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Três alertas sobre interpretações ilegais quanto à atuação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados

Desde 2020, com a sua conformação em estrutura e quadro de pessoal, a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) começou a editar e publicar “Guias Orientativos” nas mais diversas áreas dentro do gênero “Proteção de Dados” – mais precisamente, desde 2021.

Dentre os documentos, encontramos análises dos agentes de tratamento e encarregados, dicas de proteção de dados e segurança da informação, aplicação da LGPD ao contexto eleitoral e tratamento de dados pelo Poder Público.

O tema é relevante para comentários práticos e diretos e a fonte de informação tem um “que” de originária – afinal, dentre as competências da ANPD está a de regulamentação da lei geral de dados nacional e, em adendo, da produção de opinião técnica abalizada. Entretanto, há elemento reativo, de enorme pendor subjetivista e de flagrante despotismo – em bom sentido técnico: ilegalidade da atuação estatal, conforme princípios.

Parte do corpo de juristas especializados (numa pretensa dogmática de proteção de dados) começa a entender que tais guias “orientativos” teriam uma espécie de força normativa (“fraca”). A razão? Ao interpretar a Lei Geral de Proteção de Dados e determinar orientações para adequação e compliance, a ANPD criaria situação de “tudo ou nada” para futuras responsabilizações – se o agente de tratamento não segue o guia, abre espaço para responsabilização.

Consequentemente (e o pensamento é consequencialista no pior do termo), ao produzir um Guia, a ANPD produz norma (dita) fraca. O argumento é de fragilidade palmar. Sigamos, no primeiro alerta, com o debate propedêutico:

  1. A atribuição de normatividade a uma comunicação jurídica, a um conteúdo ideativo que se chama “norma jurídica”, envolve a atuação de um ente competente (já dizia Kelsen, elaborando os conceitos de interpretações de primeiro e segundo grau). A Autoridade Nacional ganha sua competência da Lei Geral, que, por sua vez, ganha competência de um ato do Legislador ordinário. É um efeito dominó: o legislador emite comunicação competente que se cristaliza em norma jurídica, está, por sua vez incide sobre fatos e, por fim, irradiam-se efeitos.
  2. Dentre os centros ejetores de normatividade, reconhecidos na tradição jurídica ocidental, estão: lei, jurisprudência, costume e doutrina – no dizer de Antônio Luiz Machado Neto[1], “são instâncias objetivas de valoração” que impedem a livre criação da norma pelo julgador. Como toda norma jurídica, aquelas que cuidam da proteção de dados pessoais buscam fundamento objetivo numa dessas instâncias. Fora desses focos ejetores, o que subsiste é o aspecto sociológico, ajurídico – realizando trocas com o sistema jurídico, sem se confundir com ele. Nesse sentido, deve ser separada a ideia sociológica de “uso” com a ideia jurídica de “costume”. Pontes de Miranda é claro, citando Sternberg: “Costume, prática [jurisprudência] e doutrina são as formas fundamentais da atividade da cultura humana: na primeira, o espírito humano (indivíduo-social) domina simples relações estáveis, na segunda, relações estáveis variadas ou complexas, e, na última relações complexas e móveis”[2]. Assim sendo, não se pode falar, fora desses centros de normatividade de uma obrigatoriedade, conforme os princípios de ciência do direito.

 

O segundo alerta envolve reflexão sobre a dimensão formal da criação de norma pelo poder regulamentar:

  1. O regulamento não pode extrapolar os limites postos pela lei que ele pretende regulamentar – nas palavras de Pontes de Miranda, ele tenta tomar o lugar da lei, sem, efetivamente, poder. Tal ainda é o princípio vigente no direito brasileiro, em que pesem as práticas oportunistas de uso do poder regulamentar (normativo) para expansão dos conteúdos da lei (oposição, portanto, à revelação do direito).
  2. A forma regulamentar, que envasa o exercício do poder regulamentar, é estrita. A atividade de inserção de disposição normativa no sistema deve respeitar a forma – cujo ápice está no decreto presidencial. No caso da ANPD, a edição e uso desta atribuição deve respeitar a publicação de portarias ou resoluções.
  3. A Autoridade Nacional atua sob o prisma do direito público/administrativo, constrita à legalidade estrita, devendo em todos os atos respeitar os princípios da administração pública.

 

O terceiro alerta, com intenção conclusiva: a emissão de guia orientativo não é ejeção de norma pelo sistema jurídico, em nenhuma hipótese. A interpretação de normatividade fraca não encontra respaldo na estrutura do ordenamento, nos princípios do conhecimento jurídico científico.

Ademais, a construção de tal interpretação “científica” é uma bela ocasião ao ladrão. É a abertura para a violação de direitos – de pessoas físicas e empresas – com o selo de atuação estatal legítima.

 

Referências:

[1] MACHADO NETO, Antônio Luiz. Compêndio de Introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 242.

[2] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Sistema de Ciência Positiva do Direito, T. IV. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 225.

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André Fernandes
Advogado. Head de Direito Digital no Buonora & Oliveira Advocacia. Mestre em direito no Programa de Pós-graduação em Direito - PPGD/UFPE, linha Teoria da Decisão Jurídica. Graduado em direito pela Faculdade de Direito do Recife - UFPE. Fundador do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec). Professor Universitário. Membro em Grupos de Trabalho de Especialistas sobre Responsabilidade Civil na Internet (GTRI/Internet Society) e Inteligência Artificial e Governança (Governo Federal/CGI.br). Ex-Presidente da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Pesquisa: 1) estruturas históricas acerca da automação do trabalho; 2) os modelos históricos de responsabilização civil e as legislações atuais sobre intermediários tecnológicos; 3) processos decisórios da técnica multissetorial no ambiente da governança da Internet e no âmbito institucional (público e privado). Estuda a vida e obra de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda.

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