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O Tema Repetitivo 1076 do Superior Tribunal de Justiça e a impossibilidade de um “duplo twist carpado” hermenêutico 

O Tema Repetitivo 1076 trata do âmbito de incidência do art. 85, § 8º, CPC, isto é, se o critério da equidade à fixação dos honorários advocatícios também alcançaria as contendas em que o valor da causa ou o proveito econômico forem elevados. Essa questão já está sendo deliberada pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, a partir de quatro recursos especiais da relatoria do Ministro Og Fernandes que lhe foram afetados (Recursos Especiais de nº 1850512, de nº 1877883, de nº 1906623 e de nº 1906618).

Os defensores de uma interpretação mais “abrangente” do § 8º se socorrem de dois argumentos: (i) em consulta ao dicionário, por extensão, “inestimável” também significa o que tem “valor excessivo”,[1] abarcando o que não comporta mensuração econômica ou possui valor inexpressivo, bem como seu antípoda, de valor vultoso; (ii) quando a causa ou proveito econômico tem valor elevado, a fixação de honorários advocatícios nos limites percentuais previstos em lei atentaria contra a proporcionalidade / razoabilidade.

Sem a pretensão de esgotar o tema, farei uma brevíssima digressão, atendo-me à fixação de honorários em demandas envolvendo a Fazenda Pública, mas deixando o leitor ciente que o Tema 1076 transcende a participação do Poder Público em juízo (§ 3º).

O argumento que tensiona as possibilidades semânticas de “inestimável” parece imerso na exegese literal ou interpretação filológica, aliás, método açambarcado pela Escola da Exegese nos albores do séc. XIX, símbolo do positivismo legalista.[2] No ponto, já com Carlos Maximiliano, a simples limitação aos signos não significa interpretar, pois a exegese literal é apenas uma fase daquilo que ele chamava de processo interpretativo (a mais primitiva, diria ele).[3] Em outras palavras, muito embora o texto normativo mereça o devido respeito – e nem poderia ser diferente, pois o princípio da legalidade é uma conquista de nossa tradição jurídica, verdadeiro pilar do Estado-de-Direito –,[4] quem se ancorar nele (texto), não estará interpretando. Mesmo porque, aos que insistem em métodos ou fases interpretativas – retrocedendo o debate a um palco situado no séc. XIX, insista-se –, é preciso ter em mente que a exegese literal é complementada pela interpretação lógico-sistemática, pois não basta olhar para um parágrafo ou inciso de um artigo, negligenciando os demais parágrafos e/ou incisos e a cabeça do artigo, tampouco os demais artigos do código.

Contextualizando essas lições à temática dos honorários sucumbenciais, suficiente comparar os §§ 8º e 3º do art. 85 para concluir que “inestimável”, ao menos para os fins normativos, não pode ser interpretado como aquilo que ostenta valor excessivo. Afinal, partindo da premissa de que a lei não emprega termos inúteis, se o vocábulo inestimável também alcança as causas de elevado valor, por que o § 3º estabeleceria sucessivas faixas condenatórias, inclusive, fixando os percentuais possíveis de honorários mesmo quando o valor da causa ou proveito econômico da demanda supera o patamar de 100.000 (cem mil) salários-mínimos? Verdadeiramente, as sucessivas faixas condenatórias revelam que a única “zona cinzenta”, pressuposta à fixação de honorários por equidade, repousa naquelas causas de baixo valor ou que não comportam mensuração econômica.

Sequer é preciso “gastar” a lição de Eros Grau, no sentido de que o direito não se interpreta em tiras,[5] pois a “interpretação” isolada do § 8º está aquém de uma tira. A mesma conclusão pode ser alcançada por meio da (meta)regra que preconiza a interpretação restritiva da regra de exceção. Convenhamos, não há dificuldade em perceber isso no contexto do art. 85, CPC. Todavia, se houvesse algum embaraço, bastaria recorrer ao parágrafo único do art. 140, CPC (“O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei.”).

