Tributos, Gasolina e Ucrânia
No último post falamos um pouco sobre os reflexos jurídicos e econômicos da lamentável situação com a invasão militar da Ucrânia pela Rússia. Sem separar-me muito desse importante tema, peguei-me lendo um pouco sobre petróleo & combustíveis – aquela coisa que move o mundo e inflaciona tudo em todas as moedas.
Pois bem, o famigerado conflito trouxe mais essa indesejável consequência: uma crise no mercado internacional de petróleo, que levou o preço da gasolina a níveis horrendos. Desde o dia 10/03, “a Petrobras aumentou os preços da gasolina (18,8%), do gás de cozinha (16,1%) e do diesel (24,9%)”[1]. Em São Paulo, de acordo com a ANP[2], a gasolina chega a custar até R$ 8,49 no litro (em Santa Cecília), e mantém uma média de aprox. R$7,20/L. Esse aumento, claro, não foi sentido exclusivamente no Brasil. Como parte do pacote de medidas econômicas contra a Rússia, o Oeste praticamente parou de negociar barris com o país invasor, o que naturalmente causa escassez, insegurança, e aumento de preços[3] (sem falar na situação com a Venezuela e Iran). Nos EUA, a média do preço da gasolina alcançou $4,19 dólares no galão (contra $2,87 no ano passado)[4], correspondendo a aproximadamente R$5,10/L – alguns postos marcaram mais de $5 dólares no galão. Aqui na Bélgica a gasolina chegou a alcançar €2,00 no litro (aprox. R$10,8) até o governo resolver interferir.
Mas o que isso quer dizer? Ora, de muito ouvimos falar que metade do preço do combustível é tributo. Significa que, querendo, o governo poderia renunciar parte dessa arrecadação para aliviar o impacto na população e segurar a inflação, não é?
Quase. Vamos por partes.
No caso específico do Brasil, e, olhando para a composição do preço em novembro/2021 (R$6,71) teremos a seguinte divisão:
Brasil | ||
Ref.: 21/11/2021 a 27/11/2021 | Valor (R$/litro) | Participação |
Preço Produtor de Gasolina A Comum1 | 2.36 | 35.0% |
Preço do Etanol Anidro 2 | 1.17 | 17.4% |
Tributos Federais 3 | 0.69 | 10.2% |
Tributos Estaduais 4 | 1.74 | 25.9% |
Margem Bruta de Distribuição + Revenda 5 | 0.78 | 11.6% |
Preço ao Consumidor de Gasolina C Comum | 6.75 | – |
Fonte: Relatório do Mercado de Derivados de Petróleo/MME | ||
(1) Correspondente à parcela de gasolina A (73%) na gasolina C. | ||
(2) Correspondente à parcela de etanol anidro (27%) na gasolina C. | ||
(3) Pis/Pasep, Cofins e Cide (etanol anidro e gasolina A). | ||
(4) ICMS. | ||
(5) Margens brutas incluem demais custos não identificados nesta tabela e margem líquida de lucro. | ||
Pela repartição do preço acima podemos concluir que em torno de 36% do preço final é composto por tributos. Desses, 26% são tributos Estaduais (ICMS) e 10%, Federais (Pis/Pasep, Cofins e Cide). Em outros países, como os EUA, o percentual é de aprox. 16%. Já na UE, mais da metade do preço do combustível é composto por tributos, mas é um dado que termina variando muito de país para país.
Tecnicamente falando, essa conta poderia ainda ser apresentada de outra forma: levando em consideração a incidência de imposto de renda e contribuição social sobre o lucro nas margens de cada integrante da cadeia produtiva. Todavia, esse cálculo cresceria consideravelmente, uma vez que outros tantos fatores entrariam em cena – inclusive a existência ou não de lucro no período em análise[5]. Vamos, portanto, focar na tributação que afeta diretamente o preço na bomba.
Internacionalmente falando, essa categoria de tributos é conhecida como “excise tax” ou “excise duties”. Essas são aplicadas a um bem ou atividade específica, como cigarros, bebidas alcoólicas, refrigerantes, gasolina etc. e normalmente compõem uma parcela relativamente pequena e volátil da arrecadação de impostos estaduais e locais e, em menor grau, federais. No Brasil seria o “imposto de consumo”, mas a nomenclatura fica complicada a partir do momento em que a doutrina e jurisprudência fazem clara diferença entre as modalidades: imposto, taxa e contribuições (e outras categorias a depender da corrente adotada). Para evitar confusão, foquemos no conceito-mor, independentemente se possuem receita vinculada ou não.
