Teoria Processual como Arte Literária
Por Eduardo José da Fonseca Costa*
«La fantasia tanto è più robusta quanto è più debole il raziocinio»
(Giambattista Vico)
À Professora
Libertad Hernandes Campos Maria,
Onde quer que esteja.
I
Tendo sido lançada por Wilhelm Dilthey [1833-1911], a ideia de Weltanschauung se tornou uma categoria fundamental para a compreensão sociológico-cultural das chamadas «ciências humanas» ou «ciências do espírito» [Geisteswissenschaften]. A palavra alemã é composta de Welt (mundo) + Anschauung (visão, contemplação, intuição, ponto de vista, concepção, convicção). Equivale, destarte, a termos como cosmovisão, cosmocopia, mundividência, visão de mundo, concepção de mundo. De ordinário, significa: 1) uma unidade orgânica omniabrangente; 2) de valores, impressões, opiniões, sentimentos e concepções intuitivas; 3) pré-lógicas e, portanto, anteriores a qualquer tipo de reflexão teórica; 4) que um indivíduo ou uma comunidade têm; 5) acerca do mundo em que se vive; 6) em um determinado momento histórico-social. Por esse ângulo, o conceito de Weltanschauung vai de encontro à visão comteano-positivista sobre as ciências humanas (nelas compreendidas tanto as humanidades quanto as ciências sociais); afinal, dentro de um determinado contexto espaço-temporal, haveria em comum entre elas a mesma experiência vivencial e a prevalência dos mesmos valores estruturantes, que escapam a toda e qualquer determinação objetivo-racional. Enfim, todas as ciências humanas cultivadas em um específico momento histórico-social seriam permeadas pela mesma «alma distintiva», pelo mesmo «clima cultural e intelectual», pela mesma «atmosfera do período», pelo mesmo Zeitgeist. Logo, um mesmo «espírito de época» sempre entrecruzaria, ao mesmo tempo, a religião, a moral, o direito, a política, a economia, a arte, a moda, a ciência, a educação, a linguagem, o militarismo etc. Quando se comparam entre si os diferentes movimentos artístico-literários, por exemplo, na verdade entre si se comparam as diferentes maneiras de se compreenderem Deus, o mundo e o homem nele inserido, ou seja, as diferentes Weltanschauungen. A visão de mundo árcade estaria impregnada não somente na literatura, como também na religião, na moral, no direito, na política, na economia, na moda, na ciência, na educação, na linguagem e no militarismo da época. Da mesma forma se daria com as visões socioculturais barroca, romântica, realista, naturalista, parnasiana, simbolista, modernista e pós-modernista.
Se assim é, então os modos barroco, árcade, romântico, realista, naturalista, parnasiano, simbolista, modernista e pós-modernista de se fazer literatura estão presentes outrossim nas teorias do direito. E efetivamente estão. No âmbito dos negócios jurídicos, por exemplo, é inegável que a teoria da vontade [Willenstheorie] obedece ao espírito romântico, a teoria da declaração [Erklärungstheorie] ao espírito parnasiano e a teoria do comportamento [Verhaltenstheorie] ao espírito realista. Na mesma esteira, no âmbito do processo, é possível falar-se em Barroco Processual, Arcadismo Processual, Romantismo Processual, Naturalismo Processual, Parnasianismo Processual, Simbolismo Processual, Modernismo Processual e Pós-Modernismo Processual. À vista disso, existe um modelo barroco de juiz, um modelo árcade de juiz, um modelo romântico de juiz, um modelo naturalista de juiz, um modelo parnasiano de juiz, um modelo simbolista de juiz, um modelo moderno de juiz e um modelo pós-moderno de juiz. Em síntese, os modelos de juiz obedecem a uma tipologia «literário-processual». É óbvio que a ciência processual stricto sensu não se reduz a um mero produto de cultura, determinado por cosmovisões e espíritos de época; caso contrário, não possuiria cientificidade genuína. Sem embargo, a culturalidade da processualística é um dado que transparece e, por isso, ela se impregna de elementos pré-teóricos. Em maior ou menor medida, todo modelo científico-processual reflete o espírito de um tempo. Pudera: a processualística é feita por processualistas e os processualistas são homens, que carregam consigo valores, impressões, opiniões, sentimentos e concepções intuitivas, todos eles historicamente condicionados. A objetividade pura da ciência (processual) é um ideal e os ideais de pureza estão sempre condenados a algum grau de malogro. Esse malogro se exacerba na Contemporaneidade, marcada pela falta deliberada de esforço de autocontenção por um mínimo objetivo. Aliás, esse tipo de lassidão é a atitude típica de uma civilização sem propósito existencial. No final das contas, poste-se ou não, todo processualista contemporâneo acaba por ser um tanto cientista e um tanto literato, um tanto lógico e um tanto pré-lógico, um tanto descobridor e um tanto criador, um tanto objetivo e um tanto subjetivo. Sua atividade ocupacional acaba por transitar entre a ἀλήθεια e a ποίησις, o λόγος e o πάθος, a scientia e a ars, o externo e o interno, a realidade e o imaginário.
II
O Arcadismo cultua os valores da Antiguidade Clássica. Não é de se estranhar, portanto, que o Arcadismo Processual renda culto ao processualismo romano em geral e ao ordo iudiciorum privatorum em particular. Desconfia-se da capacidade hodierna de resolver adequadamente os conflitos sociais mediante uma engenharia legislativo-procedimental sofisticada. O modelo ideal de juiz árcade é o «homem mediano» da aurea mediocritas, tão bem representado pela figura clássica do iudex privatus (um particular leigo escolhido de comum acordo pelas partes; quando não concordavam sobre um juiz em especial, ele era escolhido desde uma lista preparada pelo pretor). Trata-se de um juiz esporádico, infrequente, não profissional, rústico, que não julga em série, que não integra uma burocracia judiciária e que necessita de um ócio produtivo entre uma sentença e outra para recuperar o pleno domínio do seu «senso de equidade», da sua «prudência», do seu «bom senso». É como um pastor que de quando em quando abandona o rebanho na colina para resolver ao ar livre as contendas dos seus iguais. Não sem razão a sua sentença se verte sempre em uma linguagem literal, objetiva, clara, agrária, sem adornos nem excessos. É a linguagem simples do cidadão comum rural. Nessa perspectiva, o juiz privado leigo do Arcadismo Processual não se assemelha em nada ao juiz público dos grandes centros urbanos, bacharel em direito e aprovado em concurso de provas e títulos, que dispõe de um staff assessorial para sentenciar em linha de produção fordista. Não sendo um especialista em direito, o juiz neoclássico conta só com a sua racionalidade natural, com a sua capacidade pastoril inata de depreender o «justo objetivo» da «natureza das coisas». A propósito, essa natureza é caracterizada por uma regularidade «bela» e «sábia», como bem exprimem os versos de Tomás Antônio Gonzaga: «Um pouco meditemos/Na regular beleza,/Que em tudo quanto vive nos descobre/A sábia natureza».