Com devido respeito aos que pensam em contrário, mesmo que o argumento anterior não fosse suficiente para colocar uma pá de cal no assunto, porque o imbróglio parece nos remeter a uma mentalidade vigente no séc. XIX, restaria saber o motivo de alguns órgãos jurisdicionais interpretarem o art. 85, CPC em desprestígio da voluntas legislatoris, quando é notório o porquê do § 3º afastar a discricionariedade do órgão jurisdicional na fixação de honorários sucumbenciais em desfavor da Fazenda Pública. Parafraseando outro conhecido autor, até as pedras sabem os motivos. Destarte, não seria necessário recorrer ao método tardio da Escola Histórica, consequência da formalização do historicismo, para verificar os antecedentes dogmáticos do texto normativo;[6] eventualmente, resgatar os debates ao tempo da tramitação do projeto de CPC no Congresso. Seria suficiente respeitar a vontade ou intenção do legislador.

Até agora esse texto foi uma espécie de exercício retórico para demonstrar como a tese apegada às possibilidades semânticas do vocábulo “inestimável” constante do § 8º do art. 85, CPC, que nos parece própria ao séc. XIX, esmorece diante de outros argumentos ou teses que também palpitaram nos oitocentos. Particularmente, reconheço que o giro linguístico e o giro hermenêutico infirmam tudo,[7] ou praticamente tudo, alinhavado acima.

Uma palavra final, desta feita, quanto ao emprego de um argumento do séc. XX.

E quanto ao reclamo da proporcionalidade / razoabilidade no arbitramento dos honorários sucumbenciais? Sinceramente, e o tom é apenas de desabafo, reconheço minha dificuldade em debater com quem submete qualquer regra à ponderação – sem olvidar os problemas da ponderação de princípios; a acentuação dos problemas em virtude da recepção equivocada da teoria de Robert Alexy entre nós; e, ademais, como tudo ainda é exasperado com a ponderação de regras. Sem querer soar arrogante, muito menos confessar uma de minhas variegadas limitações, a dificuldade em debater o tema sob a óptica da proporcionalidade está longe de ser intelectual. Antes, é uma questão de regras do jogo. Com Juan García Amado: ninguém pondera para perder.

Postremo: a minuciosa disciplina do art. 85, § 3º, CPC não é fruto da onisciência do legislador – afinal, não queremos retroceder a outro possível argumento do séc. XIX. Com seus intervalos percentuais atrelados a diferentes faixas ou montantes em discussão (relação inversamente proporcional, em que os percentuais são reduzidos consoante o aumento do proveito econômico ou do valor da causa), os múltiplos cenários contemplados pela regra impossibilitam a ponderação do órgão jurisdicional, inexistindo conflito ou antinomia a ser ponderada. Rigorosamente, é o alargamento da incidência do § 8º que conduz a uma antinomia com o § 3º.

 

Referências:

[1] https://www.dicio.com.br/inestimavel/.

[2] Cf. PEREIRA, Mateus Costa. A Teoria Geral do Processo e seu tripé fundamental: racionalismo, pensamento sistemático e conceitualismo. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 125 e ss.

[3] Hermenêutica e Aplicação do Direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, passim.

[4] Sobre o tema, minimamente: SALDANHA, Nelson. Legalismo e ciência do direito. São Paulo: Atlas, 1977, passim.

[5] Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do Direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, passim.

[6] Tratei do tema em outra oportunidade: PEREIRA, Mateus Costa, op. cit., p. 148-154.

[7] Ver STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica (em) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, passim.

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Mateus Pereira
Doutor e Mestre em Direito Processual. Professor de Direito Processual Civil na Graduação, no Programa de Pós-Graduação em Direito e Coordenador da Especialização em Processo Civil da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Advogado (sócio do Da Fonte, Advogados). . Autor do Podcast e do canal de Telegram "Processo & Prosa"(https://t.me/processoeprosa).

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