Razão de decidirTJMG

O princípio da correlação como postulado da defesa durante a persecução penal

Como forma de resguardar o direito ao contraditório e à ampla defesa, sabe-se que é fundamental e imprescindível a perfeita relação entre os fatos constantes na exordial acusatória e, consequentemente, aqueles que ensejaram na condenação do indivíduo, necessidade esta que decorre do princípio da correlação – também denominado de princípio da congruência ou correspondência. Isso porque o “princípio da correlação entre a denúncia e a sentença condenatória representa um dos mais importantes postulados para a defesa, porquanto estabelece balizas fixas para a produção da prova, para a condução do processo e para a prolação do édito condenatório.” (AgRg no HC 289.078/PB, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 15/12/2016, DJe 15/02/2017).

O julgador deve, portanto, restringir-se ao contexto fático constante na denúncia ou queixa, sendo-lhe permitido, em detrimento dos princípios da jura novit curia e da narra mihi factum dabo tibi jus, atribuir aos fatos definição jurídica diversa daquela constante nos autos. No Direito Processual Penal se nomeia tal possibilidade de emendatio libelli, que encontra respaldo legal no artigo 383 do Código de Processo Penal (CPP), que descreve, in verbis:

 

Art. 383.  O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave.

 

A normativa possui como intuito primordial a preservação do direito ao contraditório e à ampla defesa concedido ao acusado, considerando que, durante a persecução penal, o réu não se defende da capitulação jurídica constante na exordial acusatória, mas sim dos fatos nela narrados.

Leciona a doutrina que:

 

Definição jurídica do fato: é a tipicidade, ou seja, o processo pelo qual o juiz subsume o fato ocorrido ao modelo legal abstrato de conduta proibida. Assim, dar a definição jurídica do fato significa transformar o fato ocorrido em juridicamente relevante. (…) Portanto, neste artigo, o que o juiz pode fazer, na fase da sentença, é levar em consideração o fato narrado pela acusação na peça inicial (denúncia ou queixa), sem se preocupar com a definição jurídica dada, pois o réu se defendeu, ao longo da instrução, dos fatos a ele imputados e não da classificação feita. O juiz pode alterá-la, sem qualquer cerceamento de defesa, pois o que está em jogo é a sua visão de tipicidade, que pode variar conforme o seu livre convencimento. (…) É a chamada emendatio libelli.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 689).

 

Acerca da temática, 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao jugar o Recurso em Sentido Estrito nº 1.0000.22.274166-2/001, decidiu:

 

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA – DESCLASSIFICAÇÃO PARA ESTELIONATO – LESÃO AO PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO – FATOS NÃO DESCRITOS NA DENÚNCIA – ANULAÇÃO DA SENTENÇA – NECESSIDADE – RECURSO PROVIDO. – Inexistindo descrição na denúncia acerca das elementares típicas legais do delito pelo qual houve a emendatio libelli, fere-se o princípio da correlação, pois o acusado defende-se dos fatos descritos e narrados na exordial acusatória, oriundos dos elementos integrantes do tipo legal.  (TJMG –  Rec em Sentido Estrito  1.0000.22.274166-2/001, Relator(a): Des.(a) Guilherme de Azeredo Passos, 4ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 26/07/2023, publicação da súmula em 27/07/2023).

 

Extrai-se do voto condutor que, no caso paradigma, o parquet ofereceu denúncia em face do acusado pela suposta prática do delito de apropriação indébita, tipificada no art. 168 do Código Penal (CP). Contudo, o ilustre Magistrado entendeu que o contexto fático adequava-se ao delito disposto no artigo 171 do CP, razão pela qual desclassificou a conduta e, em razão disso, extinguiu a punibilidade do agente pela decadência por se tratar, o crime de estelionato, de ação penal condicionada à representação.

Irresignado, o Ministério Público interpôs Recurso em Sentido Estrito arguindo que “não procede a nova definição jurídica atribuída ao fato narrado na denúncia, reconhecendo a ação do autor como tipificada no artigo 171 do Código Penal”, bem como que “a extinção da punibilidade pela decadência não pode prosperar porque ‘a representação na ação penal pública condicionada dispensa qualquer espécie de formalidade para que seja válida a deflagração da ação penal, devendo apenas demonstrar que a intenção do ofendido é o início da ação penal’” (TJMG –  Rec em Sentido Estrito  1.0000.22.274166-2/001, Relator(a): Des.(a) Guilherme de Azeredo Passos, 4ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 26/07/2023, publicação da súmula em 27/07/2023).

Diante disso, ao julgar o referido recurso a Colenda 4ª Câmara Criminal acolheu o pleito ministerial, entendendo pela nulidade da decisão vergastada por infringir a disposição contida no art. 384 do CPP. Como bem explicitado no voto do eminente desembargador Relator, “no crime de apropriação indébita o dolo do agente de apropriar-se da coisa alheia móvel surge após já ter a posse do bem (subsequente), invertendo-se a natureza da posse, ao passo que no estelionato, o agente age premeditadamente, ou seja, utiliza-se de algum artifício para induzir alguém em erro e, com isso, obter vantagem ilícita para si ou para outrem” (TJMG –  Rec em Sentido Estrito  1.0000.22.274166-2/001, Relator(a): Des.(a) Guilherme de Azeredo Passos, 4ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 26/07/2023, publicação da súmula em 27/07/2023).

Para o Julgador “a denúncia não narra que o agente agiu premeditadamente, mas que, após estar na posse consentida do celular da vítima, deixou o local e não o devolveu (inversão da natureza da posse)” (TJMG –  Rec em Sentido Estrito  1.0000.22.274166-2/001, Relator(a): Des.(a) Guilherme de Azeredo Passos, 4ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 26/07/2023, publicação da súmula em 27/07/2023), não se tratando, portanto, apenas de atribuição de dispositivo legal diverso, mas de alteração em toda a narrativa e descrição da conduta do agente.

Assim, considerando que o acusado exerce seu direito de defesa com base nos fatos narrados na denúncia ou na queixa, sendo incorreta sua condenação por algo que não lhe foi possibilitada a defesa, “efetuar uma emendatio libelli e reconhecer o crime de estelionato, mesmo que com extinção da punibilidade, rompe-se com os fatos descritos na exordial acusatória e, por óbvio, com a normatividade oriunda do princípio da correlação à qual o julgador encontra-se legalmente vinculado” (TJMG –  Rec em Sentido Estrito  1.0000.22.274166-2/001, Relator(a): Des.(a) Guilherme de Azeredo Passos, 4ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 26/07/2023, publicação da súmula em 27/07/2023).

 

Decisão:

TJMG – Recurso em Sentido Estrito  1.0000.22.274166-2/001, Relator(a): Des.(a) Guilherme de Azeredo Passos, 4ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 26/07/2023, publicação da súmula em 27/07/2023.

 

Link de acesso:

https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do;jsessionid=A98C313CA39D32CAAC6D4353B0317C0B.juri_node1?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=1.0000.22.274166-2%2F001&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar

 

 

 

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Brenda Nascimento
Mestranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Ciências Criminais. Graduada em Direito pela Universidade José do Rosário Vellano. Assistente Judiciário no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG).

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