Para que essa racionalidade campesina se desenvolva da maneira mais natural possível, com «beleza» e «sabedoria», é necessário que o processamento e o julgamento da causa estejam concentrados em uma única audiência, que aproveite ao máximo o aqui-e-agora (carpe diem), levando às últimas consequências a oralidade e, dessa forma, a imediatidade e a identifica física do juiz. Sendo assim, supervalorizam-se os procedimentos sumaríssimos, simplificados, desprovidos de qualquer complexidade. Mais: supervalorizam-se as decisões de primeira instância, pois que proferidas por quem teve o contato primeiro e direto com as partes e com os meios de prova recém-produzidos. Afinal, segundo o pensamento árcade, foi o processo romano que descobriu que o direito nasce concretamente dos fatos, não abstratamente de direitos subjetivos existentes nas leis; logo, «examinando o conjunto dos fatos, determinando-lhes o sentido perante o direito – não de cada um deles separadamente, mas de seu conjunto -, é que o juiz os qualificará juridicamente, reconhecendo a incidência, sobre eles, de um certo preceito de lei», motivo por que «o julgador jamais terá resposta à indagação sobre a aplicação de um dado preceito antes que se lhe dê a mais completa indicação dos fatos e de duas circunstâncias, a respeito dos quais se questiona a incidência da norma invocada» (SILVA, Ovídio A. Baptista da. A jurisdictio romana e a jurisdição moderna. Jurisdição, direito material e processo. RJ: Forense, 2008, p. 277). Daí por que a recorribilidade e a rescindibilidade são um código fraco dentro da cosmovisão árcade-processual. Aliás, trata-se de uma doutrina marcada pelos signos da informalidade e da celeridade (inutilia truncat) como antípodas de todo e qualquer preciosismo técnico-processual, que tem como clímax representativo os chamados «juizados especiais» ou «juizados de pequenas causas». Eles constituem o «lugar agradável» (locus amœnus) do Poder Judiciário, onde impera a pacificação dos conflitos sociais e, diante isso, onde a mediação e a conciliação ocupam um papel central (obs.: a origem da conciliação é canônica, não romana, nada obstante se alinhe ao ethos arcadiano). Contudo, para que esse locus pacifista se justifique, ele necessita de um pressuposto antropológico: o personagem iluminista do «bom litigante», que é uma das facetas do bon savage de Jean-Jacques Rousseau. Ao conciliador e ao mediador cabe extrair do «bom litigante» aquilo que a vida capitalista moderna lhes tenta roubar todos os dias: a capacidade bucólica, pura, ingênua, cândida e inocente de renunciar a atitudes belicosas e competitivas para chegar a soluções consensuais e cooperativas. Enfim, ao conciliador e ao mediador cabe despertar no homem atual o homo reciprocans dos tempos áureos da vida campestre.
III
O Romantismo Processual apregoa os estilos, os usos, os costumes e as boas práticas do foro como revelações das forças intelectuais da magistratura nacional e como fonte viva da consciência popular [Volkgeist]. O direito processual é produto de uma cultura autêntica, orgânica, holística, autotélica, comunitária e memorialista, que rompe com os espartilhos das formas fixas e regulares, passando a assumir-se fluido e relativo. Ante a «crise de representatividade democrático-parlamentar» e movido por um egocentrismo profundo, o juiz romântico ignora todo e qualquer determinante externo constitucional-legislativo e age apenas pelos seus próprios impulsos justiceiros. Ele é uma espécie de «juiz-antena», sensível para captar «do Povo a sublime voz» (Castro Alves), a «voz das ruas», o «direito achado no lixo». Para agir em nome do povo, para o povo e pelo povo, sem jamais receber um único voto em processo eleitoral, ele confere a si poderes amplos e irrestritos, sempre a serviço de uma decantada «democracia substancial». Esses poderes lhe permitem, por exemplo: introduzir na discussão fatos não alegados; invocar fundamentos não suscitados; conceder tutela jurisdicional não requerida; produzir prova de ofício, dinamizar a distribuição dos ônus probatórios; valorar livremente a prova; flexibilizar o procedimento legal padrão; relativizar a coisa julgada; fazer justiça em lugar de ser imparcial (aliás, para o juiz romântico, a imparcialidade é um estado de ânimo frio, indiferente e, dessa maneira, impossível); criar medidas executivas atípicas; usurpar competências legislativa, administrativa e governamental; ignorar o sentido técnico dos vocábulos utilizados nos textos jurídico-normativos. Nesse sentido, ressuscita-se do passado histórico um ethos judicial mais espontâneo e informal, que caracterizava, por exemplo, a figura luso-medieval do alvazir ou alvazil (juiz da terra anualmente eleito entre os vizinhos do próprio lugar, que era mais afeito ao direito costumeiro visigótico do que ao direito reinol de inspiração romano-canônica). Combate-se, desse jeito, a razão normativista desencantada, a qual deve ser destruída [Die Zerstörung der normativen Vernunft].