Pois bem. O que há de errado na cobrança de tributos no Brasil? Pagam os consumidores mais do que deveriam em tributos?
A resposta certamente é que não há nada de errado. Aliás, como demonstrado, sentamo-nos bem no meio entre exemplos como UE e EUA. Não há nada de abusivamente alarmante em uma exação entre 36% e 40% sobre um produto como combustível. Há quem fale, inclusive, que combustível fóssil caro é benéfico quando olhamos pela lente verde da preservação do meio-ambiente (ou quando se chama Elon Musk[6]).
Entretanto, acredito que valha a pena tecermos algumas considerações em relação ao “modo” de aplicação dessa exação, i.e., “excise tax” no Brasil. Para além do embrolho fiscal que é o caso brasileiro (Pis/Pasep, Cofins, Cide e ICMS sobre etanol anidro e gasolina A – sem falar em outros tributos que afetam a cadeia produtiva interna), sou da opinião que a cobrança por modalidade percentual é mais danosa do que benéfica. Nesse ponto, estou com o time do tio Sam (EUA).
Sobretudo em tempos de incertezas (como normalmente ‘os tempos’ são), a flutuação do preço do barril de petróleo afeta negativamente a previsibilidade de diversas cadeias produtivas, inflação e, claro, a locomoção de muitos cidadãos. Para se ter uma ideia, vejamos o quão “estável” essa comoditie tem se mostrado nos últimos (quase) 50 anos (preço médio por barril em dólares):
Fonte: Statista[7]
Aterrorizante? Sem dúvidas. Talvez ainda mais quando lembramos que ‘óleos combustíveis de petróleo’ lidera (juntamente com adubos & fertilizantes) a lista de importação brasileira e ‘óleos brutos de petróleo’ (seguindo soja), a lista de exportações[8]. Isso simplesmente serve para mostrar o quão susceptível toda a cadeia está à variação do preço do barril.
Uma tributação como o ICMS substituição terá inevitavelmente um efeito alavanca nessa cadeia, penalizando excessivamente o contribuinte em momentos de alta e afagando os de baixa, quando repassados.
Como boa prática de equilíbrio econômico e previsibilidade, uma tributação fixa ajudaria ao menos a controlar a instabilidade dos preços de forma menos penosa. Vejamos o exemplo abaixo (simplificado para o propósito dessa demonstração):
Carga tributária total no exemplo: | 36% | (Preço em Reais) | |||
Cenário Atual | Cenário Hipotético | ||||
Ano | Preço da Gasolina menos tributos (36%) | Tributação por percentual (Perc) | Preço da Gasolina + (Perc) | Tributação por preço fixo (prF) | Preço da Gasolina + (prF) |
2017 | 2.360 | 1.327 | 3.687 | 1.765 | 4.125 |
2018 | 2.687 | 1.512 | 4.199 | 1.765 | 4.452 |
2019 | 2.755 | 1.550 | 4.305 | 1.765 | 4.520 |
2020 | 2.856 | 1.606 | 4.462 | 1.765 | 4.621 |
2021 | 3.515 | 1.977 | 5.492 | 1.765 | 5.280 |
2021 | 4.648 | 2.614 | 7.262 | 1.765 | 6.413 |
Arrecadação total: | 10.59 | 10.59 | |||
Variação em 6 anos: | 97% | 55% |
Em qual cenário você prefere estar?
O resultado é como esperado: paga-se o mesmo enquanto há menor variação do preço no tempo. Ou seja, economicamente o resultado é igual, mas com uma fundamental diferença: maior consistência e previsibilidade ainda que contra o câmbio e o preço do barril. É inegável a mais-valia dessa segurança, sobretudo num país como o Brasil que precisa de âncoras.
Esse processo lhe parece familiar? É possível que sim. Não estamos reinventando a roda. Há um projeto de lei tratando sobre este assunto, aprovado na câmara em outubro do ano passado e pelo plenário do Senado agora em março de 2022[9]. O projeto, que agora segue para sanção presidencial, sugere a fixação anual de alíquotas ad rem incidentes por unidade de medida e não pelo valor da operação.
Não significa que a alteração é perfeita. É importante nos debruçarmos sobre essa nova ideia e entender exatamente (i) o que é sugerido e (ii) se os estados sequer vão adotar as medidas e (iii) respeitar o fundamento da mudança, i.e., imagine se no gráfico acima o preço fixo simplesmente imitasse o equivalente ao do percentual.
