Reflexões e desafios sobre a importância do capital social nas sociedades empresárias limitadas
Meus amigos(as), primeiramente, sejam muito bem vindos(as) à coluna vocacionada a criar conteúdos entendidos como relevantes sobre o Direito Societário brasileiro. Apresento-lhes, portanto, a Cum Grano Salis, cuja referência – o leitor já percebeu – é conseguir temperar posicionamentos já consolidados, ou não visitados, de há muito pela doutrina ou jurisprudência. Urge, mais do que nunca, refletir com vagar a respeito de temas de invulgar importância prática e teórica para o direito empresarial. Não nos limitaremos, todavia, a simplesmente questionar posições doutrinárias, senão a explorar e, tanto quanto possível, trazer análises do que está a ocorrer, atualmente, na praxis Brasileira e alhures, sem perder de vista a sólida visão teórica. Serão apontadas, quando assim se fizerem necessárias, soluções criativas aos problemas estudados. O leitor deverá nos conceder antecipadamente vênia pelo preço pago em função do pioneirismo no enfrentamento de determinadas matérias e decisões advindas de nossos Tribunais.
Sobre a metodologia empregada, traremos, não raro, é certo, referências de ordenamentos jurídicos alienígenas com objetivo de melhor auxiliar a reflexão sobre o caminho trilhado pela ordem jurídica pátria. A luz do que ocorre em ordenamentos jurídicos de outros Estados nos pode ser verdadeiramente útil. O estudo de decisões judiciais também faz parte do escopo de nossa coluna, sem embargo de não nos apegarmos, inevitavelmente, à conclusão delas. Quando assim procedermos, analisaremos com o merecido cuidado os fundamentos da decisão em exame. A crítica, quando merecida, será fundamentada e exposta a contento. O intuito, em resumo, embora demasiadamente desafiador, é conseguir refletir sobre questões atuais que envolvam a aplicação prática, em geral, do direito empresarial e, em particular, do direito societário.
Não é demais sublinhar que, a despeito de nossa exposta pretensão, a finalidade para a qual a coluna restou criada é mais fomentar discussões e menos apresentar soluções apriorísticas. Certamente, revisitaremos temas já “consolidados” pela doutrina, mas que, em que pese tal predicado, merecerão releitura à luz das práticas hodiernas dos variados segmentos econômicos. Outrossim, conhecimentos basilares sobre contabilidade, economia, história e sociologia, quando necessário, serão empregados para melhor elucidar e compreender as questões postas. Por isso, sabedores do risco a que estaremos sujeitos por tentar abordagem ampla e transversal, reiteramos escusa ao leitor caso a profundidade desejada não seja alcançada em razão dos limites propostos pela coluna.
Igualmente, não teremos compromisso em permanecer com as ideias expostas – e, eventualmente, defendidas com afinco – caso, posteriormente, se revelem falhas ou insuficientes à correta resolução técnica, e prática, dos problemas estudados. As críticas dos leitores, portanto, serão extremamente bem vindas para o contínuo aperfeiçoamento de nossa coluna.
Realizada essa breve introdução, passo a comentar sumariamente os contornos a que se deve conferir ao capital social nas sociedades empresárias limitadas em nossa modernidade.
Primeiramente, é preciso consignar que o estudo verticalizado sobre o capital social é negligenciado na graduação por nossas universidades; seja porque i) o conteúdo programático, dada a quantidade de matéria a ser estudada, não permite a profunda análise; seja porque ii) o tema ainda não recebeu o merecido destaque, em que pese a influência determinante, em muitos casos, nas operações empresariais. Quanto ao primeiro ponto, cuida-se de problema estrutural do ensino brasileiro, cuja solução foge aos limites da coluna. Quanto ao segundo ponto, teceremos nossos comentários a seguir.
Credita-se, inicialmente, à professora Marina Copola o mérito de bem sintetizar a problemática moderna sobre o capital social[1]. Inúmeros autores já enfrentaram o tema, mas a referência merece ser, desde logo, aplaudida. O capital social possui extrema relevância prática, conquanto o estudo, ordinariamente, possua maior destaque apenas quando analisado sob a ótica das Sociedades Anônimas. Com efeito, estamos a tratar, aqui, precipuamente, do capital social em sociedades empresárias limitadas – cuja opção pelos empresários brasileiros representa a esmagadora maioria dos casos. O assunto ora é esquecido, ora não é devidamente estudado pelos aplicadores do direito.
Diante desse contexto, lançaremos breve olhar sobre algumas premissas básicas a respeito do capital social. Ele deve, portanto, ser inicialmente entendido sob três conceitos: a) função de criar a personalidade jurídica; b) autonomia patrimonial; c) limitação da responsabilidade dos sócios. Os conceitos se correlacionam. A personalidade jurídica diversa da dos sócios é técnica eminentemente prática, por motivos históricos de segregação de riscos; a autonomia patrimonial é corolário da primeira premissa, enquanto que a responsabilidade limitada dos sócios impõe freio econômico aos eventuais insucessos da empresa. Obviamente, hoje, o panorama revela-se complexo em razão de engenhosas estruturas societárias piramidais, pelas quais uma sociedade controladora dita os rumos, ou influencia, nas deliberações da sociedade controlada. Todavia, é lícito asseverar, conforme ensina Copola, que subjacente a esse contexto empresarial reside, sempre, uma racionalidade econômica. Os credores, em síntese e em regra, não poderão avançar para alcançar o patrimônio dos sócios das sociedades. Diz-se em regra porquanto a desconsideração da personalidade jurídica – além de outras formas de responsabilidade ilimitada dos sócios – é assunto alheio ao abordado, embora façamos breve menção por respeito ao leitor.
