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Súmulas, teses e enunciados: breves reflexões sobre os perigos de nosso peculiar “sistema de precedentes”

Por Fábio Cardoso Machado*

 

Juízes deveriam apenas julgar casos.

Essa trivialidade, infelizmente, já não vale no Brasil. Aqui, em vez de apenas julgar casos, os juízes criam teses e enunciados, editam e revogam súmulas e “estruturam” políticas públicas, desestruturando, com isso, toda a ordem jurídica, causando grande instabilidade e colocando em perigo o Estado de Direito, a democracia e as nossas liberdades.

Escolhemos esse perigoso caminho quando da chamada Reforma do Poder Judiciário, em 2004, conferindo ao Supremo Tribunal Federal a prerrogativa de editar súmulas vinculantes. O objetivo era o de instituir mecanismos de uniformização da jurisprudência para combater a insegurança jurídica e a “multiplicação de processos sobre questão idêntica” (art. 103-A da Constituição Federal). De lá para cá temos insistido nesse caminho, conferindo um poder cada vez maior aos nossos juízes e concentrando esse poder, cada vez mais, nos tribunais superiores.

Não há, contudo, sinais de que a insegurança jurídica esteja a recuar. Pelo contrário. As súmulas, as teses e os enunciados de que se valem os tribunais se avolumam e alteram com vertiginosa velocidade e se tornaram mais um foco de grave instabilidade jurídica. Isso se deve, sobretudo, à possibilidade, que acabamos por admitir ao incorporar tais técnicas, da livre criação de normas pelos tribunais, pois é isso que são e significam as súmulas e afins: enunciações gerais e abstratas de exigências normativas que abstraem da problemática dos casos levados a julgamento e acabam, assim, por liberar os julgadores dos limites da lide, dando-lhes uma espécie de salvo-conduto para disporem acerca de quaisquer questões que considerem relevantes. Em vez de termos casos julgados no quadro mais estável de normas gerais e abstratas, nos deparamos com uma produção massificada de novas normas na mesma velocidade com que se apresentam novos casos e sem sequer respeitar os limites da problematicidade desses casos e das soluções que concretamente reclamam.

Um dos mais preocupantes resultados disso é o seguinte: os casos levados a julgamento em nossos tribunais foram reduzidos à condição de pretextos para a criação de novas normas, e com isso os direitos das partes atingidas pelas decisões passaram a subordinar-se às preferências legiferantes de legisladores de toga. As pessoas e os seus direitos foram, portanto, instrumentalizados, rebaixados a meios para a reconfiguração da ordem e a transformação do próprio sistema. A partir daí, o direito já não os protege, pois acabam ficando à mercê de magistrados dotados de superpoderes legislativos e da visão de cada um acerca de como o direito deveria ser para a conformação da sociedade a uma particular visão de como o próprio mundo deveria ser. Coisa de um tempo como o nosso, em que o que importa é “mudar o mundo”. Com isso, o juiz abandona a sua tarefa habitual e a sua importante e específica atribuição institucional, que é a de dar a cada um o que é seu.

O pretexto a que foi reduzido o caso permite que o juiz dê às partes o que ele próprio entende que deva ser dado naquelas circunstâncias, como forma de conformar o mundo ao ideal do julgador. Então não há mais direito antes e a determinar a solução do caso. O direito e os direitos das partes são funções de intenções político-ideológicas ou das contingentes e instáveis preferências subjetivas dos julgadores.

Só que tudo pode ainda piorar. Se não há direito antes do caso e se já não se trata, portanto, de dar a cada um o que é seu, os fins a que são instrumentalizadas as pessoas, os seus direitos e a própria juridicidade podem também ser livremente escolhidos pelos julgadores. E com os isso os objetivos mais altivos determinados pelas preferências ideológicas do julgador podem ser facilmente substituídos por propósitos mais rasteiros ou mesmo usados para camuflar a usurpação do poder judicial para a realização de finalidades estranhas e ainda mais contrárias à sua vocação, como o combate político e a perseguição de oponentes.