Para tanto, a ordenança processual é mergulhada na moral cristã pátria e as suas regras são revistas à luz dessa moralidade. A revisão judicial do direito processual editado pelo legislador se faz mediante a invocação de princípios, muitos deles inventados ex nihilo: atuando como um demiurgo, o juiz romântico modifica a regra legal expressa que entende concretizar insatisfatoriamente um princípio, extingue a regra legal expressa que entende violar um princípio, ou esquematiza uma regra até então inexistente, que entende concretizar satisfatoriamente um princípio, ainda que ela já haja sido rejeitada em processo legislativo regular (algo similar, portanto, ao que faziam os tribunais do III Reich quando invocavam o «princípio do Führer» para rescrever leis tal como Hitler as escreveria). Tudo se passa como se o princípio fosse uma «supernorma». Desse modo, a razão jurídica processual é dissolvida em uma razão ética forense. Em outras palavras, da moral cristã se deriva uma moral social; da moral social, uma moral jurídica; da moral jurídica, uma moral «processual» [rectius: jurisdicional] (obs.: o pós-positivismo jusmoralista é uma intrusão romântico-social na teoria do direito, que tem fortes afinidades eletivas com as utopias sociais igualitárias e renovadoras). Tudo isso leva o juiz romântico a processar e julgar a causa segundo os seus sentimentos de «justiça», «equidade» ou qualquer outra dimensão de moralidade, embora sem teorização mínima sobre o que seja o «justo», o «equânime» etc. É como sustenta Cândido Rangel Dinamarco, para quem o juiz deve valorar «situações e fatos trazidos a julgamento de acordo com os reais sentimentos de justiça correntes na sociedade de que faz parte e dos quais é legítimo canal de comunicação com as situações concretas deduzidas em juízo» (A instrumentalidade do processo. 9. ed. SP: Malheiros, 2001, p. 320). Portanto, esse juiz processa e julga parceladamente, sem que se consiga um controle objetivo-racional sobre cada etapa do seu «raciocínio». Sendo assim, a sua sentença equivale a um genuíno «suspiro poético», «sem métrica nem rima», fruto de um «eu-lírico» judiciocêntrico, subjetivista e irrealista. Ela é proferida por um «defensor de todos os desamparados» [Pv 31:8], um «Parsifal de toga», um «herói» fantasticamente idealizado, que de tempos em tempos desce dos cimos montanhosos até a «assembleia dos guerreiros» para distribuir justiça aos seus colegionários. Daí por que o lema romântico-processual é este: uma libertação emotiva e colorida do juiz-cavaleiro do Romantismo Processual, que o desprenda de toda e qualquer amarra convencional objetiva e objetivante [libre recherché du droit processuel].
IV
O Realismo Processual é a negação perfeita do irracionalismo romântico-processual. É o antirromantismo par excellence. Enxerga o direito em geral e o direito processual em particular como um fato social. Sendo assim, o direito processual deve enquadrar-se no minucioso determinismo das leis causais e probabilísticas que lhe estabelece a Sociologia. Isso faz do juiz realista um sociólogo especializado, um árbitro dessacralizado, imbuído de rigoroso espírito positivista, que sempre procede com neutralidade axiológica e, por conseguinte, com a mais absoluta objetividade (obs.: a objetividade do juiz se chama imparcialidade; a imparcialidade do cientista, objetividade). Nos processamentos e julgamentos que lhe competem, o juiz-sociólogo do Realismo Processual deve descobrir de maneira analítico-científica a ocorrência fidedigna dos fatos relevantes para o deslinde da causa e dissecar-lhes os conteúdos e as estruturas; para tanto, deve versar-se tanto em teoria epistemológica quanto em prática investigativo-probatória. Como se não bastasse, o mesmo aporte analítico-científico deve servir-lhe para descobrir e dissecar as normas aplicáveis in casu, sem que recaia sobre elas qualquer contaminação psíquico-voluntarista ou idealização metafísico-sobrenatural; afinal de contas, a norma jurídica é tão factual quanto os fatos que ela juridiciza e também ela há de ser sociologicamente investigada. Daí por que a validade da norma jurídica é empírico-social: vale apenas se é efetiva, se está impregnada na usança social. Leis processuais que não adiram à realidade social não despertam a obediência da comunidade forense, reduzindo-se a meras palavras ocas e vazias. Nessa lógica, as normas jurídicas não são reveladas por um caminho hermenêutico, a partir dos dispositivos que constam dos códigos e das leis procedimentais extravagantes [= law in books; direito como texto], mas por uma análise pragmática, a partir do modo como esses dispositivos legais são vivenciados no quotidiano forense [= law in action; direito como comportamento] (o que faz da jurisprudência dos tribunais uma fonte móvel e primacial de revelação do direito processual, o qual se encontra em constante transformação). Por isso, o juiz realista tem poderes de mais ou de menos a depender dos «ditames da realidade social», pois que o direito em geral e o direito processual em particular são partes dela. Em última instância, é ela – a realidade social – que determina o que o juiz pode e não pode fazer.
No entanto, mesmo quando porventura são conferidos ao juiz amplos poderes (ex.: criação de concessão de tutela jurisdicional sem requerimento, medidas executivas atípicas, flexibilização do procedimento legal padrão, dinamização dos ônus probatórios, produção probatória de ofício, valoração da prova), não são eles exercidos discricionariamente. Por intermédio da rigidez e da precisão do método científico, o juiz-sociólogo do Realismo Processual – um homem franciscano, comum, humilde e disciplinado, muito distante da idealização romântica – é capaz de chegar controladamente à fórmula mais acertada para atender às vicissitudes de cada caso concreto e às particularidades do direito material aplicável. Como recomendava Pontes de Miranda, ao juiz não basta «o chamado senso jurídico, que é amplo surrão para todas as fraquezas de equidade e todos os desacertos inseridos em textos. Não é cientista quem se contenta com o exercício espontâneo e ingênuo da vocação, mais ou menos cultivada, para acarear artigos e parágrafos. É preciso o método, a observação, a experiência, a educação psicológica indispensável para pesquisar a verdade, ainda depois de firmada a opinião, e alimentar a dúvida, sempre que se trata de solução adquirida sem os seguros guias da análise científica» (Sistema de ciência positiva do direito. I. 3. 21). Essa postura cientificista – tendente à observação, à descrição, à pormenorização, à ordenação, à mensuração e à quantificação – confere ao magistrado aquela ironia fina, fria, lúcida, trágica e quase impessoal que caracteriza o machadiano Brás Cubas: «Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis, nada menos». Não por outro motivo, as sentenças do juiz realista são sempre vertidas em linguagem culta, clara, direta, minuciosa e estilizada, escrita com proporção e elegância, sem envolvimento apaixonado com o caso sob apreciação. É como um cientista que faz justiça em laboratório usando microscópio, micropipeta e outros equipamentos de alta precisão. Ao fim e ao cabo, o lema realístico-processual é este: o aprisionamento árido do juiz às amarras do método, da disciplina intelectual, dos procedimentos objetivo-racionais, a fim de que lhe seja possível desvelar o «direito vivo» [Lebensrecht] e, à vista disso, aplicá-lo na resolução dos conflitos sub examine de modo desinteressado, impassível, imperturbável.