Realmente, a segregação dos riscos financeiros impulsionou o desenvolvimento econômico com a geração de riquezas as mais diversas, uma vez que seria extremamente desincentivador a hipótese de o empreendimento levar à completa ruína econômica o empresário. Estamos a tratar, até aqui, de conceitos já consolidados historicamente. Seja como for, passou-se, pari passu, a conferir ao capital social maior atenção para fornecer garantia dos credores. Hoje, há diversos detalhes dos quais merecem ser anotados os seguintes: i) o valor integralizado não poderá ser devolvido ao sócio, exceto em caso excepcionais, à exemplo da liquidação; ii) os aportes devem ser tornados “públicos”[2]. Esse segundo ponto é o nó górdio de nossa reflexão. Percebam inicialmente que, com exceção às sociedades anônimas de capital aberto, as finanças e balanços patrimoniais são de conhecimento exclusivamente privado. Existem incontáveis razões para que assim seja. É preciso, no entanto, refletir a respeito.
Embora o capital social seja, como se disse, dado essencial para constituir a pessoa jurídica[3], é entendida hoje como, igualmente, garantia mínima aos credores – seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista da avaliação do empreendimento.
Quanto à função de garantia econômica, o capital social não se confunde com o patrimônio, porquanto esse é, essencialmente, mutável, ao passo que o capital social é fixo e representa o valor aportado pelo sócios à sociedade para desenvolver o objeto social. O patrimônio é o filme do qual o capital social é a fotografia. Na função de avaliação, serve o capital social essencialmente para bem informar aos credores, porque possibilita a análise do exato montante transferido à sociedade e a maneira pela qual se deu a integralização, para a consecução da atividade econômica (empresa).
No entanto, quando estamos a tratar de sociedade empresária limitada, o único dado público disponível ao credor é o capital social arquivado na junta comercial. Por outras palavras, não dispõe o credor de outros documentos públicos contábeis necessários à efetiva avaliação de garantia; não é conferido ao credor possibilidade de cruzar dados sobre a higidez patrimonial do devedor. A rigor, não tem o credor ciência se: i) efetivamente o capital integralizado ingressou às contas da sociedade; ii) a forma como o capital social é gerido; iii) a (i)evolução do capital social, isso é, o patrimônio da sociedade. A função de garantia, por assim dizer, não se verifica na prática para as sociedades empresárias.
O capital social, portanto, distancia-se de sua função garantidora porque ele representa apenas um momento econômico na linha do tempo da sociedade, sem que os credores saibam, efetivamente, como se dá a gestão patrimonial. O ponto é que, embora tenha se desenvolvido tese a respeito da garantia de avaliação, ela não se aplica às sociedades empresárias limitadas. Assim, a garantia aos credores de sociedades empresárias limitadas torna-se meramente teorética, pois expedientes ardilosos os mais diversos podem ser levados a efeito pelos administradores (sócios ou não) a fim de esvaziar patrimonialmente a sociedade empresária.
Ademais, nas sociedades empresárias limitadas, diferentemente do que ocorre nas Sociedades Anônimas, inexiste a garantia legal de realização de perícia – para atestar o real valor – quando a integralização se der mediante bem imóvel. Pode-se, portanto, por esse expediente, supervalorizar o bem a ser integralizado em detrimento da garantia formal aos credores. Ademais, a própria saída de valores da sociedade mediante falsos balanços internos ou transações por interposta pessoa correlacionada são formas relativamente fáceis de impedir os credores de realizarem o futuro crédito. Vejam que, afora as questões ilícitas retro mencionadas, pode-se, igualmente, esvaziar o patrimônio mediante planos agressivos de remuneração a funcionários, sejam eles estratégicos ao negócio ou não.
Em suma, nas sociedades empresárias não regidas pela Lei das SA, tanto o princípio da realidade quanto o da efetividade tornam-se bastante frágeis. São, por isso, passíveis de serem contornados com relativa facilidade em detrimento da garantia aos credores. É indispensável, de lege ferenda, a releitura sobre a garantia do capital social nas sociedades empresárias limitadas, a fim de possibilitar maiores vantagens aos credores em, pelo menos, determinadas hipóteses. Não obstante as considerações realizadas, e a considerar não ser esse o movimento legislativo dado nos últimos anos (vide a liberdade econômica), recomenda-se ao advogado e aos empresários, antes da celebração de contratos estratégicos, durante a tratativa com o parceiro econômico, o acesso a determinados documentos contábeis, com a finalidade de minorar as desvantagens próprias de quem não tem acesso público à (in)evolução patrimonial do contratado. Inclusão de cláusulas específicas se revelam indispensáveis à mingua da inexistência de proteção legislativa eficaz, nos casos da sociedade empresária limitada.
É certo que, dada a profundidade, o tema não comporta, jamais, a exaustiva análise, motivo pelo qual se aponta a indispensabilidade de reestudar o tema com vistas a viabilizar maiores garantias práticas aos credores de sociedades não regidas integral ou supletivamente pela lei 6.404/76.
Referências Bibliográficas:
[1] COPOLA, Marina Palma. O capital Social como Instrumento de Proteção dos credores na lei 6.404/1976 in Direito Societário Contemporâneo II, 2015, ed. Malheiros: São Paulo.
[2] Conferir, por todos, Alfredo Lamy Filho, Capital Social, in Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, Direito das Companhias.
[3] Jose Alexandre Tavares Guerreiro, Regime Jurídico do Capital Autorizado.