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Obrigatoriedade, (in)constitucionalidade e inocuidade da audiência do art. 334, CPC

…diríamos que es una curiosa mezcla «totalitario-liberal»; totalitaria porque hace prevalecer un interés superior – el del Estado – al interés de las partes en conflicto, o al menos al de aquella parte que se considere tener la razón; liberal porque a la par considera que los conflictos intersubjetivos deben intentar ser resueltos por las propias partes sin intervención alguna del Estado.[1]

 

Por Alexandre de Paula Filho[2] e Mateus Costa Pereira[3]

 

Voltada à ordem processual peruana (CPC/93), a passagem – epígrafe – de Eugenia Ariano Deho reflete sua censura à obrigatoriedade de submissão dos litígios à conciliação no procedimento das ações de conhecimento em seu país. Não sendo nosso propósito enveredar pelo sistema processual/procedimental peruano, caso fosse outro o vernáculo da epígrafe, acreditar-se-ia que dirigido à realidade brasileira. Aparentemente, isso ocorre porque o estímulo aos meios alternativos ou integrados de resolução de disputas também constitui um apelo do «moderno» direito processual, isto é, suposta «instituição técnica» que transcende barreiras culturais – tivemos a oportunidade de analisar a universalização de modelos, tipos etc., fundada no discurso da modernidade, em outra ocasião[4] É o que permite retirar as críticas de uma ambiência específica e, com as devidas proporções, reproduzi-las em outra (a nossa, tendo o art. 334, CPC, como pano de fundo).

A audiência do art. 334, CPC, suscitou polêmicas desde que o código entrou em vigor. Conquanto algumas tenham sido superadas, tantas outras subsistem. De nossa parte, dois fatores continuam a causar «incômodo»: i) malgrado seja possível sua dispensa – aliás, para além das hipóteses do art. 334, § 4º, CPC, como bem demonstrado por Marco Di Spirito –,[5] a lei impõe sua realização; ii) a audiência é um entreposto entre o juízo de admissibilidade da demanda e a oportunidade à apresentação de defesa pelo réu. Explique-se.

Muito embora o estímulo à autocomposição deva existir, sendo indispensável seu desenvolvimento, a imposição da audiência contrasta com a consensualidade inerente aos institutos da mediação/conciliação, desvelando sua face autoritária:[6] à luz do CPC, o principal objetivo dos meios «integrados» não é o de empoderar as partes; eles não se prestam a preservar a autonomia dos envolvidos na construção da melhor solução. Ao revés, parecem ter sido adotados como ferramentas à redução do acervo, seguindo o mesmo viés «eficientista» que marcou a «fase» da instrumentalidade e que, após os conhecidos movimentos de reforma da legislação revogada – aliás, com a curiosíssima aprovação de um novo código com o mesmo mote –, deu suficientes sinais de fracasso.

O viés «eficientista» salta aos olhos nos sucessivos mutirões de conciliação promovidos pelo Judiciário, além de campanhas como a capitaneada pelo Conselho Nacional de Justiça, com o criativo slogan «conciliar é legal». Aliás, nada disso surpreende se deitarmos o olhar pela história, relembrando que o art. 161 de nossa Constituição Imperial prescreveu a audiência «com o caráter obrigatório, preliminar e condição da ação»,[7] subordinando o início dos procedimentos judiciais ao registro de que haviam sido «intentados os meios reconciliatórios».[8] Previsão similar esteve presente em outros diplomas normativos ao longo do tempo.[9]

A configuração de ato atentatório à dignidade da justiça pelo não comparecimento injustificado à audiência de mediação ou conciliação (art. 334, § 8º, CPC) comprova / desnuda sua faceta autoritária. E legitima a mesma impressão de Eugenia Ariano Deho, no sentido de que o estímulo à «autocomposição» em alguns países, tem partido da premissa de que o processo seja um «mal social», conducente à desagregação entre as pessoas; quando ele (processo), supostamente, deveria se prestar à tutela do direito objetivo e à pacificação social (interesses ditos superiores do Estado). Premissas adotadas por Franz Klein ao final do séc. XIX,[10] merecedoras de efusivo rechaço.

Mesmo para aqueles que não partilham da censura de Ariano Deho, não é difícil perceber que a obrigatoriedade da audiência é problemática por si só. O inciso LXXVIII do art. 5º, CF, por exemplo, prevê que «todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.» Ausente o interesse do autor, não faz sentido que o prazo de resposta do réu se estenda por (em média) 2 a 3 meses, para além dos 15 dias úteis (prazo regular).

