Razão de decidirTRT

A constitucionalidade da indenização por danos morais em valores superiores ao tabelamento estabelecido pela Reforma Trabalhista no artigo 223-G da CLT

*Por Fernanda da Silva Oliveira

Os critérios de quantificação estabelecidos pela Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017), em seu artigo 223-G, caput e §1º, da CLT, servem apenas como parâmetro para a fixação dos valores das condenações em danos morais no âmbito trabalhista, sendo garantida ao magistrado a liberdade no arbitramento do quantum indenizatório, desde que fundamentada a decisão, e respeitando os princípios da igualdade, proporcionalidade e razoabilidade.

Essa foi a conclusão a que chegou o Supremo Tribunal Federal, em julgamento virtual no dia 23/6/2023, ao apreciar o mérito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6050, 6069 e 6082, de autoria, respectivamente, da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI).

Em seu voto, o Ministro relator Gilmar Mendes citou precedentes do Tribunal Superior do Trabalho, demonstrando a disparidade entre as condenações atinentes às indenizações por danos morais, em relação aos atos praticados e prejuízos suportados e os valores então arbitrados/mantidos pela Corte Superior Trabalhista.

Embora reconheça a inconstitucionalidade do sistema de tarifação legal trazido para a seara trabalhista com o advento da Lei 13.467/2017, o Ministro relator entende que os limites previstos no caput e no §1º do artigo 223-G da CLT podem funcionar como critérios balizadores/interpretativos da decisão judicial, que preservam e direcionam a atuação do juiz na fixação dos valores objeto das condenações.

In verbis:

“Ressalvada a fixação antecipada do dano pela lei, porém, entendo que inexiste inconstitucionalidade na opção legislativa que não esvazia, mas apenas restringe a discricionariedade judicial a partir da listagem de critérios interpretativos que devem ser considerados na quantificação do dano. A consagração de parâmetros legais objetivos, aliás, é não apenas constitucional, mas desejável, na medida em que eles podem balizar o livre convencimento racional motivado do juiz.”.

O Ministro Edson Fachin apresentou voto divergente, defendendo que o dispositivo impugnado ofende o princípio da isonomia ao estabelecer teto limitativo que não existe no âmbito do direito civil, criando distinção apenas pelo contexto de relação de emprego na qual o dano moral em questão teria sido ocasionado, implicando ainda violação ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

“Ao estabelecer limites intransponíveis para o juiz trabalhista fixar as indenizações por danos extrapatrimoniais decorrentes das relações de trabalho, sem que os mesmos limites se imponham ao juiz comum na fixação das mesmas indenizações decorrentes de relações civis de outras naturezas, está-se diante de uma inequívoca ofensa ao princípio da isonomia, expressamente estabelecido como direito fundamental pela Constituição da República de 1988 , especialmente no seu art. 5º, caput.

Tal compreensão não é de todo diversa daquela que este Plenário já enfrentou no julgamento do Recurso Extraordinário 828.040, Relator Ministro Alexandre de Moraes, J. 05.09.2019, Tema 932, da sistemática da Repercussão Geral, em que se discutia a natureza jurídica da responsabilidade do Estado por acidentes de trabalho, em face do art. 7º, XXVIII, da CRFB. Naquela oportunidade, este Plenário assentou que não seria possível admitir, no sistema constitucional brasileiro, que pelo mesmo fato acidentário, existisse um tipo de responsabilidade para as relações civis em geral e outro tipo de responsabilidade para as relações trabalhistas. A maioria entendeu pela equiparação das responsabilidades.

Verifica-se, pois, que há situações tais que invocam, de maneira autoevidente, a incidência do princípio da dignidade humana (art. 1º, III, CRFB) como parâmetro constitucional limitador de práticas estatais manifestamente contrárias ao tratamento isonômico entre cidadãos.

A tarifação da indenização por danos extrapatrimoniais, restrita exclusivamente ao grupo dos trabalhadores, atinge esses cidadãos em sua condição essencial de existência como grupo de pessoas; viola subjetivamente a todas e cada uma dessas pessoas; viola também o fundamento da própria comunidade constitucional constituída em 1988, qual seja, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB).

Na divergência, o ministro Fachin foi acompanhado pela Ministra Rosa Weber, o que resultou em um julgamento não unânime, decidido por 8 votos a 2.

A ofensa ao princípio da isonomia, um dos argumentos basilares das Ações propostas, pode ser visto ainda por outro viés, qual seja, a utilização da base salarial do empregado para a quantificação da indenização a ser percebida. Tal aspecto, inclusive, mostrou-se o mais controverso desde a edição da Reforma Trabalhista, no que diz respeito aos danos morais.

Analisando a questão por essa ótica, a mesma situação sofrida dentro da mesma empresa, por empregados de escalonamentos e níveis diferentes, ocasionaria reparações de natureza extrapatrimonial de valores diferenciados, uma vez que a base de cálculo, levando-se em consideração a literalidade do artigo então impugnado nas ADIs, seria o salário do próprio ofendido.

Como consequência lógica do inconstitucional sistema tarifário, os empregados de baixa remuneração estariam fadados a receber indenizações de parco valor, ainda que o ato tenha sido altamente reprovável e os prejuízos sofridos tenham atingido o ofendido em sua mais profunda esfera moral. Em se tratando de âmbito trabalhista, há de se ter em conta que as reparações de natureza extrapatrimonial envolvem ainda o meio ambiente de trabalho, a saúde, higidez, estrutura física e sanitária, não se olvidando dos numerosos e fatais acidentes de trabalho.

