A NOVA TEORIA DAS INCAPACIDADES À LUZ DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
No texto anterior, o enfoque conferido nesta coluna foi referente à discussão sobre o estabelecimento de uma nomenclatura adequada a designar o grupo das pessoas com deficiência e de um conceito que conseguisse definir apropriadamente a minoria em voga. Em ambos os pontos, foi trazida à baila o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/16), cujo advento deu-se para cumprir requisitos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo.
Entretanto, a novel norma interna não ficou responsável apenas por ratificar os aspectos terminológicos e conceituais e por sistematizar direitos e garantias para tal classe de sujeitos, haja vista que também trouxe em seu bojo novos mecanismos a serem aplicados em prol da inclusão social. Além de propostas de políticas públicas e de direcionamentos para a elaboração de ferramentas, o Estatuto da Pessoa com Deficiência fez revisão do ordenamento jurídico, atualizando-o em alguns pontos com o fito de amoldar na atual visão biopsicossocial.
Um dos pontos modernizados pela Lei nº 13.146/15 foi a teoria das incapacidades adotada pelo Código Civil de 2002. Veja-se que o intento de referida norma é encorpar a luta pela emancipação – ou, em outras palavras, a inclusão social plena – da pessoa com deficiência, o que se mostrava atividade árdua por conta da presença de regras arcaicas que sugestionavam a crença de ausência de discernimento para a prática de atos da vida civil por parte dos membros de tal grupo hipossuficiente. Nesse entrelinho, há mudanças significativas no rol das incapacidades, bem como no instituto que resguarda o sujeito que não possui a capacidade para a prática dos atos de sua vida civil: a curatela.
Como estruturação do presente texto e também desta coluna, o assunto será tratado em duas publicações distintas, trabalhando os pontos específicos de cada ponto. Além disso, será possível trabalhar outro importante instituto – o qual ingressou no ordenamento jurídico por meio da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/15) – denominado tomada de decisão apoiada.
Por este modo, a postagem de hoje abordará exclusivamente sobre a personalidade e a teoria das incapacidades, como forma de construir as bases para o desenvolvimento dos estudos da curatela e da tomada de decisão apoiada na próxima publicação. Menciona-se, de antemão, que o a Lei nº 13.146/15 traz profundas alterações nas hipóteses previstas nos artigos 3º e 4º do Código Civil, modernizando as previsões para as incapacidades absoluta e relativa.
Preambularmente, cumpre colacionar que a incapacidade está intimamente interligada com a personalidade jurídica, pode ser definida como a aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações. Nesse entrelinho, adquirida a personalidade, o ente passa a atuar na qualidade de sujeito de direito (pessoa natural ou jurídica), praticando atos e negócios jurídicos. Tal ideia permite concluir que a personalidade é, portanto, atributo de toda e qualquer pessoa, seja natural ou jurídica, pois a própria norma civil não faz distinção entre as acepções. (STOLZE; PAMPLONA FILHO, 2021, p. 25)
O que interessa para a coluna é a pessoa natural, cujas características podem preencher uma das hipóteses presentes no rol das incapacidades. Além disso, a pessoa natural retrata o ser humano enquanto destinatário de direitos e obrigações, sendo que o surgimento da personalidade se dá, com fulcro no artigo 2º do Código Civil, com o nascimento com vida. Em termos técnicos, o recém-nascido adquire personalidade jurídica, tornando-se sujeito de direito, a partir do funcionamento do aparelho cardiorrespiratório clinicamente aferível pelo exame de docimasia hidrostática de Galeno, ainda que venha a falecer minutos depois. Isso demonstra que a corrente adotada pelo ordenamento jurídico é a natalista. O nascituro[1] – ente concebido, ainda não nascido –, embora não tido explicitamente como pessoa, tem seus direitos tutelados desde a concepção. (STOLZE; PAMPLONA FILHO, 2021, p. 25)