Quanto à segunda inquietação externada neste texto, por que o réu é citado/intimado apenas para comparecer à audiência, quando o autor já teve o ônus da perfeita formulação da demanda, é dizer, com a observância do figurino legal (art. 319, CPC)? Não haveria uma dilatação injustificada do prazo à elaboração da defesa e, no comparativo, um ônus «desproporcional» ao autor? Inclusive, será que esse fator não dificulta o índice de acordos?

A colocação da audiência entre o juízo de admissibilidade da demanda e a oportunidade de resposta ao réu afronta a paridade de armas, quebrando a isonomia (art. 5º, caput, CF). Se não padece de vício de inconstitucionalidade pelas razões anteriores, sua imposição desafia a previsão do – nem sempre lembrado – art. 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos, notadamente o direito ao one day in court. Por esses motivos, se o autor manifestar desinteresse em sua realização, em interpretação conforme, a audiência não pode ser designada.

Passados alguns anos da aprovação do código, talvez seja cômodo censurar o art. 334, CPC. É o momento de introduzirmos informações inéditas, utilizando a própria linguagem dos «eficientistas». Detenhamo-nos no terceiro aspecto apontado no título: inocuidade da audiência.

Recente pesquisa, desenvolvida por ocasião da dissertação de mestrado de um dos autores deste texto, após analisar 380[11] feitos de varas cíveis da comarca do Recife/PE, ajuizados entre 2017 e 2019, com trâmite pelo procedimento comum e escolhidos aleatoriamente, identificou a ineficiência das audiências do art. 334 do CPC, enquanto ferramenta de tratamento adequado de conflitos. Dentre esses dados, merece realce o «expressivo» índice de acordos obtido nas audiências: 4,65%.[12]

Para além do pífio quantitativo de questões resolvidas consensualmente nas audiências em exame, outro dado salta aos olhos: o número de acordos celebrados por iniciativa das próprias partes fora – e, inclusive, antes – da audiência do art. 334, CPC (13), superou o número de acordos obtidos nessas audiências (12). Inclusive, dos 12 procedimentos em que a audiência findou em solução consensual, 2 deles foram parciais, isto é, não excluíram todas as partes, e 1 deles não foi homologado pelo magistrado, pois a parte autora, desacompanhada de defensor público, celebrou acordo cujos efeitos da homologação ensejavam a revogação de tutela provisória em seu favor.[13] Portanto, se considerados apenas os acordos que implicaram extinção do procedimento, o número cai para 9 (e o respectivo percentual para 3,5%).

Parecem questionáveis, eventualmente, desconectados da realidade, discursos em favor da previsão do art. 334 do CPC como concretização de um modelo «multiportas» de justiça; no mesmo passo, que seria comum o demandante comparecer à audiência externando desconforto e impaciência, mas, após a intervenção do facilitador e prestados os esclarecimentos pelo demandado, os ânimos se arrefecerem e as partes logram a construção de uma decisão com benefícios mútuos.[14] Como a pesquisa em questão não se prestou a analisar a atuação dos facilitadores, muito menos este artigo, seria equivocado colocar a qualidade de sua atuação em xeque.

A constatação de um número superior de acordos alcançados por iniciativa das próprias partes (de seus advogados), fora da audiência do art. 334,[15] não seria suficiente para que o legislador repensasse sua obrigatoriedade no limiar do procedimento, resgatando disciplina legislativa desfeita desde o final do século XIX no Brasil?[16]

Entusiastas do modelo «multiportas» afirmarão que o curto período de vigência do CPC é insuficiente para avaliar os resultados; que uma mudança cultural, qualquer que seja, leva tempo, o que explicaria os números tímidos. Diante disso, duas últimas indagações: é legítimo utilizar o jurisdicionado como cobaia para tanto? Há um interesse «superior» do Estado no tema?

 

Notas e Referências:

*Texto originalmente publicado no site Empório do Direito em junho de 2020.

[1] ARIANO, Eugenia Deho. Problemas del proceso civil. Lima: Jurista Editores, 2003, p. 25.

[2] Doutorando e Mestre em direito pela Universidade Católica de Pernambuco, especialista em direito médico e da saúde Instituto dos Magistrados de Pernambuco (IMP). Presidente da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem da OAB/PE – Subseção Jaboatão dos Guararapes. Membro da ABDPRO. Advogado.

[3] Doutor em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), com período sanduíche na Universidade de Valência/Espanha. Professor de Processo Civil da Unicap e da Ficr. Membro fundador da ABDPro. Membro fundador da Associação Norte Nordeste de Professores de Processo (Annep). Membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro). Advogado.

