções inovadoras para demandas concretas.[7]

 

Este recente contexto jurídico-normativo indica que soluções inovadoras, criativas e tecnológicas devem paulatinamente ser incorporadas no âmbito da prestação de serviços públicos na medida em que a utilização dessas ferramentas amadureçam no cenário institucional das contratações públicas. Mesmo porque, contratos administrativas devem fomentar a construção de relações simbióticas entre Poder Público e setor privado, de modo que as soluções inovadoras possam gerar ganhos de eficiência e sustentabilidade para solução de demandas reais da Administração assim como o poder de compra estatal possa servir como incentivo e fomento à criação, manutenção e consolidação de ambientes inovadores e criativos.

 

Referências:

ANDRADE, Leandro Teodoro. Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI): fluxo regular e possibilidades de revisão dos estudos. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP. Belo Horizonte, ano 21, p. 87-99, jul. 2022.

ANDRADE, Leandro Teodoro; ROSALMEIDA, Natalia. Contrato Público de Solução Inovadora (CPSI) e relação simbiótica no fomento à inovação tecnológica: perspectivas econômico-constitucionais. In: AGRA, Walber de Moura; CAVALCANTI, Francisco Queiroz Bezerra. (Org.). Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Recife: Ed. do Autor, 2022, v. 2, p. 173-190.

MAZZUCATO, Mariana. O Estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014.

MPRJ. Edital nº 1/2023 – Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – Licitação para Contrato Público de Solução Inovadora. Disponível em: https://www.mprj.mp.br/inova/cpsi.

PÉREZ, Carlota. Revoluciones Tecnológicas y Capital Financiero. México: Siglo XXI, 2004.

 

Notas:

[1] Art. 219; O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.

Parágrafo único: O Estado estimulará a formação e o fortalecimento da inovação nas empresas, bem como nos demais entes, públicos ou privados, a constituição e a manutenção de parques e polos tecnológicos e de demais ambientes promotores da inovação, a atuação dos inventores independentes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnologia.

[2] V. ANDRADE, Leandro Teodoro; ROSALMEIDA, Natalia. Contrato Público de Solução Inovadora (CPSI) e relação simbiótica no fomento à inovação tecnológica: perspectivas econômico-constitucionais. In: AGRA, Walber de Moura; CAVALCANTI, Francisco Queiroz Bezerra. (Org.). Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Recife: Ed. do Autor, 2022, v. 2, p. 173-190.

[3] PÉREZ, Carlota. Revoluciones Tecnológicas y Capital Financiero. México: Siglo XXI, 2004. p. 47.

[4] Conforme lições de Mariana Mazzucato, de que o “Estado empreendedor” é um parceiro fundamental do setor privado na busca pela inovação tecnológica. (Cf. MAZZUCATO, Mariana. O Estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014. p. 51)

[5] Cf. ANDRADE, Leandro Teodoro. Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI): fluxo regular e possibilidades de revisão dos estudos. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP. Belo Horizonte, ano 21, p. 87-99, jul. 2022.

[6] ANDRADE, Leandro Teodoro; ROSALMEIDA, Natalia. Contrato Público de Solução Inovadora (CPSI) e relação simbiótica no fomento à inovação tecnológica: perspectivas econômico-constitucionais. In: AGRA, Walber de Moura; CAVALCANTI, Francisco Queiroz Bezerra. (Org.). Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Recife: Ed. do Autor, 2022, v. 2, p. 173-190.

[7] Entre outros exemplos, menciona-se o Edital nº 1/2023 – Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – Licitação para Contrato Público de Solução Inovadora. Disponível em: https://www.mprj.mp.br/inova/cpsi.

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Leandro Andrade
Doutor em Direito Econômico pela USP e Mestre pela UNESP. Advogado, consultor e parecerista. Autor de diversos ensaios e estudos científicos sobre direito público e áreas correlatas. Integra a área de infraestrutura da Spalding Sertori Advogados.

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