V
O Naturalismo Processual enxerga as relações sociais em geral e as relações jurídicas em especial como relações abusivas e sombrias de poder. De um lado, está o titular de um poder fático ou jurídico, que tende a exercitá-lo com excesso ou desvio, assolando a parte contrária [= parte opressora]; de outro, está o titular de um estado fático ou jurídico de sujeição, que tende a ser explorado, desumanizado, reificado [= parte oprimida]. Mesmo que sob o ponto de vista jurídico-formal não se esteja diante de uma relação poder-sujeição, ao menos sob o ponto de vista fático-material esse tipo de relação bruta e sórdida sempre está subjacente como um reflexo do transtornado modo de produção capitalista. Como se nota, trata-se de uma espécie de «darwinismo sócio-jurídico». Destarte, quando lhe compete resolver uma relação jurídica de direito material controvertida, deve o juiz desvelar com obstinação as teias ocultas de poder que se emaranham na anatomia dessa relação, identificando nela «a» vítima, isto é, a parte mais fraca, que não tem controle sobre as forças internas e externas que lhe determinam o estado de hipossuficiência. Nesse sentido, o juiz naturalista exerce no processo uma tarefa desmistificadora, desformalizadora e descoisificadora. Para tanto, desempenha o seu ofício crítico-social valendo-se da lupa do predatismo e, portanto, promovendo uma microanálise sociobiológica das relações jurídicas de direito material que lhe são submetidas e uma macroanálise socioecológica dos processos fáticos que as estruturam. São essas análises marginais que, acopladas ao direito probatório, permitem ao juiz desvelar a «verdade material» não dita por trás da «verdade formal» dita nos autos. Assim como os literatos expõem o conflito animalesco entre os ditames da moral vigente e os instintos sexuais e as taras patológicas, o juiz naturalista encara a explosividade das relações entre o direito vencedor da classe dominante e o direito vencido da classe marginalizada. O seu espírito se bem esclarece nas palavras de Aloísio Azevedo: «E André, tonto e ofegante, sentia vertigem quando seus olhos topavam as trêmulas e agitadas carnes da histérica, completamente desvertidas nas alucinações do espasmo».
Ao juiz-biólogo do Naturalismo Processual cabe a descoberta zoomórfica de quem é o litigante-predador e de quem é o litigante-presa; a partir dessa descoberta, pode empregar os seus amplos poderes instrumentais em benefício do «elo mais fraco» da relação litigiosa. Em favor da parte mais desfavorecida o juiz pode de ofício, v. g., introduzir fato que ela não alegou, invocar fundamento que ela não suscitou, conceder tutela jurisdicional que ela não pediu, produzir prova que ela não requereu, livrá-la de ônus probatório do qual ela não pode desincumbir-se, permitir a ela que rediscuta causa já julgada por sentença definitiva irrecorrível, usurpar competências extrajurisdicionais que jamais lhe foram outorgadas, prostituir o sentido das palavras de que se compõem os textos normativos. Em conclusão: o juiz pode agir com «parcialidade positiva» pro misero. De acordo com Artur César de Souza, a venda da deusa Témis «necessita ser retirada para que se possa reconhecer no processo a racionalidade do outro, a sua diferença sociocultural-política-econômica»; a balança «deve ser desequilibrada, a fim de representar as desigualdades sociais, econômicas e culturais existentes num continente regrado por injustiças sociais»; a espada «deveria ser substituída por uma ‘lupa’, para que se possam avistar as concepções ideológicas que existem por detrás de um determinado ordenamento jurídico de cunho capitalista e neoglobalizante» (A parcialidade positiva do juiz. SP: RT, 2008, p. 255). Percebe-se, desse modo, que existe uma enorme afinidade eletiva entre o Naturalismo Processual e o Socialismo Marxista Processual. Tanto em uma doutrina quanto em outra, o lema fundamental é este: a neutralização do poder corruptor pelo juiz e a consequente desenvoltura funcional da parte subjugada, equilibrando-se a disputa em juízo e impedindo-se que prevaleça a «lei do mais forte». Em síntese, é possibilitar que o juiz supere as barreiras sociais, econômicas e culturais entre as partes, transformando a luta processual de um estado selvagem de desigualdade cruel em um estado civilizado de paridade absoluta entre armas. Tudo isso exige do juiz naturalista uma sentença que rompa com os padrões de redação mais conservadores e tradicionalistas, exprimindo-se em uma linguagem simples, clara, acessível e objetiva, despreocupada de embelezamentos, esmeros conceituais e vocabulário tecnicista, que facilite a compreensão da informação por toda e qualquer pessoa, especialmente pelos «pobres e oprimidos».
VI
O Parnasianismo Processual busca o culto dos diplomas legislativos. São-lhe bastante caros os códigos e as leis extravagantes sobre os diversos ramos procedimentais (civil, penal comum, penal militar, trabalhista, eleitoral, tributário, administrativo etc.). O vocabulário dicionarizante dos textos legais, ricos em hipérbatos atrelados à perfeição estético-racionalista, exprime o rigor consagrado das formas fixas e quase abstratas. Assim se expressaria Olavo Bilac: “Assim procedo. Minha pena/Segue esta norma./Por te servir, Deusa Serena,/Serena Forma”. Essa ânsia por fixidez gera no âmbito processual várias inalterabilidades (das causas de pedir, dos pedidos, da distribuição dos ônus probatórios, da sentença pelo próprio juiz, da coisa julgada, do procedimento legal, das medidas executivas, do sentido dos vocábulos que compõem os textos normativos etc.), reprochando-se tudo quanto seja atípico, maleável e dinâmico. Além do mais, pouca valia resta à jurisprudência dos tribunais, sempre «suja» pela contingencialidade dos casos concretos. Só interessa a processualística que se renda ao normativismo e que proscreva toda a sorte de sociologismos e axiologismos. O direito é apenas o ordenamento jurídico, o ordenamento jurídico são apenas as normas, as normas são apenas as regras, as regras estão apenas nas leis. É o direito pelo direito, o ordenamento jurídico pelo ordenamento jurídico, a norma pela norma, a regra pela regra, a lei pela lei, sem preocupação com os problemas mundanos da realidade social circunjacente. Por conseguinte, a ciência do direito stricto sensu é uma ciência puramente normativa. A validade que se sonda das normas é exclusivamente formal, em que regras inferiores se fundam em regras superiores dentro de uma estrutura escalonada piramidaliforme. Logo, a separação entre texto e norma é um código fraco dentro do parnasianismo jurídico: o texto normativo vincula por si só, visto que já diz sem que o intérprete diga por ele; por sua vez, não há norma que não se enuncie por meio de signos linguísticos e, portanto, por meio de textualidade. Daí o amor ao textualismo [mens legis] e ao originalismo [mens legislatoris]. Outrossim, é um código fraco a normatividade dos princípios, que nada mais são do que valores morais que o legislador elegeu como «metas de trabalho» não coercitivas para si mesmo. Nesse sentido, separa-se o direito da moral, bem ao gosto do positivismo. Mais: radicaliza-se a divisão entre os poderes como a única maneira segura de se manter a independência legislativa, reduzindo-se o juiz a um analista de documentos escritos, versado na acareação minuciosa de artigos, parágrafos, incisos e alíneas. Esse estudo detalhado dos textos de lei propicia o desenvolvimento científico de um sofisticado edifício conceitual, adensando-se o caráter lógico-sistemático da juridicidade. Propicia, por conseguinte, um controle objetivo-racional maior sobre a atividade do juiz do Parsanianismo Processual, cuja sentença se aproxima muito do fechamento impessoal e impassível de um raciocínio concepto-subsuntivo, que não se deixa contaminar por qualquer sentimento ou qualquer outro dado psíquico-subjetivo.
