Os Tais Caquinhos – Natércia Pontes
Faltava muita coisa no apartamento 402. Mas sobravam muitas outras: caixas de papelão, bandejas de isopor, cacarecos, baratas, cupins, muriçocas, poeira, copos sujos. Abigail, Berta e Lúcio formam um trio nada convencional. Duas adolescentes dividem o apartamento com o pai, um homem amoroso, idiossincrático, acumulador, pouco afeito à vida prática, que torce para que a morte venha logo lhe buscar e dá conselhos incomuns às filhas: É muito bom sentir fome.
Ao descrever o dia a dia de uma família simbiótica em meio à cordilheira de lixo que só faz crescer, Natércia Pontes desenha o retrato de três pessoas que buscam conviver com seus sonhos e suas fantasias, suas manias e seus anseios, seus medos e suas revelações. Assim, narra-se a história sobre a descoberta da adolescência, os escapes do sofrimento e uma pouco ortodoxa cumplicidade familiar.
A construção da narrativa remete aos “tais caquinhos”: é toda fragmentada em pequenos textos com títulos que não necessariamente têm a ver com o que está sendo dito, o que também remete ao caos que é a vida daquelas pessoas. A sensação é a de ler um diário; os capítulos breves têm seus títulos misturados, como que perdidos ou fora de lugar, uma emulação da desordem do apartamento 402 e da vida de quem o habita.
Uma observação para a ausência de travessões, o que dificulta um pouco o entendimento do que são frases ditas pelos personagens, mas ao mesmo tempo, um ótimo instrumento utilizado pela autora brincar com as palavras, afinal, os textos se encontram nesse estética do amontoamento, assim como a obsessiva conservação das coisas que formam uma vida.
Ora cômico, ora trágico, Natércia constrói o retrato desta vida familiar e, nas suas idiossincrasias, vamos identificando um pouco de nós e daqueles que dividem (ou dividiram) o mesmo teto conosco.