De forma simplista, todo ser humano é dotado de personalidade jurídica e, consequentemente, de aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações. Corolário da personalidade, há o reconhecimento pela ordem jurídica ao indivíduo de conferir capacidade para a aquisição dos direitos e para exercê-los por si mesmo diretamente ou por intermédio – consubstanciada na figura da representação – ou com a assistência de outrem. Com isso, a aptidão para adquirir os direitos na vida civil recebe o nome de capacidade de direito, enquanto que a capacidade de fato designa aptidão para utilizar e exercer tais direitos adquiridos por si mesmo. Mister se faz esclarecer que a capacidade de direito – também conhecida como de gozo ou de aquisição – não pode ser recusada à pessoa sob a pena de privá-lo dos atributos da personalidade. (PEREIRA, 2020, p. 223)
Por sua vez, alguns indivíduos não possuem caracteres suficientes para a prática dos atos da vida civil ou, em outras palavras, há privação em determinadas situações que o sujeito se encontra para exercer os atos e negócios jurídicos. Essa inaptidão é denominada incapacidade e está interligada com a capacidade de exercício. Nesse diapasão, cita-se escólio de Caio Mário da Silva Pereira (2020, p. 224) sobre o tema:
Aos indivíduos às vezes faltam requisitos materiais para dirigirem-se com autonomia no mundo civil. Embora não lhes negue a ordem jurídica a capacidade de direito, recusa-lhes a autodeterminação, interdizendo-lhes o exercício dos direitos, pessoal e diretamente, porém condicionado sempre à intervenção de outra pessoa, que os representa ou assiste. A ocorrência de tais faltas importa em incapacidade. Aquele que se acha em pleno exercício de seus direitos é capaz, ou tem a capacidade de fato, de exercício ou de ação; aquele a quem falta a aptidão para agir não tem a capacidade de fato. Regra é, então, que toda pessoa tem a capacidade de direito, mas nem toda pessoa tem a de fato. Toda pessoa tem a faculdade de adquirir direitos, mas nem toda pessoa tem o poder de usá-los pessoalmente e transmiti-los a outrem por ato de vontade.
Os indivíduos que são considerados totalmente inaptos ao exercício das atividades da vida civil são denominados absolutamente incapazes, os quais, apesar de poderem adquirir os direitos, não estão habilitados a exercê-los. A ligação que é estabelecida entre os absolutamente incapazes e a vida jurídica é indireta através do instituto da representação. Em mesmo sentido, arvora-se que a pessoa é totalmente afastada da prática dos atos da vida civil, os quais são praticados por seus representantes. Estes, por sua vez, são nomeados pela via automática, decorrente, por exemplo, das relações de parentesco, ou pela via da nomeação ou designação da autoridade judiciária, como são os casos da tutela dativa, da curatela e dos ausentes. Por fim, explicita-se que, em relação aos efeitos, a incapacidade absoluta gera a nulidade de pleno direito do ato praticado, conforme preceitua o artigo 166, I, do Código Civil. (PEREIRA, 2020, p. 231-232)
Noutro giro, Pereira (2020, p. 240) leciona o que segue sobre a incapacidade relativa:
Entende o ordenamento jurídico que, em razão de circunstâncias pessoais ou em função de uma imperfeita coordenação das faculdades psíquicas, deve colocar certas pessoas em um termo médio entre a incapacidade e o livre exercício dos direitos, que se efetiva por não lhes reconhecer a plenitude das atividades civis, nem privá-las totalmente de interferir nos atos jurídicos. A essa categoria de pessoas chamadas relativamente incapazes, e elas ocupando uma zona intermediária entre a capacidade plena e a incapacidade total, diz-se que são incapazes relativamente à prática de certos atos ou ao modo de exercê-los (art. 4º do Código Civil). Os relativamente incapazes não são privados de ingerência ou participação na vida jurídica. Ao contrário, o exercício de seus direitos somente se realiza com a sua presença. Mas, atendendo o ordenamento jurídico a que lhes faltam qualidades que lhes permitam liberdade de ação para procederem com completa autonomia, exige sejam eles assistidos por quem o direito positivo encarrega desse ofício – em razão do laço de parentesco ou em virtude de relação de ordem civil, ou ainda por designação judicial. Nos seus efeitos, a incapacidade relativa gera a anulabilidade do ato jurídico (art. 171, I, do Código Civil), o que estudaremos no nº 110, infra.
Dentre todas as considerações lançadas alhures, surge a indagação: qual a correlação entre a pessoa com deficiência e a teoria das incapacidades? É cediço que o preconceito encontra-se entranhado no âmago da sociedade, o que influenciou por séculos o tratamento totalmente discriminatório dispendido para o grupo em foco. Inicialmente tidas como possuidoras de espíritos malignos, as pessoas com deficiência sempre foram vistas como inaptas de ter plena participação social.