Tudo isso é ótimo, mas não seria melhor simplesmente não tributar por enquanto, considerando a guerra e alta dos preços, exatamente como o presidente já sugeriu?[10]
Melhor para quem? De um ponto de vista fiscal-tributário provavelmente não.
Por quê?
Bom, essa ideia também não é nova. Nos EUA, por exemplo, mesmo com o sistema de tributação em valores fixos, diversos estados já iniciaram uma suspensão da cobrança de tributos estadual sobre combustíveis. Maryland e Georgia estão entre esses estados. É o chamado “tax holiday”. Na média, o tributo estadual é responsável por aproximadamente 32 cents no preço do galão de combustível.
Há também uma proposta para reduzir o excise tax federal dos EUA, que correspondem a mais 18 cents na conta.
Esse método já está sendo severamente criticado[11]. O problema resta em diversos aspectos (prometo não me alargar muito mais):
- A simples redução do tributo sobre o bem de consumo não garante repasse ao consumidor final. Parte ou tudo possivelmente vai ser absorvido na cadeia de produção. Em tempos de crise, uma folga fiscal é sempre bem-vinda;
- Com a alta inflação, apesar de relevante, combustível não será a única pedra no sapato do consumidor. O tremendo esforço do governo federal ou estadual em abdicar de uma fonte de receita importante pode terminar desencadeando um efeito dominó muito pior. Nos EUA, por exemplo, a receita da arrecadação com combustíveis é direcionada a um fundo para manutenção das vias. A falta de receita para esse fundo poderia prejudicar em larga escala a manutenção das estradas.
- Ainda que o corte no tributo seja sentido pelo consumidor ele implicaria aumento da demanda. Esse aumento, sem a correspondente oferta elevará o preço de volta aos patamares anteriores gerando mais inflação.
No Brasil é ainda mais difícil de se implementar eis que uma medida como essa necessitaria de diversas interações legislativas, sobretudo em relação à Lei de Responsabilidade Fiscal.
Talvez uma maneira mais economicamente eficaz seria seguir com algo parecido com o ‘auxílio gasolina’ do PL 1472/2021: um subsídio para profissionais do transporte encherem o tanque de seus carros. Alternativamente um bônus de dedução do imposto de renda fosse suficiente? Ou talvez a resposta esteja em efetivamente enfrentar a crise do combustível como deve ser enfrentada: uma pequena e minúscula gota de preocupação, frente ao que os Ucranianos estão enfrentando.
A verdade é que: com o fim da guerra, estabiliza-se o mercado de petróleo e o preço volta a cair. Implementando-se a tributação fixa (ao menos a nível estadual) estaremos diante de um cenário muito mais assente.
Então, seja pela falta de vontade (ou condições) de utilizar o transporte público, ou pelas verdadeiras razões humanas que devem nos mover, oremos pelo fim da guerra.
Referências e Notas:
[1] Conforme noticiado em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60711085. Acessado em 03/04/2022.
[2] Tabela de preços disponível em: https://preco.anp.gov.br/include/Resumo_Ultimas_Coletas_Posto.asp. Acessado em 03/04/2022.
[3] Vale ressaltar aqui também que o Brasil, apesar da declarada “autossuficiência”, ainda precisa importar outros tipos de petróleo e combustíveis, devido à falta de capacidade de refino suficiente para satisfazer o consumo nacional.
[4] Análise de preços disponível em: https://gasprices.aaa.com/. Acessado em 04/04/2022.
[5] No Brasil, por exemplo, teríamos que considerar fatores como paridade e repasse de preços, o que pode rapidamente tomar um viés político – o que foge ao propósito dessas exposições.
[6] A menção jocosa faz referência ao sócio e CEO da Tesla Motors, nos EUA. A empresa é uma das maiores fabricantes de veículos elétricos do mundo.
[7] Disponível em: https://www.statista.com/statistics/262860/uk-brent-crude-oil-price-changes-since-1976/#professional. Acessado em 05/04/2021.
[8] Disponível em: https://balanca.economia.gov.br/balanca/pg_principal_bc/principais_resultados.html. Acessado em 03/04/2021.
[9] Para mais informações: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151606.
[10] Vide: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/01/zerar-tributos-federais-sobre-combustiveis-pode-custar-r-130-bi.shtml.
[11] Opinião dividida por Howard Gleckman, membro sênior do Centro de Política Tributária Urban-Brookings do Instituto Urbano dos EUA em entrevista para Bloomberg Law “Talking Tax” em 17/03/2022.