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Teoria do fato jurídico e proteção de dados pessoais, parte 2: o suporte fático do tratamento de dados pessoais

A norma jurídica (regra jurídica[1]) estabelece, em si, a chamada hipótese de incidência – ou seja, aquele marcador que separa, dimensionalmente, o que é ou não relevante para o direito. A norma prepara, portanto, o contorno para a incidência instantânea no momento da composição dos suportes fáticos, o que, por sua vez, gerará fato jurídico. Pela ocasião do fato jurídico, teremos ou não eficácia jurídica, oportunizando o debate sobre a correta aplicação (conforme incidência) ou não.

Qual é o suporte fático descrito na Lei Geral de Proteção de Dados? Já vimos que o suporte fático-base descrito na LGPD é a existência de tratamento de dados pessoais. Há, assim, os efeitos oriundos do fato jurídico da personalidade, nos quais se encaixa o “direito”, do art. 17 e há o suporte fático do dado pessoal em uma relação jurídica de tratamento.

O tratamento de dados é uma atividade com dois aspectos:  é técnica e jurídica. Não é, necessariamente, computacional: afinal, há tratamento no meio físico, em papel, caneta, ou registro em película fotográfica ou outro meio equivalente. O meio, inclusive, expressa o dado no mundo, mas não é elemento para sua existência – diferente de outros fatos jurídicos (como na discussão sobre direitos autorais) que demandam uma expressão física-fenomênica.

Através do tratamento tem-se o apontamento sobre a existência de uma relação jurídica necessária, ainda que pareça subjacente, na forma “aRb”: (a) o titular de dados (pessoa natural), mais relação (pelo tratamento), mais (b) o agente de tratamento (pessoa natural ou jurídica).

O dado pessoal, por outro lado e isoladamente considerado, é fático e não uma instância meramente jurídica – no sentido de criado pelo direito. Exsurge da própria personalidade, como um de seus aspectos – isso significa dizer que o direito (efeito) dele decorrente é, ontogeneticamente, o derramamento da personalidade no tecido da vida. Em termos de energia social, o advento da personalidade é plus que altera a trama social e, a partir do seu advento, se difrata em diferentes aspectos, ou seja, se parte em pedaços com mesma origem.

O dado pessoal já surge com a personalidade. Esse reconhecimento aparece em BIONI (2020, p. 53-54): “Nesse sentido, os direitos da personalidade não se limitam àquelas situações previstas no CC, sendo o seu rol numerus apertus (rol aberto). Eles não se exaurem naquelas espécies enumeradas nos arts. 11 a 21 do CC, o que abre caminho para o reconhecimento da proteção dos dados pessoais como um novo direito da personalidade”.

Há a personalidade como fato, do qual dimana energia e suficiência do suporte fático, o que gera a personalidade jurídica e, por fim, os efeitos (direitos de/da personalidade) de pessoa natural.  Por isso há de se precisar a afirmação de Bioni (2020, p. 54) quando aponta uma distinção entre personalidade adjetivada (direitos de personalidade) e personalidade substantivada (personalidade jurídica).

De onde nasce a aptidão de um sujeito para ter titular de direitos e deveres, do mesmo acaso fenomênico, também dimanam os direitos e a proteção da pessoa humana – não há, portanto, personalidade sem a gênese fática que altere a realidade. Causa eficaz real, causa eficaz jurídica.

Há relação intrínseca entre a personalidade como fato do mundo, fato bruto, que marca e diferencia o ser pessoa humana, da personalidade jurídica (a entrada desse suporte fático no mundo jurídico) e os direitos de personalidade. Como veremos: há verdadeira consumação da gênese.

O direito (ou difração, no plural) de personalidade é absoluto, sendo o dado pessoal e a proteção ao mesmo um desdobramento decorrente. Se assim é, o direito à proteção de dados se opõe ao alter, antes mesmo da relação de tratamento. Há, portanto, um prius que a Lei Geral de Proteção de Dados não alcança diretamente e que, topologicamente, foi bem posicionado através da Emenda Constitucional nº 115/2022.