Com os avanços tecnológico, social e jurídico, o presente conjunto de indivíduos passa a ser gradativamente inserido, sendo previstos direitos e garantias que possibilitam a participação comunitária. Todavia, pairava ainda a ideia de proteção irrestrita por considera-los como inaptos de assumir as rédeas de suas vidas, havendo a presunção de que não possuíam o discernimento adequado para conduzir atos e negócios jurídicos. Entrementes, os termos empregados pelo ordenamento jurídico eram inapropriados e, consequentemente, estereotipados, o que acabava por ratificar a visão social vigente à época.
Nesse sentido, as pessoas com deficiência eram afastadas do exercício dos atos patrimoniais e existenciais. A partir das inovações legislativas promovidas no ordenamento pátrio, a incapacidade passa a ser exceção, visto que não eram todos os sujeitos com algum tipo de deficiência que deveriam ser afastados do exercício dos atos e negócios jurídicos por possuírem capacidade de autodeterminação. Apesar de trazer à lume que este indivíduo deveria passar por um processo judicial para ser afastado da condução de sua vida civil, permaneceu com o entendimento de que a privação seria tanto para os atos patrimoniais quanto para os existenciais.
Ora, no caso do sujeito que possuísse dificuldades para gerenciar seu patrimônio e plena consciência dos aspectos existenciais, o mesmo tratamento era conferido para aqueles sem condição alguma de discernir, o que servia como obstáculo para cumprir o direito fundamental da liberdade. Tal impedimento também servia como barreira para não alcançar a inclusão social plena.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência, seguindo os preceitos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promove importantes modificações na teoria das incapacidades adotadas pelo Código Civil brasileiro. Uma dessas alterações foi diretamente nos artigos 3º e 4º do Códex. Iniciando pelo rol das incapacidades relativas, a Lei nº 13.146/15 trouxe nova redação aos incisos II e III, retirando expressões estigmatizantes e especificando que a determinação da incapacidade parte da premissa de presença causa transitória ou permanente que impede a manifestação de vontade.
Por sua vez, a Lei nº 13.146/15 rompe totalmente com o rol da incapacidade absoluta, revogando todos os incisos do artigo 3º. Nesse entrelinho, a única hipótese remanescente para a incapacidade absoluta é a menoridade de 16 (dezesseis) anos, ou seja, persiste somente o critério etário como causa de incapacidade absoluta. Logo, a pessoa curatelada passa a ser considerada apenas como relativamente incapaz, o que traz impactos para os efeitos do negócio jurídico, conforme explicado anteriormente. Outro ponto importante a ressaltar é a inaplicabilidade da hipótese de impedimento da prescrição prevista no artigo 198, I, do Código Civil.
Todavia, a ruptura com a teoria das incapacidades trouxe mecanismos cruciais para conferir maior autonomia à pessoa com deficiência, especialmente por limitar a atuação do curador para os atos patrimoniais. Veja-se que o artigo 6º da Lei nº 13.146/15 reafirma que a presunção a capacidade plena é regra no ordenamento jurídico pátrio, independentemente de o sujeito ter ou não limitação física, sensorial, mental ou intelectual. Outrossim, o referido dispositivo normativo preceitua que os atos existenciais do grupo em foco devem ser praticados livremente por seus membros.
Por este modo, analisando os incisos do artigo 6º da norma retromencionada, tem-se a garantia da autonomia para a pessoa com deficiência se casar e/ou constituir união estável, exercer diretos sexuais e reprodutivos – estipulando que será conservada a sua fertilidade, inclusive trazendo expressamente que a esterilização compulsória é vedada –, dentre outros atos existenciais existentes. Ressalta-se que o Legislador prossegue ao delimitar o papel do curador apenas na administração dos atos patrimoniais, conforme será visto em postagem futura.
Isto posto, a pretensão com todas as mudanças promovidas na teoria das incapacidades adotada pelo Código Civil de 2002 foi para encorpar a luta pela inclusão social plena (emancipação) da pessoa com deficiência.
Notas e Referências
[1] Destaca-se que a prole eventual da pessoa existente (nondum conceptus), também pode titularizar situações jurídicas, conforme preceitua os artigos 1.799 e 1800 do Código Civil.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: introdução ao direito civil: teoria geral de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de direito civil: volume único. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.