O juiz parnasiano trabalha como um filólogo, trancado em uma biblioteca, que julga cercado de dicionários, compêndios, digestos e tratados. Isso faz da sentença um majestoso quebra-cabeça dogmático, marcado por um tom culto, analítico e universalista. Não se nota a presença da primeira pessoa do singular em nenhum momento da decisão: o «eu lírico» do juiz bacharel é autocontrolado e, com ele, todo e qualquer tipo de animismo. Pudera: esse juiz livresco é membro de uma aristocracia intelectual e deve agir como parte dela, isolado na sua Torre de Marfim, desvinculado do mundo quotidiano. Tudo isso traz como efeito colateral indesejado a inacessibilidade do público leigo ao jargão jurídico-científico, sempre acurado, erudito, preciosista, exato, rebuscado, distante da linguagem oral do homem comum. Consequentemente, torna-se indispensável a presença de um representante letrado, interposto entre o juiz e a parte, que traduza ao jurisdicionado o complexo jogo de linguagem utilizado pela jurisdição. Ao fim e ao cabo, o lema parnasiano-processual é este: a contenção algébrica do juiz-filólogo pelas regras legais expressas e pelo corpus analítico-semântico, que a partir delas se constrói. Nas palavras de Paulo César Conrado: «[…] ao juiz que preside o processo […] não se mostra viável a adoção de parâmetros outros de condução da relação processual, que não os propriamente fixados no decantado código (o CPC), mesmo porque, sendo agente do Estado, toda sua atuosidade encontra-se vinculada à lei, descabendo-lhe qualquer margem de discricionariedade» (Introdução à teoria geral do processo civil. 2. ed. SP: Max Limonad, 2003, p. 63-64).
VII
Para o Simbolismo Processual, a estrutura e a dinâmica do processo devem ser derivadas desde valores transcendentais «superiores, essenciais e absolutos». Buscar a perfeição processual implica realizar com perfeição esses augustos valores, os quais não estão condicionados ao espaço-tempo e, por isso, estão acima de qualquer determinante histórico-contextual. Os valores transcendentais da justiça processual independem de fatores culturais, religiosos e ideológicos. Assim, a doutrina processual simbolista institui a primazia do axiológico (mas de um axiológico metafisicamente qualificado) sobre o lógico e o sociológico. Direito processual se faz mais com os valores supremos do que com as normas e os fatos, porquanto somente assim ele pode ser um direito processual depurado. Em suma, trata-se de um direito processual que, no limite ideal, independe da vontade humana. Aliás, vê-se com pessimismo e desconfiança toda a sorte de normativismos e sociologismos. O juiz-gnóstico do Simbolismo Processual só pode fazer justiça na situação concreta reconhecendo a imaterialidade da verdade jurídica, bem como a transitoriedade dos códigos, das compilações e das leis procedimentais extravagantes. Não existe ocasião para organizações, conceituações, definições, divisões, distinções, classificações e sistematizações muito intransigentes, construídas pela falibilidade do engenho analítico humano. Em outras palavras, o conhecimento e a concretização do ideal de justiça processual exigem o esbatimento do rigorismo científico e a diluição das formas fixas preestabelecidas pela lei, pela doutrina e pela jurisprudência, dando-se lugar a «formas vagas, fluidas, cristalinas» (Cruz e Sousa). Nutre-se um forte desdém pelo legalismo, pelo dogmatismo, pelo formalismo, pelo positivismo, pelo textualismo, pelo originalismo e pelo analiticismo. Institui-se um processualismo etéreo, elevado, sublime, decantado, que, diante do conflito entre a Justiça e a Segurança, privilegia a Justiça. Em nome do «Bem Maior», pode-se afrouxar uma vez por outra a inalterabilidade parnasiana das causas de pedir, dos pedidos, da distribuição dos ônus probatórios, da sentença já publicada, da coisa julgada, do procedimento legal, das medidas executivas típicas, dos vocábulos que compõem os textos normativos. O juiz simbolista deve descartar a razão e deixar-se conduzir pela sua intuição emocional. Ela é «a» diretora da realidade interna subjetiva do justo, tão real quanto a realidade externa objetiva.
Para tanto, o juiz simbolista deve ter uma condição especial de moralidade, um dom sobrenatural para o puro ético, uma supervocação espiritual, que não se adquire com formação acadêmico-universitária e que lhe permite ser um pontífice (de pontifex = «construtor de pontes») entre o mundo material e o mundo imaterial, entre o mundo sensível e o mundo suprassensível. Nada impede que esse juiz se detenha em normas jurídicas; no entanto, ele guardará fidelidade a elas apenas se tiverem fundamento em valores superlativos, se tiverem uma validez substancial metafísica, ainda que sejam formalmente constitucionais. Tudo isso faz do quotidiano ocupacional do juiz simbolista um ministério místico a serviço da Justiça e da Paz («iustitia et pax osculatæ sunt» – Salmo 85: 11, Vg). Em consequência, a justeza das suas decisões decorre de uma apreensão sintética total do caso examinado. Ele não se perde em longos encadeamentos analítico-hermenêuticos no âmbito de raciocínios lógico-normativos, tópico-argumentativos ou empírico-probatórios. Afinal de contas, ele consegue romper com a própria finitude e transcender as próprias limitações psíquico-cognitivas. Tudo se passa como se o juiz-gnóstico do Simbolismo Processual fosse um sacerdote, que recebe os contendores na sacristia, sem a presença profana de advogados, para julgar com sabedoria a causa ainda cheirando a incenso e inspirado pelos eflúvios da missa. O veredito lhe chega sempre claro, completo, repentino, em um único jato, de uma única vez, como quem compreendeu com rapidez e profundidade a essência do problema levado à sua judiciosa apreciação. Chega-lhe tal qual uma epifania, uma percepção intuitiva arrebatadora, um sopro divinal, uma inspiração iluminada, solucionando como um facho de luz a complexidade aparente do conflito sub judice. Não sem motivo a sentença desse personagem infalível – um «magistrado universal», que ao mesmo tempo é juiz e sacerdote – se verte na linguagem sacrossanta dos versículos: musical, expressiva, sentimental, melancólica, vaga, abstrata, imprecisa, sugestiva, metafórica, concisa, súbita. Sendo assim, as ideias de recorribilidade e rescindibilidade são desprestigiadas dentro do Simbolismo Processual, dado que desnecessárias.