Ademais, não há relação jurídica entre o titular e o dado pessoal (a querela antiga da relação jurídica entre pessoa e coisa), o dado pessoal já é projeção da personalidade, consubstanciada num suporte físico ou eletrônico! Por outro lado, como bem jurídico (coisa), o dado pessoal se insere de forma mediata numa relação imediata entre pessoas[2].

E o dado pessoal anonimizado? Deixa de ser considerado pessoal. O anônimo absoluto – refletido na lei como o anônimo no estado da arte da técnica aplicada – é o “não-pessoal”. Há figura de linguagem (uma perífrase convertida em catacrese): não é o “sem nome”, é o sem pessoalidade.

Não é, também, o sem “personalidade”, pois o nome é uma das difratações da personalidade. O direito ao nome é efeito da personalidade – Pontes de Miranda diz que ele “irradia-se” da personalidade, como uma das formas do “direito à identidade pessoal”.

Da personalidade difrata-se o direito à identidade, que se concretiza, juridicamente, em um nome (exaurindo o exercício do direito pela imposição ou autonomeação). Negar o nome (“anonimizar”) é destruir um dos alicerces da identidade, como concebido pela cultura humana.

Além do nome, a identidade também se revela nas digitais, em fotos e vídeos, ou seja, nos dados “biométricos” (MIRANDA, 1956,T. VII, p. 68). O direito à proteção dos dados pessoais é difratação irmã da que gerou o direito à identidade, e tendo a mesma origem, nutrem o mesmo fenômeno: a personalidade[3].

E onde entra o suporte fático? O suporte fático, descrito na primeira parte desta série, é a “soma do essencial” (MIRANDA, 1954, p. 92). De acordo com Pontes de Miranda, o suporte fático pode ser rígido, ou seja indeformável, ou deformável: num ou noutro caso há um conjunto central, um cerne nuclear, ao qual se demarcam os elementos mínimos de incidência, e portanto de existência, a data de direitos e elementos de intertemporalidade.

Podem ocorrer incidência deficitária, ou seja, elementos cerne presentes, mas com algum defeito. Pode ocorrer incidência suficiente, portanto, todos os elementos cerne, sem defeitos. Pode ocorrer incidência suficiente com elementos completantes e, além deles, complementares, ou seja, núcleo (e completantes) + complementares = fato jurídico suficiente e perfeito em requisitos de validade e eficácia[4]. Não pode ocorrer incidência com suporte fático insuficiente.

Os elementos do cerne do suporte fático de proteção de dados no brasil é composto por: tratamento (num dos tipos legais, não exaurientes[5]) + dado pessoal exteriorizado + ente personalizado (natural ou jurídico).

O tratamento, sem o dado pessoal, é de suporte fático insuficiente, para fins de dado pessoal – não incide a LGPD. Isso não quer dizer que não possa compor suporte fático (tratamento + dado não pessoal) para outros fins: a lei de acesso à informação é exemplo de dados não pessoais em situação de tratamento. No mais das vezes, não há separação no caso concreto: é improvável que não tenhamos misturados com uma massa de dados, dados pessoais.

Por fim, diante do texto da lei, há norma que impede a incidência da proteção de dados, são as regras pré-juridicizantes[6] que atuam para impedir a incidência da norma geral. Elas são tantas quantas forem as exceções.

Na LGPD, são as regras do art. 4º: realizado por pessoa natural para fins exclusivamente particulares e não econômicos;  realizado para fins exclusivamente: a) jornalístico e artísticos; ou b) acadêmicos, aplicando-se a esta hipótese os arts. 7º e 11 desta Lei; realizado para fins exclusivos de: a) segurança pública; b) defesa nacional; c) segurança do Estado; ou d) atividades de investigação e repressão de infrações penais; ou provenientes de fora do território nacional e que não sejam objeto de comunicação, uso compartilhado de dados com agentes de tratamento brasileiros ou objeto de transferência internacional de dados com outro país que não o de proveniência, desde que o país de proveniência proporcione grau de proteção de dados pessoais adequado ao previsto nesta Lei.

