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Dever “qualificado” de fundamentação em vista de determinados pronunciamentos judiciais? O contraditório e o sistema de provimentos vinculativos do CPC

 

Alexandre Callou da Cruz Gonçalves. Mestrando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

Carlos Eduardo Tavares de Albuquerque. Acadêmico de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Estagiário do escritório de advocacia Da Fonte advogados.

Mateus Costa Pereira. Doutor, Mestre e Bacharel em Direito pela Unicap. Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unicap. Membro fundador da ABDPro. Sócio do Da Fonte Advogados.

 

Não é novidade que o dever de fundamentar as decisões judiciais está intimamente ligado ao direito ao contraditório e à democracia, entre outras conquistas civilizatórias; por meio da fundamentação, busca-se justificar, motivar uma determinada conclusão, prestando-se contas às partes e, em alguma medida, à sociedade. O dever de fundamentação previsto na Constituição (art. 93, IX) e ressoado no CPC (art. 489 do CPC) tem por destinatários os órgãos jurisdicionais. Nunca é demais lembrar que inexiste dever das partes em fundamentar, malgrado seja possível vislumbrar um ônus dialético que recai sobre seus ombros (v.g., dialeticidade recursal).

Na qualidade de um dever, e adentrando a problemática mencionada no título, seria possível imaginar que ele comporta gradação, isto é, que exista um dever mais ou menos intenso de motivar? Em outras palavras, seria possível conceber um dever de fundamentação “qualificado” à vista de determinadas circunstâncias processuais?

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça acabou suscitando essa reflexão ao julgar o REsp de nº 1.698.774, da relatoria da Ministra Nancy Andrighi. O fio condutor da demanda foi um apelo especial em que o recorrente alegava que o colegiado vinculado ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul não teria observado o dever de fundamentação previsto no artigo 489, § 1º, VI, do CPC, segundo a qual, para deixar de aplicar enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, incumbe ao órgão jurisdicional demonstrar a existência de distinção ou de superação. No ponto, releva notar que os acórdãos invocados pela parte recorrente, os quais teriam sido negligenciados pelo Tribunal de origem, eram oriundos do TJSP e do TJDF.

O artigo 489, § 1º, CPC explicita o dever de fundamentação, é dizer, desdobra-o analiticamente. No ensejo, como pontuado pela doutrina – destaque à preleção de André Cordeiro Leal –, a compreensão do dever de fundamentação pressupõe a assimilação do contraditório como direito de participação, existindo uma relação indissociável entre essas garantias processuais. Em alguma medida, essa lição é complementada por Taruffo, o qual advertia ao caráter instrumental da fundamentação, porque ilumina a (in)observância das demais garantias do processo.[1]

Nessa linha, a disposição do código positiva o que já é uma decorrência do contraditório, vale dizer, dos impactos do direito ao contraditório (direito de participação) sobre o dever de fundamentação do órgão jurisdicional (dever de dialética ou dialógica com os argumentos de fato e de direito deduzidos pelas partes). Também por isso, acreditamos que o rol do § 1º do artigo 489, CPC deve ser considerado exemplificativo, pois o âmbito de proteção do direito – fundamental – à motivação dos pronunciamentos judiciais não se limita ao que consta da legislação infraconstitucional.

Sem pretender examinar cada um dos deveres do rol normativo, por ora interessa o inciso VI, alinhado ao mote de um sistema de “provimentos vinculantes”, o qual recrimina decisões que deixam de observar enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, caso o órgão jurisdicional não proceda com a distinção ou a superação do entendimento.[2]

De antemão, é preciso notar que o sistema de “provimentos vinculantes”, potencialmente, atribui eficácia vinculativa a (i) determinados pronunciamentos (ii) prolatados por determinados órgãos (iii) de determinados tribunais, desde que (iv) construídos em determinados procedimentos (v.g., decisão da Corte Especial ou de uma das Seções do Superior Tribunal de Justiça em sede de Recurso Especial Repetitivo). É o que se extrai do rol do art. 927, CPC.[3] Quanto aos Tribunais de Justiça, sem adentrar em questões relacionadas à vinculação horizontal, atribui-se eficácia vinculativa aos enunciados de súmula que tenham por objeto direito local.

Para todos esses casos, o artigo 489, § 1º, do CPC, parece “qualificar” o dever de fundamentação, pois o órgão jurisdicional somente poderá se afastar da tese (ratio decidendi) firmada em qualquer um dos cenários mencionados acima se efetuar a distinção (distinguishing) ou demonstrar que o entendimento já está superado (overruling), sob pena da decisão ser viciada (afronta ao artigo 489, CPC e ao art. 93, IX, CF/88); eventualmente, já na perspectiva de vinculação horizontal, se ele revogar o entendimento anterior ou fazer a distinção. Ao revés, conquanto sempre exista o dever de motivar, quando o órgão jurisdicional estiver alinhado a “provimento vinculante”, o sistema admite a fundamentação per relationem.

Rigorosamente, não é possível dissertar um dever qualificado de fundamentação, malgrado já tenhamos sustentado que a fundamentação deva ser adequada. Garantias processuais não incidem em porção ou pela metade. Ocorre que, e essa é uma leitura possível, o sistema de provimentos vinculativos pode ter comprometido o exercício do contraditório, ao reduzir a importância de determinados argumentos e alçar tantos outros à condição de razões definitivas (= provimentos vinculantes).

Em seu voto no REsp de nº 1.698.774, a Ministra Nancy Andrighi entendeu que o Tribunal de origem não tinha o dever de tomar as decisões de outros tribunais em consideração; na esteira da posição externada pela relatora, a Terceira Turma asseverou a ausência de um dever de diferenciação (distinguishing) ou de demonstrar a superação (overruling) quando se tratar do entendimento de Tribunal local (que não se enquadra como “provimento vinculante”, pois). Foi o que motivou a rejeição da alegação de afronta ao artigo 489, § 1º, VI, do CPC deduzida no apelo especial.

 

Referências:

[1] Sobre o tema, cf. PEREIRA, Mateus Costa; GOUVEIA, Lúcio Grassi de; ALVES, Pedro Spíndola Bezerra. Fundamentação Adequada: Da impossibilidade de projetar a sombra de nossos óculos sobre paisagens antigas e de acorrentar novas paisagens em sombras passadas. Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, Fórum, v. 95, p. 175-201, 2016.

[2] “Art. 489. São elementos essenciais da sentença: […]; §1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: […]; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

[3] É importante consignar que isso não significa que concordemos com esse sistema de “provimentos vinculantes”.

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Mateus Pereira
Doutor e Mestre em Direito Processual. Professor de Direito Processual Civil na Graduação, no Programa de Pós-Graduação em Direito e Coordenador da Especialização em Processo Civil da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Advogado (sócio do Da Fonte, Advogados). . Autor do Podcast e do canal de Telegram "Processo & Prosa"(https://t.me/processoeprosa).

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