A maneira como os “precedentes” vêm sendo compreendidos entre nós só agrava isso tudo. Se juízes deveriam apenas julgar casos, precedentes deveriam ser apenas julgados que resolvem casos. Mas não. No Brasil, como se vê pela prática consolidada e pelo teor do art. 927 do CPC, os chamados “precedentes” tomam a forma de súmulas, enunciados abstratos, teses desconectadas dos casos e que extrapolam as questões suscitadas pelas partes. Daí todas as razões que recomendariam o respeito aos precedentes passam a ser mobilizadas para revigorar e reforçar a competência dos tribunais para a criação de novas normas, caso a caso, com todos os problemas que disso advêm. Em vez de preservar a autonomia do direito e atuar como uma força estabilizadora, esse nosso peculiar sistema de “precedentes”, com a adoção de uma espécie de stare decisis à brasileira, só encoraja ainda mais a “pretextualização” dos casos e a proliferação de decisões que mais contribuem para romper do que para preservar a ordem jurídica e a estrutura do nosso arranjo constitucional.

Em sentido próprio, precedentes são julgados que dão conta de problemas novos ou que consagram possíveis novas soluções para problemas antigos, mas sempre em resposta à problematicidade concreta de um caso e para resolvê-lo, ou seja, nos limites da lide e sem qualquer tipo de extrapolação. Em seu novo livro, a ser brevemente publicado, Saul Ferreira Alves nos dá uma excelente formulação dessa ideia: “concebe-se o precedente como a solução de um problema jurídico concreto, que se integra ao acervo de conhecimento jurídico e pode ser mobilizada pelo jurista, como unidade de experiência passada, para que sirva de indicativo daquilo ‘que é concretamente devido às partes no caso atual’”. Isso significa, por um lado, que o reconhecimento do caráter exemplar e da relevância judicativa dos precedentes tende a propiciar a assimilação, pelo sistema, de critérios que contribuem para o desenvolvimento do direito no quadro de uma ordem preexistente, que fica, dessa forma, preservada, apesar dos ajustes e enriquecimentos necessários, numa espécie de cuidadoso equilíbrio que conserva o sistema pela capacidade que ele assim mesmo adquire de se adaptar e dar conta de novos problemas. Por outro lado, a dinâmica própria de uma cultura de respeito aos precedentes submete os juízes a um proceder analógico que privilegia a perspectiva microscópica da problematicidade concreta do caso e força os juízes a se manterem no âmbito da concretude, que é o âmbito próprio de uma atividade judicativa e não legislativa. Então uma autêntica cultura de respeito aos precedentes não exige nem estimula os juízes a extrapolarem os limites da sua atribuição institucional, que deveria ser a de apenas julgar casos com base no direito, nos limites de cada lide e dando aquilo que é devido a cada um em contextos práticos concretamente circunscritos. Quer dizer que uma atitude de verdadeiro respeito aos precedentes, adequadamente compreendidos e em termos metodologicamente apropriados, contribui para reconduzir os juízes à sua função, ao passo que o salvo conduto para a livre criação de normas novas por recurso à técnica das súmulas, das teses e dos enunciados, lança os juízes para além dos domínios funcionais da jurisdição, esgarçando os limites a que tribunais deveriam estar sujeitos. Estamos, portanto, diante de um problema constitucional ou para o constitucionalismo, pois, a partir daí, temos um poder que já não pode ser contido, ou seja, um poder que tudo pode.

A limitação jurisdicional dos poderes do legislativo e do executivo, em cumprimento à Constituição e para protegê-la, não pode se dar por meio de um deslocamento daqueles poderes e de uma usurpação das respectivas competências. Do contrário, o resultado é uma concentração de poderes e competências ainda mais deletéria ao Estado de Direito e às liberdades constitucionais do que o seria a eventual extrapolação dos poderes e competências do legislativo e do executivo por esses próprios ramos do governo. Afinal, nesse caso o Poder Judiciário confere a si próprio uma espécie de monopólio da palavra final sobre todas as questões e passa a ter a última decisão sobre absolutamente tudo, subordinando as competências dos demais poderes a uma espécie de resíduo da sua competência total e restringindo as suas atribuições a uma possibilidade puramente contingente de fazer o que o Judiciário deixou por fazer, a seu exclusivo critério e apenas até que o faça, também a seu exclusivo critério e nos termos que preferir. Então o que precisamos ter claro é que a limitação dos poderes legislativo e judicial nessa nova (des)ordem “constitucional” se dá em detrimento do próprio constitucionalismo: quando toma para si todas as atribuições e concentra a palavra final sobre todas as questões, se desprendendo de todos os limites, restrições e controles, o Poder Judiciário se transforma, na prática, em uma espécie de poder supraconstitucional. E o órgão instalado na cúpula desse poder deixa de ser um tribunal constitucional, no sentido próprio do termo, para transformar-se em uma espécie de corte constituinte permanente que ainda legisla e executa, dissolvendo sob o seu peso e incontrastável poder a própria Constituição e a ordem constitucional.