Estes casos, portanto, não são de existência ou inexistência, mas de uma regra que impede que outra incida. Antes da LGPD incidir, há um óbice, cujo suporte fático está no “fim”, ou, tecnicamente dizendo “nos usos”.

Há dado pessoal fora do tratamento? Há tratamento por ente despersonalizado? Qual a relação entre o cerne do suporte fático e a razão de incidência acontecer dentro do território nacional – isso se desdobraria no debate sobre transferência internacional de dados e direito internacional privado? São novas questões que surgem e que, entretanto, devem ser levadas ao próximo número desta série.

 

Referências e Notas:

BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento.  2. ed.  Rio de Janeiro: Forense, 2020

MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. Plano da existência. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo VII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1956.

[1] “A regra jurídica foi a criação mais eficiente do homem para submeter o mundo social e, pois, os homens, às mesmas ordenação e coordenação, a que ele, como parte do mundo físico, se submete. Mais eficiente, exatamente porque foi a técnica que mais perto copiou a mecânica das leis físicas […]” (MIRANDA, 1954, T. I, p. 8-9).

[2] “Relação jurídica é a relação inter-humana, a que a regra jurídica, incidindo sobre os fatos, torna jurídica. De ordinário, está nesses fatos, como componente, ou como um dos elementos componentes do suporte fáctico”. (MIRANDA, T. I, 1954, p. 117).

[3] Em certo sentido, os “direitos de personalidade” são a consumação final (telos) da origem, a personalidade fática (arché). O fato “personalidade” desenvolve-se, continuamente, e não como “fim da linha”, pela sua consumação em direitos de personalidade.

[4] “Os elementos nucleares do suporte fáctico tem sua influência diretamente sobre a existência do fato jurídico, de modo que a sua falta não permite que se considerem os fatos concretizados como suporte fáctico suficiente à incidência da norma jurídica. […] Da mesma maneira ocorre se a falta é de elemento completante. […] Diferentemente dos elementos completantes, os complementares não integram o núcleo do suporte fáctico, apenas o complementam (não completam) e se referem, exclusivamente, à perfeição de seus elementos.” (MELLO, 2017, 96, passim)

[5] A LGPD diz que tratamento, no Brasil, é “toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração”. Como desdobramento lógico da versão expansionista de dados pessoais, adotada na lei, entende-se ser o rol meramente exemplificativo.

[6] “As regras jurídicas pré-juridicizantes preocupam-se com a composição dos suportes fácticos como causadores de existência dos fatos jurídicos, e de ordinário, para dizerem que os suportes fáticos não bastam: são, portanto, regras sobre não existência dos fatos jurídicos; incidem sobre o que está composto, para repeli-lo do mundo jurídico” (MIRANDA, 1954, T. I, p. 75).

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André Fernandes
Advogado. Head de Direito Digital no Buonora & Oliveira Advocacia. Mestre em direito no Programa de Pós-graduação em Direito - PPGD/UFPE, linha Teoria da Decisão Jurídica. Graduado em direito pela Faculdade de Direito do Recife - UFPE. Fundador do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec). Professor Universitário. Membro em Grupos de Trabalho de Especialistas sobre Responsabilidade Civil na Internet (GTRI/Internet Society) e Inteligência Artificial e Governança (Governo Federal/CGI.br). Ex-Presidente da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Pesquisa: 1) estruturas históricas acerca da automação do trabalho; 2) os modelos históricos de responsabilização civil e as legislações atuais sobre intermediários tecnológicos; 3) processos decisórios da técnica multissetorial no ambiente da governança da Internet e no âmbito institucional (público e privado). Estuda a vida e obra de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda.

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