[4] PEREIRA, Mateus Costa. Introdução ao estudo do processo: fundamentos do garantismo processual brasileiro. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2020.

[5] DI SPIRITO, Marco Paulo Denucci. Hipóteses objetivas de dispensa da audiência da audiência de conciliação e mediação. Empório do Direito, 23 jul. 2016. Disponível em: <https://bit.ly/3dcwnG1>. Acesso em: 20 ago. 2016.

[6] A autonomia da vontade das partes (também alcunhada de voluntariedade) é princípio que rege os meios consensuais de resolução de conflitos, como se depreende dos arts. 166, do CPC, e 2º, da Lei de Mediação (13.140/15). No ponto, estamos diante de um princípio que não incide apenas na construção do acordo, mas desde a submissão dos interessados ao procedimento consensual.

[7] CASTRO FILHO, José Olímpio de. A conciliação no processo civil. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, v. 5, p. 276-288, fev. 2014. ISSN 1984-1841. Disponível em: <https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/573/540>. Acesso em: 11 abr. 2020.

[8] BARRETO FILHO, Alberto Deodato Maia. A conciliação no processo civil. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, n. 13, p. 82-91, fev. 2014. Disponível em: <https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/947>. Acesso em: 11 abr. 2020.

[9] Sobre o tema: PAULA FILHO, Alexandre Moura Alves de. Reforma processual e argumentação contra legem: quais fatores influenciam os juízos das varas cíveis de Recife/PE a não designarem a audiência prevista no art. 334 do CPC?. 2020. 143 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Católica de Pernambuco, Pernambuco, 2020.

[10] O tema foi objeto de profunda análise em: PEREIRA, Mateus Costa. Introdução ao estudo do processo: fundamentos do garantismo processual brasileiro. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2020.

[11] Este valor para a amostra não foi obtido por conveniência. Realizados cálculos estatísticos para redução de amostra com base em padrões internacionais, constatou-se que, num universo de 31.800 processos, a análise da amostra de 380 feitos traria uma precisão de 95% (margem de erro de 5%) do todo.

[12] PAULA FILHO, Alexandre Moura Alves de. Reforma processual e argumentação contra legem: quais fatores influenciam os juízos das varas cíveis de Recife/PE a não designarem a audiência prevista no art. 334 do CPC?. 2020. 143 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Católica de Pernambuco, Pernambuco, 2020, p. 81.

[13] Ibidem, p. 82.

[14] MAZZOLA, Marcelo. Dever de comprometimento do juiz e a audiência de mediação do art. 334 do NCPC. Críticas aos dribles hermenêuticos e à sua designação aleatória. Revista de Processo, v. 276, a. 43, fev. 2018, p. 138.

[15] Esse dado é relevante, porque considera apenas acordos anteriores à audiência. Como é cediço, diversos acordos dessa natureza se dão no curso do procedimento, em razão de atos praticados que permitam avaliar maior ou menor probabilidade de êxito na demanda. Outro motivo por vezes relevante é a demora na tramitação. Destaque-se, ainda, que grandes empresas têm fornecido propostas de acordo durante o prazo de recurso, situação em que as partes transacionam para obter ganhos mútuos em encerrar o procedimento sem que se desenvolva na fase recursal. Esses motivos ensejam percentuais interessantes de acordo no curso do procedimento. Todavia, a constatação de que há mais acordos no limiar do feito, antes mesmo de se realizar a audiência prevista no art. 334, CPC, que na própria audiência, é um forte indicativo de que o dispositivo é contraproducente na promoção dos fins aos quais idealizado.

[16] Nesse sentido, “vedando a Constituição imperial que se desse início a qualquer processo sem que se tentasse, primeiro, a conciliação das partes, tinha-se como nulo o processo inaugurado sem o cumprimento dessa condição […]. O Decreto nº 359, de 26 de abril de 1890, de abrupto revogou a exigência, passando, daí em diante, a não ser mais necessária a conciliação prévia, que, ainda hoje, constitui, apesar das acanhadas tentativas de ressuscitá-la, medida altamente meritória e necessária” (PACHECO, José da Silva. Evolução do processo civil brasileiro: desde as origens até o advento do novo milênio. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 154).

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Mateus Pereira
Doutor e Mestre em Direito Processual. Professor de Direito Processual Civil na Graduação, no Programa de Pós-Graduação em Direito e Coordenador da Especialização em Processo Civil da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Advogado (sócio do Da Fonte, Advogados). . Autor do Podcast e do canal de Telegram "Processo & Prosa"(https://t.me/processoeprosa).

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