E como o tema se tornou particularmente sensível, convém deixar bem claro: quando os tribunais recebem ou tomam para si o poder de criar normas em vez de apenas julgar casos, fica comprometida a limitação do poder que deveria ser propiciada pela separação institucional das funções de legislar e julgar. A própria juridicidade fica comprometida ou a perigo, pois a instância que deveria orientar-se exclusivamente à sua proteção deixa de lado as coisas do direito para se encarregar das coisas da política. Deixa então de haver Estado de Direito, um ordem constitucional de direito, pois quem deveria preservar a estrutura da ordem no contexto da qual se dá a ação política renuncia àquela tarefa para entrar no jogo político, subordinando a juridicidade, que é a substância daquela ordem, aos privilegiados objetivos políticos ou mesmo pessoais de quem decide. O direito deixa de ser uma ordem de validade normativa que vem antes e tem precedência sobre as preferências políticas e os interesses do momento. Se torna um instrumento de livre manipulação que já nada decide e apenas serve aos propósitos de quem decide.

E temos, ainda, um problema de justiça. Quando o caso vira pretexto para legislar, o juiz comete uma dupla injustiça: além de negar ao jurisdicionado o direito de ter o seu caso julgado por referência à juridicidade vigente, ainda nega à comunidade política o direito de tomar suas próprias decisões acerca das regras que devem ser impostas a todos em vista do seu bem comum. Então temos uma dupla degeneração: da juridicidade e da própria política. Se o Poder Judiciário deixa de ser o locus privilegiado da juridicidade e usurpa o direito da comunidade de dispor normativamente acerca das condições para a realização do seu bem comum, tanto o direito quanto a boa política ficam à deriva. Ninguém cuida do direito e quem deveria cuidar da política perde esse poder para quem deveria cuidar do direito. O próprio regime se altera. Deixa de ser democrático e de direito.

O excelente livro de Saul Ferreira Alves explora essa  difícil e importante problemática, na tentativa de mostrar que a livre criação de normas pelos tribunais, em vez de proteger a juridicidade, os nossos direitos e a Constituição, destrói tudo isso e leva consigo o próprio Estado de Direito. O autor se vale, muito apropriadamente, das categorias exploradas por Hayek, para sustentar, com toda razão, que a legitimação da criação de “teses” pelos tribunais tem contribuído decisivamente para a transformação do nosso kosmos – uma ordem comunitária subordinada ao e limitada pelo direito (nomos) – em uma espécie de taxis judicial: uma “organização” que subordina o direito e os nossos direitos e liberdades às finalidades privilegiadas por uns poucos mediante a criação e imposição arbitrária de certas “leis” (thesis) que, muitas vezes, não passam de diretrizes judiciárias que nada têm a ver com o verdadeiro direito ou, pelo menos, com o nosso direito. Saul Ferreira Alves vai buscar na tradição o melhor da política para fazer um contundente alerta: “a definição de ‘teses’ por órgãos jurisdicionais de cúpula não pode ser convertida em método de legiferação judiciária, pelo qual se busca a imposição arbitrária de programas políticos, sem o indispensável lastro democrático, escapando aos mecanismos de controle do poder, proporcionados pelo governo representativo, para usurpar as funções legislativa e executiva, as quais somente podem ser exercidas, via de regra, por representantes eleitos do povo, como determinam os arts. 1º, parágrafo único, e 2º da Constituição da República Federativa do Brasil”.