VIII
O Modernismo processual é o processualismo do juiz-industriário. Trata-se do magistrado superprodutivo dos grandes centros urbanos, que mediante técnicas de engenharia industrial e governança corporativa transforma o Poder Judiciário em uma linha fordista de confecção decisória em larga escala. Para tanto, ele é coadjuvado por um staff de assistentes, que o auxiliam em gabinete não só em pesquisas de doutrina e jurisprudência, como na elaboração mesma de minutas de decisão, despacho e sentença. É a «justiça dos assessores». O Poder Judiciário se transforma em uma fábrica, que, «à dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas», trabalha, trabalha e trabalha «rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando», sempre «entre maquinismos e afazeres úteis» (Fernando Pessoa – Álvaro de Campos). Para dar cabo dessa pressão por resultados, o juiz modernista deve aproveitar ao máximo os poucos recursos de que dispõe, mobilizando-os para o mais alto rendimento possível de produção decisória. A sua mentalidade é renovada, carismática, competitiva, performática, pragmática, progressista, vanguardista, futurista, reformista, plástica, informal, motivadora, planejadora, gerencial, obcecada por dados estatísticos, sem escrúpulos dogmático-analíticos, liberta da tradição ultrapassada do processualismo acadêmico-universitário. Nada de arcaísmos nem de erudição. Em suma, ele tem a mentalidade de um CEO, um manager, um diretor executivo, um superintendente, que tem fascínio por heresias teórico-processuais e que prefere a prática eficiente a qualquer cultismo na atividade jurisdicional. A trilogia estrutural jurisdição-ação-processo dá lugar à trilogia funcional organização-celeridade-eficácia. Seja como for, o juiz-industriário não está preocupado com justiça nem com segurança jurídica, senão com a gestão temporal dos processos e com a consecução das metas de produtividade que impõe a si mesmo, ou que lhe são impostas pelos órgãos superiores de planejamento judiciário. Tudo isso constrange o «eu lírico» do juiz-industriário do Modernismo Processual a clamar por inovação, experimentação e celeridade. As regras legais expressas nos códigos e nas leis procedimentais extravagantes só lhe servem à medida que tenham utilidade para a sua estratégia produtiva: se lhe parecem úteis, ele as aplica ipsis litteris; se lhe parecem totalmente inúteis, ele invoca um princípio para suplantá-las; se lhe parecem parcialmente úteis, ele invoca um princípio para modificá-las; se lhe falta uma regra útil, ele invoca um princípio para inventá-la. Daí por que a legalidade é um reduto tedioso demais para a hiperatividade do juiz modernista.
Definitivamente, Modernismo Processual não combina com Legalismo. A propósito, não combina com qualquer tipo de obediência estrita, literal ou excessiva. Sendo assim, o juiz processa e julga as causas fazendo dos institutos processuais formas maleáveis, dúcteis, elásticas, flexíveis, como quem compõe poemas em versos livres e sem rigidez gramatical. Em função disso, rompe-se com o dogma da inalterabilidade da causa de pedir, do pedido, da distribuição dos ônus probatórios, da sentença já proferida, da coisa julgada, do procedimento legal, das medidas executivas etc. Como frisa José Igreja Matos, deve haver «a evolução para um modelo flexível e ágil com um juiz investido de forte discricionariedade na dimensão intra-processual, sublinhando a vertente da gestão processual» (Um modelo de juiz para o processo civil actual. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 58). O importante é sempre o incremento de eficiência na máquina judiciária, ainda que isso implique ruptura com o conhecimento acumulado do passado (o que mostra que o Modernismo Processual abraça a ideia evolucionista de que é «avançado» e as demais escolas processuais seriam «antiquadas»). Portanto, trata-se de um juiz com uma liberdade profunda, criativa e antiparnasiana, que faz dos processos que conduz uma obra própria, pessoal, subjetiva, ágil, customizada, individualizada, adaptada, particularizada, fragmentada, artesanal, caseira, regional e coloquial. Em contrapartida, as suas sentenças são replicáveis por meio de modelos padronizados constantes de um banco de dados. Perde-se, assim, o aqui-e-agora dos vereditos originais e únicos, sempre iguais e idênticos apenas a si mesmos. Enfim, atrofia-se a aura jurisprudencial, substituindo-se a existência singular de uma determinada sentença proferida em um caso prático específico por uma existência serial de minutas reprodutíveis para casos similares massificados, como se todos eles fossem meras repetições fáticas. O mesmo modelo de sentença é impresso às centenas, em ritmo frenético, nervoso, extenuante, como um tabloide.
IX
O juiz do Pós-Modernismo Processual promove a gestão computacional tanto do processamento quanto do julgamento das causas. O problema é saber se esse juiz é um sujeito biótico ou abiótico, um ser humano ou uma máquina, um cérebro biológico ou um cérebro eletrônico, uma inteligência natural ou uma inteligência artificial. Isso significa, em outras palavras, que o juiz pós-modernista pode ser tanto um programador como um programa. Tanto num caso quanto noutro, o Poder Judiciário deixa de ocupar espaços físicos (prédios com gabinetes e salas de audiência) para ocupar espaços virtuais. Enfim, o Poder Judiciário se torna para o cidadão um site. Assim, toda a atividade jurisdicional é realizada mediante diferentes recursos midiático-tecnológicos, que imprimem uma profunda fragmentação nas rotinas e nos métodos de trabalho: as audiências se fazem em plataformas de videoconferência on line; citações, intimações, notificações e deprecações se fazem por meio de dispositivos eletrônicos de envio e entrega de mensagens, como e-mail e aplicativos de conversa privada (WhatsApp, Telegram etc.); juízes e servidores trabalham em home office integrados entre si por intermédio de chats de trabalho (Microsoft Teams, Google Workspace etc.); os atos e os termos do processo são virtuais; trabalhos de tradutor e intérprete são feitos por motores on line, capazes de entender gramática e contexto e de traduzir sentenças inteiras complexas e não mais palavra por palavra (Google Tradutor, Babylon etc.); os arrazoados e as resoluções judiciais se simplificam, cruzando fronteiras tradicionais de expressividade forense e apelando para uma comunicação híbrida, que funde texto escrito com elementos audiovisuais (vídeo explicativo, vídeo de registro de fatos reais, vídeo de reprodução simulada de fatos, fotografias, gráficos, tabelas, fluxogramas, linhas do tempo, inserção de QR Code para a exibição de imagens e sons, etc.), em uma espécie de integração verbivocovisual, tão própria à poesia concretista de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari [visual law e legal design].
