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SÃO OS “PRINCÍPIOS” DA LGPD, VERDADEIRAMENTE, PRINCÍPIOS?

Fui provocado por uma inquietação, dentre outras tantas, que me abalam pela má-técnica de neófitos e daqueles que “ouviram dizer” algo sobre dogmática jurídica. O debate tecnológico está cheio de “especialistas” de ocasião, sem base analítica e com muita habilidade retórica-estratégica. A ideia de princípios, como equivocadamente se absorveu de uma jurisprudência ativista no Brasil, é um prato cheio para os que querem diminuir seu ônus argumentativo e esboçar aparência de domínio sobre o tema.

Meu objetivo aqui, em linhas muito superficiais, é: questionar se os ditos “princípios” em leis sobre tecnologia, como a LGPD, são, de fato, princípios e esboçar alguns desdobramentos deste debate.

Antes de começarmos no cerne do meu argumento, queria explicar ao menos duas visões opostas: para defender a existência, validade e aplicabilidade de princípios, pensei em Humberto Ávila; para criticar a existência, validade e aplicabilidade de princípios, Eduardo Fonseca da Costa.

 

O QUE SÃO PRINCÍPIOS?

 

Para Ávila, em Teoria dos Princípios (2005, p. 70), regras jurídicas são “normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensões de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos“. Princípios, por outro lado, são “são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção“.

Donde se pode extrair alguns pontos gerais: regras são normas jurídicas que têm estrutura descritora (descrevem normativamente para incidir), sempre em orientação com o conteúdo de princípios, hierarquicamente superiores, e que, por seu turno, são normas que prospectam realidade (descrevem o próprio efeito de incidência) e fazendo-o de maneira complementar e correlativa ao seu comando estratégico interno.

Em outros termos: enquanto a norma descreve uma situação (descritor) e prescreve uma consequência, o princípio, de pronto, prescreve um conteúdo para alterar a realidade, levando, consigo, um conjunto de valores da sociedade.

Para Eduardo Costa, em uma série de artigos intitulados “Princípios não são normas“, publicadas no Empório do Direito: “Não há aplicação per saltum, direta ou imediata de princípios. Em toda a-plicação está im-plicada uma ex-plicação: é preciso tirar do interior do aplicador o caminho mental que ele percorreu para enquadrar o fato real [aplicador = juiz] ou imaginário [aplicador = doutrinador] na hipótese normativa. Entretanto, além de uma ex-plicação, está im-plicada uma ex-tração: é preciso tirar do «interior» da norma as consequências jurídicas por ela previstas. Na aplicação normativa se entrelaçam dois juízos consecutivos, pois: um juízo anterior de subsunção → um juízo posterior de estatuição. Todavia, no princípio não se verifica esse entrelaçamento consecutivo. Isso é estrutura própria de regra. A regra se define exatamente porque tem preceito primário + preceito secundário. […] Na realidade, o princípio sempre prescreve um determinado «estado ideal de coisas» [ideale Zustand] [ex.: princípio republicano, princípio democrático, princípio da eficiência]. Enfim, o princípio tem um conteúdo programático [Programm] e um contexto interlocutivo [Bereich] dentro do qual esse conteúdo faz sentido. Sob o ponto de vista lógico-proposicional, a regra exprime um juízo deôntico hipotético-condicional [«Se A, então B deve ser»]; por seu turno, o princípio exprime um juízo deôntico categórico [«C deve ser»]“.

Desta abordagem se extrai que: apesar de comunicarem conteúdos axiológicos, princípios não seriam norma jurídica – da sua estrutura lógica à sua imediatidade. Em certo sentido, e já tomando partido, parece que Costa relê a imediatidade de aplicação dos princípios, extraindo daí existir justamente a não-normatividade.

Se princípios não são normas, não tem estrutura de normas, então eles não gozam do atributo normativo fundamental, dentro do ordenamento, que é a sua incidência dentro do mundo jurídico, com vistas a alterar o mundo dos fatos. Assim sendo, se princípios não têm incidência ideativa, não podem ser aplicados dentro do sistema – e, por isso, Eduardo Costa fala que a aplicação de princípio pelo Judiciário é pseudojurisdição, não se legitima na ordem constitucional vigente.