Muitos se preocupam com estas peculiaridades do “caso brasileiro”, em que, segundo Saul Ferreira Alves, “a prática do ativismo judicial é realizada para a promoção de um modelo de estado social, como única opção possível, com base no ‘senso comum teórico’ de que a Constituição Federal instituiu direitos sociais que precisam ser concretizados ao máximo, independentemente de qualquer deliberação política pelos poderes legislativo e executivo”. E é fundamental dizer que essa preocupação não traduz, necessariamente, nenhum desprezo pelo Poder Judiciário e, muito menos, pela Constituição, pela democracia ou por suas instituições. Pelo contrário! É que assim a judicatura se rebaixa. Abdica de uma tarefa que é ainda maior, mais transcendente, mais fundamental: a de conter o poder para preservar a estrutura da ordem e as liberdades que essa ordem consagra e protege. Saul Ferreira Alves deixa isso muito claro: “admitindo-se que a realização do direito pela jurisdição compõe a estrutura da realidade – e, portanto, é um dado inalterável por qualquer deliberação política ou engenhosidade constitucional –, se reconhece ao judiciário a missão de atuar na limitação dos poderes políticos, na contenção do arbítrio, no controle dos abusos, aí compreendidos excessos e desvios. Por outro lado, percebendo-se que a jurisdição, incumbida desse papel antipotestativo, é uma função jurídica, e não política, previne-se o cometimento do equívoco de simplesmente transferir o poder absoluto de um conjunto de agentes para outro: de corpos parlamentares ou de agências executivas para supremos tribunais ou para cortes constitucionais”.

E qual o caminho para a recondução das coisas à normalidade constitucional? O autor responde: “os órgãos jurisdicionais – mesmo os tribunais de superposição, aos quais compete a promoção e a proteção da unidade do direito – são limitados, no desempenho da função que lhes é própria, a decidirem as questões que, como resultado do contraditório, lhes tenham sido submetidas a julgamento, a elas oferecendo a solução consentânea, não com as preferências pessoais ou com os particulares critérios de justiça que o próprio julgador construa argumentativamente, mas com o material jurídico-normativo que subordina a atividade jurisdicional, aí incluída a legislação, mas também todo o acervo de critérios casuísticos que, prudencialmente, guiaram o julgamento de casos anteriores e que, ao longo do tempo, se acumularam e foram aperfeiçoados, de modo descentralizado, por um grande números de julgadores”. No final das contas, o argumento é simples: se o ativismo judicial é um problema, basta que os juízes voltem a julgar casos. E tendo presente que julgar casos é diferente de criar normas.

Talvez, ainda assim, o direito e as suas salvaguardas sejam incapazes de impor-se ao arbítrio e evitar a tirania. Pois talvez isso também requeira a restauração de uma atmosfera de respeito a tudo que tem valor e que teve esse valor comprovado pela experiência. De todo modo, nenhuma esperança na preservação dessas coisas pode mais haver quando negligenciamos a necessidade de salvar as amarras que contêm o poder e aceitamos, passivamente, que qualquer autoridade subordine o direito ao seu próprio juízo arbitrário e vá esgarçando, ao seu bel prazer, as limitações que deveriam nos proteger do abuso. O livro de Saul Ferreira Alves reflete o esforço de alguém que se recusa a aceitar isso tudo e nos oferece um caminho para reconduzir as coisas à normalidade. É, portanto, como um último grito da liberdade e do direito, na esperança de que ainda os possamos resgatar.

 

Notas:

* Fábio Cardoso Machado é Doutor em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra, fundador e professor da Academia Brasileira de Direito e Política e da Associação Brasileira de Direito e Política (ABDP), 2º Vice-Presidente do Instituto Eduardo Correia, membro da ABDPro e do IBGC, sócio de Andrade Maia Advogados e autor de “A autonomia do direito e os limites da jurisdição” e “O direito: entre o modelo político da lex e o paradigma sapiencial do ius” (ambos publicados pela Editora Thoth).

 

**O presente artigo foi escrito em atenção ao generoso convite do amigo Dr. Saul Ferreira Alves, a fim de prefaciar o seu novo livro “A antijuridicidade da legislação judiciária: uma noção de precedentes à luz da separação de poderes”, a ser brevemente publicado pela Livraria Resistência Cultural Editora.

 

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