Foi nesse sentido que a Procuradoria Geral da República (PGR), opinou nos autos da ADI 5.870 pela procedência das Ações, utilizando-se do acordo firmado entre o Ministério Público do Trabalho e a Vale S.A. nos autos da Ação Civil Pública nº 0010261-67.2019.5.03.0028 para exemplificar a questão. O mencionado acordo corresponde ao acidente ocorrido em 25/1/2019, em Brumadinho/MG, no qual o rompimento da Barragem da Vale vitimou fatalmente centenas de trabalhadores. Cito trecho do mencionado parecer:

“Importa atentar que os montantes per capita em benefício dos tutelados pela ação coletiva, familiares dos trabalhadores mortos no sinistro, foram muito superiores aos rasos padrões fixados nos artigos consolidados questionados, na medida em que a própria empresa reconheceu, mesmo antes de qualquer controle de constitucionalidade incidental quanto ao aspecto em enfoque, a inadequação dos parâmetros atuais da CLT.”.

Observa-se então que o princípio da reparação integral, previsto na Constituição Federal no artigo 5º, incisos V e X, igualmente seria afrontado ao serem proferidas decisões discriminatórias, que desconsiderassem as circunstâncias fáticas e os malefícios suportados pelo empregado, além de desatender à sua finalidade precípua, qual seja, a reparação efetiva e justa, equivalente aos prejuízos ora sofridos pela vítima.

E se na Carta Magna não há disposição acerca de limitação dos valores indenizatórios, tampouco a estipulação de qualquer base de cálculo, não deve a lei ordinária fazê-lo. Ao se realizar uma interpretação sistêmica do ordenamento jurídico, o que se pretende é permitir que o magistrado, analisando o caso concreto, arbitre valor que entenda justo e suficiente, buscando a satisfação do ofendido, não se perdendo de vista o caráter pedagógico que a condenação exerce sobre a empresa.

Nessa linha, o Relator julgou parcialmente procedentes os pedidos para conferir interpretação conforme a Constituição, estabelecendo que:

“Os critérios de quantificação de reparação por dano extrapatrimonial previstos no art. 223-G, caput e §1º, da CLT deverão ser observados pelo julgador como critérios orientativos de fundamentação da decisão judicial. É constitucional, porém, o arbitramento judicial do dano em valores superior aos limites máximos dispostos nos incisos I a IV do § 1º do art. 223-G, quando consideradas as circunstâncias do caso concreto e os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade.”.

A decisão manteve a linha jurisprudencial do Supremo, cuja manifestação no RE n. 447.584, foi pela não recepção do art. 52 da Lei n. 5.250/67, a Lei de Imprensa (julgamento publicado em 16/3/2007). Neste caso, o STF entendeu não havia a possibilidade de se arbitrar valor proporcional e justo à eventual reparação extrapatrimonial, pois previamente estabelecido limite máximo, independente das circunstâncias que originaram o dano.

Para concluir, importante ressaltar que, na mesma oportunidade, fora conferida interpretação conforme a Constituição também ao artigo 223-B da CLT, o qual restringiu a titularidade do direito à reparação ao ofendido, excluindo a possibilidade e o direito dos familiares da vítima de o perseguirem judicialmente, conhecido como dano moral em ricochete ou reflexo, comum nos casos em que há morte da vítima.

O Ministro Gilmar Mendes, citando o retromencionado parecer da PRG (ADI 5.870) empregou o exemplo do acidente ocorrido em Brumadinho para asseverar que “uma interpretação que desconsiderasse a possibilidade de acionamento da Justiça do Trabalho pela hipótese de dano em ricochete resultaria em estado de absoluta inconstitucionalidade.”.

O fundamento central do voto conjunto das ADI 6050, 6069 e 6082 já vinha sendo utilizado em decisões turmárias do Tribunal Superior do Trabalho antes mesmo da conclusão do seu julgamento: RRAg-10165-84.2021.5.03.0027, 3ª Turma, Relator Ministro Jose Roberto Freire Pimenta, DEJT 23/06/2023; AIRR-75-73.2022.5.12.0013, 3ª Turma, Relator Ministro Alberto Bastos Balazeiro, DEJT 09/06/2023; RRAg-1295-78.2017.5.08.0018, 3ª Turma, Relator Ministro Alberto Bastos Balazeiro, DEJT 24/03/2023.

No âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da Sexta Região (PE), destaco os seguintes julgados: ROT – 0000315-59.2021.5.06.0144, Redator: Sergio Torres Teixeira, Data de julgamento: 01/06/2023, Primeira Turma, Data da assinatura: 04/06/2023; RORSum – 0000095-76.2020.5.06.0021, Redator: Ivan de Souza Valenca Alves, Data de julgamento: 15/03/2023, Primeira Turma, Data da assinatura: 17/03/2023; RORSum – 0000287-69.2021.5.06.0313, Redator: Sergio Torres Teixeira, Data de julgamento: 19/05/2022, Primeira Turma, Data da assinatura: 20/05/2022.

 

*Assessora da Vice-Presidência do TRT6.

 

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1 Comment

  1. Reflexão de extrema qualidade, dotada de refino técnico e assertividade, sem perder de vista a natureza científica do texto. Excepcional.

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