 

OS DISPOSITIVOS DA LGPD

 

Na Lei Geral de Proteção de Dados, tal qual ocorrido em outras legislações de regulação do ambiente tecnológico, sempre constam artigos sobre a existência de objetivos, fundamentos, conceitos-base e “princípios”. Na LGPD, os princípios têm centralidade ímpar, eles veiculam as molduras de aplicação dos demais dispositivos legais, veiculando comandos expressos com reflexos práticos na gestão de empresa e na chamada “atividade de tratamento” que envolve uma série de ações – da coleta à deleção do dado.

Finalidade, necessidade, transparência e segurança são exemplos dos “princípios da LGPD”. Ao nomear, terminologicamente, estes marcadores como princípios, teria o legislador se equivocado – com base numa doutrina analiticamente frágil?

 

“PRINCÍPIOS” SÃO PRINCÍPIOS? “PRINCÍPIOS” SÃO REGRAS?

 

No sentido de Ávila, parece que os dispositivos elencados poderiam se tratar de princípios, pois prospectam cenários futuros, buscando, através de uma força normativa comparar um antes e impor um depois. Assim sendo, a atividade de tratamento deve seguir as diretrizes da necessidade, da segurança, da adequação, dentre outros.

Nesta leitura, os princípios da LGPD seriam normas, mas não se resolve o seu caráter de generalidade trans-sistema. Afinal, se os princípios atravessam o sistema como prospectivos da realidade, hierarquicamente superiores, e complementadores do sistema de normas, nada justificaria sua situacionalidade dentro de um subsistema como o de proteção de dados. Por óbvio, eles atravessam e extravasam a LGPD.

No sentido de Costa, ao falar sobre princípios, o legislador estaria dando diretrizes não incidentes de diretrizes interpretativas, mas estrategicamente servindo como justificativa para o exercício do poder de criação de norma, no caso concreto. Fundamenta-se, portanto, a quebra da separação de poderes sem, efetivamente, se instaurar em um comando do próprio ordenamento.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: quando pensados na prática, os princípios da LGPD se apresentam como descritores com objetivo de alterar a realidade pelos conceitos apresentados – ou seja, incidem como regra e não como princípio, que se entenda pela sua normatividade, quer não. A ideia, comumente sustentada de aplicação gradual de princípios, contra o fundamento do “tudo ou nada” da regra, também não favorece a concepção de que os “princípios” da LGPD, de princípios se tratam.

A tese contrária, de Eduardo Costa, só reforça que o aspecto de generalidade e aplicabilidade em escala, não se sustenta (não há juízo de ponderação). Há conformidade ou inconformidade no tocante aos aspectos de transposição do antecedente normativo ao fato regulado em matéria de proteção de dados. Assim sendo, os “princípios” de legislações que tentam regrar o ambiente tecnológico, como os propostos na Lei Geral de Proteção de Dados são regras, com força de incidência plena e aplicação não matizável.

Resta definir o campo semântico de cada um desses conceitos, para impedir o ativismo judicial tresloucado de profissionais que nada sabem sobre a complexa interseção entre direito e tecnologia.

 

REFERÊNCIAS:

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2005.

COSTA, Eduardo José Fonseca da. ABDPRO #179 – PRINCÍPIO NÃO É NORMA (1ª PARTE). Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-179-principio-nao-e-norma-1-parte#:~:text=Princ%C3%ADpios%20n%C3%A3o%20s%C3%A3o%20valores%2C%20se,fundam’%20sobre%20eles%C2%BB).>. Acessado em: 13 de abril de 2022.

 

 

 

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André Fernandes
Advogado. Head de Direito Digital no Buonora & Oliveira Advocacia. Mestre em direito no Programa de Pós-graduação em Direito - PPGD/UFPE, linha Teoria da Decisão Jurídica. Graduado em direito pela Faculdade de Direito do Recife - UFPE. Fundador do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec). Professor Universitário. Membro em Grupos de Trabalho de Especialistas sobre Responsabilidade Civil na Internet (GTRI/Internet Society) e Inteligência Artificial e Governança (Governo Federal/CGI.br). Ex-Presidente da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Pesquisa: 1) estruturas históricas acerca da automação do trabalho; 2) os modelos históricos de responsabilização civil e as legislações atuais sobre intermediários tecnológicos; 3) processos decisórios da técnica multissetorial no ambiente da governança da Internet e no âmbito institucional (público e privado). Estuda a vida e obra de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda.

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