Essa desespacialização radical da estrutura e do funcionamento judiciários gera pelo menos duas grandes consequências: 1) no plano jurídico-processual, enfraquece o instituto da competência territorial; 2) no plano organizativo-judiciário, apaga toda e qualquer ideia de circunscrição, ou seja, de delimitação da área de competência, enterrando conceitos como comarca, seção, subseção e região (o que, no caso exemplificativo das Justiças da União, torna desnecessária a existência de tribunais regionais, seções e subseções judiciárias, mostrando-se mais racional a existência de varas espalhadas pelo território brasileiro e submetidas a um único tribunal de recursos de âmbito nacional) (obs. 1: no limite, sequer haverá justificativa para a separação entre Justiça Federal e Justiças Estaduais e, em consequência, para a existência do STJ, restando ao STF resolver eventuais divergências entre os tribunais de recursos das justiças comum, trabalhista, militar e eleitoral) (obs. 2: a nacionalização tanto do PJe quanto do concurso para a magistratura acelera a federalização completa da Justiça brasileira). Entretanto, a grande revolução está no uso sistemático dos softwares de inteligência artificial, seja para o processamento automatizado, seja para o julgamento mesmo das causas. Aqui, o juiz do Pós-Modernismo é um Chat GPT, um generative AI software treinado em uma imensa quantidade de textos normativos, doutrinários e jurisprudenciais para produzir de modo algorítmico uma sentença fluente, detalhada e bem adaptada a um determinado contexto fático real. Não sem razão, Alexandre Freire Pimentel e Beatriz Souto Orengo apostam que «a inteligência artificial […] fornecerá uma prestação jurisdicional cada vez mais célere e eficiente, colaborando para o acesso à justiça efetiva» (Perspectivas de aplicação da inteligência artificial no direito processual… Revista Brasileira de Sociologia do Direito, 8(3), p. 311). Nesse sentido, a sentença pós-modernista é marcada por um tipo de intertextualidade que se assemelha ao pastiche, uma espécie de colagem ou montagem a partir de retalhos de vários textos, embora sem qualquer caráter irônico ou parodístico. A sentença pós-modernista não hierarquiza esses retalhos: trabalha com uma pluralidade de fontes normativas e não normativas e com a atitude relativista de harmonizá-las em uma unidade textual coerente. Quanto ao mais, conquanto aferrado a recursos da tecnologia digital, o juiz pós-modernista conserva a essência do juiz modernista: carismático, competitivo, performático, pragmático, progressista, vanguardista, futurista, reformista, plástica, informal, motivador, planejador, gerencial, obcecada por estatístico, sem escrúpulos dogmáticos, liberto do processualismo acadêmico-universitário.
X
Pode causar estranheza que o processualismo barroco tenha sido o último, não o primeiro movimento a se analisar. Há uma atemporalidade no barroquismo, porém, que transcende o século XVII. Com efeito, o barroco é mais forma que conteúdo. É um modo nostálgico, melancólico e desencantado de o espírito reagir a uma ordem que se perdeu. Em suma, trata-se de um drama. Daí a enorme dificuldade de se analisá-lo. O drama barroco é a desgraça de um homem condenado a viver irrevogavelmente em um plano degradado. Fraturado, decepcionado, desamparado e lutuoso, divide-se entre um mundo original e os seus escombros. Sua sensação é de «despertencimento» a um mundo novo, que não reconhece mais, que desobedeceu à teleologia prevista, que decaiu na imanência pura, que não comporta a transcendência e cujas figuras tradicionais foram esvaziadas do seu sentido primitivo e se decompuseram. Nada obstante se tenha perdido o objeto de significação (o passado valoroso irrecuperável, que não existe mais), não se perdeu o desejo de significar (o presente desvalorizado, mas ao mesmo tempo exaltado). Essa forte angústia existencial torna o homem barroco incapaz de constituir uma unidade, senão operar a partir de pedaços. Quando muito logra uma aproximação de opostos, um exercício contemplativo de duplicidades, que faz do seu pensamento algo impotente, apático, pouco estruturado, que dista do cenário das grandes discussões e que rumina com obstinação as coisas na tentativa de salvá-las. Sua visão de mundo é dinâmica, acidental, contingente, aberta, inacabada, imperfeita, tumultuária, rebuscada e confusa. Suas ideais são marcadas pela fusionismo, pelo pessimismo, pelo contraste, pelo paradoxo, pela antítese e pela hipérbole. No mundo seiscentista, o drama barroco consistia no impasse entre o desejo ávido por uma unidade suprassensível e a fragmentariedade de todas as coisas que permeiam o mundo sensível. Portanto, tratava-se de um impasse entre teocentrismo e antropocentrismo, cristianismo e paganismo, luz e sombra, espiritual e material, sagrado e profano, fé e razão, espírito e carne, céu e terra, eterno e transitório, ascetismo e erotismo. Esse apuro entre clamar sempre pela clemência divina e pecar a todo tempo em um mundo decaído bem se expressa nestes versos de Gregório de Matos: «Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,/Da vossa alta clemência me despido;/ Porque, quanto mais tenho delinquido,/ Vos tenho a perdoar mais empenhado».
Todavia, o drama barroco se reinstala nos dias atuais: a modernidade vai liquefazendo tudo, tornando frágeis, fugazes e maleáveis todas as relações externas e, em consequência, destruindo a vida interior harmoniosa. Sendo assim, várias são as ordens do passado que vão sendo devoradas pela modernidade em ritmo alucinante e cujas ruínas vão enfileirando espíritos nostálgicos, melancólicos e desencantados. No âmbito jurídico-processual, esse tipo de reação espiritual se avizinha. À medida que o modernismo e o pós-modernismo processuais se livram de escrúpulos jurídico-dogmáticos e dão de ombros ao processualismo acadêmico-universitário, o processualista barroco tenta justificar em vão a sua própria existência como jurista, promovendo um fusionismo improvisado entre cientificismo e praxismo, dogmatismo e pragmatismo, teoria e prática, doutrina e jurisprudência, sem lograr uma unidade epistemológica abrangente. Ao fim e ao cabo, esse dualismo reflete a própria estrutura tópico-argumentativa das sentenças dos juízes modernista e pós-modernista, que combinam os dois extremos à proporção que rendam o máximo de resultados úteis. Destarte, o processualista barroco dilacera-se entre um estruturalismo processual e um funcionalismo jurisdicional regido por imperativos de eficiência. Inutilmente, tenta dar significado processual a uma atividade jurisdicional insubmissa a qualquer tipo de processualização. Quanto mais o processualista exalta essa indisciplina processual, mais é desprezado pelo Estado-jurisdição. Por isso, o processualista barroco, de quem se espera que salve as coisas, está condenado a falhar, uma vez que ele é tão frágil quanto as coisas mesmas. É um fidalgo decadente, incapaz de se reter em sua própria ordem de preocupações e de desdenhar da ordem rebaixada de preocupações do mundo que o circunda. É como se precisasse da aprovação do Poder Judiciário em geral e dos tribunais superiores em particular, cujos precedentes ele comenta passivo, como um secretário que bajula o próprio chefe e que se sente agradecido quando é citado pelo chefe em algum acórdão. De quando em quando os processualistas barrocos ousam criticar o sistema em algum ponto, tentando alterá-lo desde dentro; porém, como não poderia deixar de ser, o sistema os ignora, salvo se a alteração o torna ainda mais implacável.
XI
No início deste pequeno artigo, deu-se a entender que as diferentes Weltanschauungen se sucedem no tempo. Ao menos no plano artístico-literário, quando se estudam em sequência os movimentos barroco, árcade, romântico, realista, naturalista, parnasiano, simbolista, modernista e pós-modernista, obedece-se a uma ordem mais ou menos cronológica, malgrado se possam identificar na contemporaneidade convulsões neobarrocas, neoárcades, neorromânticas, neorrealistas, neonaturalistas, neoparnasianas e neossimbolistas. Todavia, no plano teórico-processual, o estudo dos diferentes movimentos não se organiza necessariamente dentro de uma linha temporal. O Barroco Processual, o Arcadismo Processual, o Romantismo Processual, o Naturalismo Processual, o Parnasianismo Processual, o Simbolismo Processual, o Modernismo Processual e o Pós-Modernismo Processual coexistem. Circulam todos juntos, em pé de igualdade, no livre mercado das ideias processuais. Isso sugere que essas cosmovisões não são exatamente «espíritos de época». Na verdade, são estados de espírito categorizados. Transcendem o espaço-tempo e, por isso, não são determinados pela materialidade histórica. As condições materiais do momento histórico-social podem, se tanto, influenciar o predomínio de um estado sobre outro, não plasmar o estado per se. Em essência, estados de espírito não são reflexos superestruturais de uma mera «ordem infraestrutural material». Ao que tudo indica, os espíritos barroco, árcade, romântico, realista, naturalista, parnasiano, simbolista, modernista e pós-modernista constituem o todo das possibilidades de reação do sujeito ao real. Isso faz com que não raro eles retornem, fora do seu «tempo normal», grafados com neo-, cumprindo um movimento de corso e ricorso. Contudo, esses estados não exprimem a realidade mesma. A realidade foi, é e sempre será o que é. Da mesma maneira, o Barroco Processual, o Arcadismo Processual, o Romantismo Processual, o Naturalismo Processual, o Parnasianismo Processual, o Simbolismo Processual, o Modernismo Processual e o Pós-Modernismo Processual são os modos categorizados como os processualistas reagem ao direito processual objetivo, não o direito processual objetivo em si.
Sem embargo, ficam as seguintes questões: para além do modo como os literatos cantam em prosa e verso a realidade, a realidade tem algo a cantar por si própria, sem que ninguém cante por ela? Que canção a «voz silenciosa» da realidade nos reserva? Para além do modo como os processualistas dizem do direito processual objetivo, o CPC, o CPP e as leis procedimentais extravagantes têm algo a dizer de si, sem que ninguém diga por eles? Que doutrina a «voz silenciosa» da Constituição Federal de 1988 e dos textos normativo-procedimentais nos reserva? O direito processual objetivo é o que é, ou só pode ser aquilo que dele dizem os barrocos, os árcades, os românticos, os realistas, os naturalistas, os parnasianos, os simbolistas, os modernistas e os pós-modernistas? Existe um direito processual objetivo, ou só pode existir direito processual «subjetivo», dito por algum sujeito? Se os dispositivos constitucionais sobre processo têm algo a dizer por si mesmos, eles estão mais próximos do que dizem os barrocos, os árcades, os românticos, os realistas, os naturalistas, os parnasianos, os simbolistas, os modernistas ou os pós-modernistas? Decerto o mais importante dispositivo constitucional sobre processo é o inciso LIV do artigo 5º da CF/1988 («ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal»). Essa regra jurídica nos transmite pelo menos cinco elementos, que devem ser compreendidos [= co-apreendidos] dentro de uma circularidade: 1) o termo devido [primeiro elemento textual]; 2) o termo processo [segundo elemento textual]; 3) o termo legal [terceiro elemento textual]; 4) a indespojabilidade da liberdade e dos bens sem o «devido processo legal» [elemento co-textual]; 5) a inserção dos quatro elementos anteriores no rol dos direitos subjetivos fundamentais de liberdade do indivíduo contra o Estado [elemento con-textual]. É isto que o aludido dispositivo nos tem a dizer sem que ninguém diga por ele: o «devido processo legal» é (2) o procedimento em contraditório, (1) de interposição obrigatória entre os cidadãos-jurisdicionados e o Estado-jurisdição, (3) instituído por lei em sentidos material e formal, (5) para protegê-los de eventual arbítrio jurisdicional (4) quando da privação do patrimônio ou da liberdade. Em conclusão: o «devido processo legal» é o processo-como-garantia, a macrogarantia processual, o processo-em-sua-contrajurisdicionalidade. Esse é o dado externo objetivo, a camada pré-literária, o a priori da literariedade processualística, da qual o verso e a prosa sempre devem partir. Decididamente, ciência processual não é «licença poética».
Notas:
*Juiz Federal em Ribeirão Preto/SP. Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor de Mestrado e Doutorado da Universidade de Ribeirão Preto. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (triênio 2016-2018). Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual. Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual.