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Direito à saúde: o Estado é obrigado a fornecer o dispositivo Freestyle Libre para leitura de glicemia?

Muitas pessoas, geralmente diabéticas, questionam se podem ingressar com ação contra o Estado para o fornecimento de equipamentos mais modernos para a leitura de glicemia.

Há algum tempo circula no mercado um novo aparelho, chamado Freestyle libre, responsável pela medição do nível de glicose sanguínea através de um sensor inserido no braço ou perna, que fica colado ao corpo através de uma única agulhada.

O referido equipamento viabiliza várias leituras/aferições do nível de glicose no sangue por dia, sendo desnecessárias novas “picadas”, tornando-se, assim, uma ferramenta deveras interessante/importante, notadamente porque diminui, significativamente, o número de furos nos dedos, permitindo um melhor controle do açúcar no sangue, para o controle das crises de hiper ou hipoglicemia.

Porém, como sói ocorre com todas as novidades/comodidades tecnológicas, o valor do referido aparelho é consideravelmente superior quando comparado aos modelos tradicionais/clássicos, usados na medição de glicose. O freestyle libre varia entre R$ 400,00 (quatrocentos reais) a R$ 600,00 (seiscentos reais), em média (a aquisição do glicosímetro é acompanhado do primeiro sensor). E, a isto se acresça, também, o fato de que o sensor de aferição tem prazo de validade de 14 (quatorze) dias, o que demanda a aquisição de 2 (dois) sensores por mês (só o sensor custa aproximadamente R$ 300,00 [trezentos reais]).

Significa dizer, portanto, que o custo médio para aferir o controle do diabetes por esse novo sistema é de aproximadamente R$ 1.000,00 (mil reais) no primeiro mês e R$ 600 (2 sensores), do segundo mês em diante, o que torna tal tecnologia – no mais das vezes – inacessível para boa parte da população, especialmente em se considerando o valor do salário mínimo no Brasil, hoje, de R$ 1.320,00 (hum mil, trezentos e vinte reais).

Nesta vereda, ressoa a pergunta: pode o Estado ser compelido/forçado a fornecer tal insumo para pessoas carentes (ou seja: para os que não possuem condições financeiras de custear o próprio tratamento), nos moldes da Constituição Federal, art. 196?

A resposta é positiva, contudo devem ser observadas as peculiaridades de cada caso.

Por curial, tal questão foi judicializada e chegou ao crivo do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE), especificamente na 1ª Câmara de Direito Público, sob a relatoria do Desembargador Jorge Américo Pereira de Lira.

Vamos perlustrar o caso concreto, com vistas a propiciar uma melhor compreensão do texto para o leitor:

Em sede de Agravo de Instrumento, o órgão fracionário do TJPE reapreciou a decisão proferida pelo Juízo de Direito da Vara Única da Comarca de Carnaíba, Comarca do interior pernambucano, que denegou o fornecimento de glicosímetro e 2 sensores da marca Freestyle Libre. A demanda foi ajuizada por menor impúbere (criança), no ato representado por sua genitora.

Nas razões de decidir (ratio decidendi), suas excelências concluíram, à unanimidade, no sentido de que – em especial – apenas crianças ou idosos carentes devem contar com o apoio da referida tecnologia, uma vez que estes referidos usuários possuem mais dificuldades para utilizar as ferramentas gerais fornecidas pelo Sistema Único de Saúde – SUS.

No caso concreto, o intuito maior da prestação jurisdicional foi assegurar, para o menor recorrente a concretude dos princípios do melhor interesse da criança (CRFB, art. 227) e da dignidade da pessoa humana (com condições de saúde e sobrevivência dignas), ex vi da CF, art. 1º, inciso III c/c arts. 196 e 197.

Em reforço argumentativo, foi citado precedente do c. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – TJRS que, em caso análogo, deferiu medida liminar garantindo o fornecimento de aparelho monitor e sensores Freestyle Libre para criança portadora de Diabetes Mellitus – tipo 1 (congênita). Observem:

 

EMENTA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. DIREITO À SAÚDE. DIABETES TIPO 1 E TRANSTORNO DEPRESSIVO. FREESTYLE LIBRE. TUTELA DE URGÊNCIA. PRESENÇA DOS REQUISITOS. MANUTENÇÃO DA DECISÃO CONCESSIVA. 1. Com base nos artigos 6º e 196 da Constituição Federal, é crível admitir que é dever do Estado (lato sensu) prestar atendimento de saúde, quando configurados os vetores da adequação do medicamento, tratamento ou cirurgia e da carência de recursos financeiros de quem postula. 2. O menor tutelado é portador de Diabetes Mellitus Tipo 01 (CID 10 E10) e Transtorno Depressivo (CID 10 F33), necessitando da utilização do aparelho FreeStyle Libre para a medição da glicose. 3. A documentação anexada ao feito e que foi firmada pelos profissionais que atendem o autor fornecem elementos suficientes, ao menos neste momento processual, quanto à necessidade da utilização do aparelho FreeStyle Libre, não sendo crível negar o acesso da paciente pelo fato de não ser fornecido pelo SUS. 4. Ainda que o SUS forneça outros dispositivos para a medição de glicose dos cidadãos acometidos de diabetes, o que levou esta Corte, em outros recursos, a negar o fornecimento do aparelho postulado nos autos, na situação concreta, em que o demandante tem crises graves de hiperglicemia e de hipoglicemia noturna, capazes de trazer risco de vida, e desenvolveu um quadro de transtorno depressivo, agravado pelas recorrentes medições de glicemia capilar que necessita fazer ao longo do dia, os laudos médicos que instruem os autos são convincentes acerca da premência do uso do aparelho FreeStyle Libre para minimizar a quantidade de picadas diárias e melhorar o quadro de saúde do autor. 5. Decisão concessiva da tutela de urgência que vai mantida. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (TJRS – AI n. 70084666726 RS, Rel. Des. Leonel Pires Ohlweiler, Terceira Câmara Cível, Julg: 18/03/2021, Publicação: 23/03/2021).

 

Na mesma esguelha, foi citado também o seguinte precedente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP: AI n. 2058083-43.2021.8.26.0000, Relator Des. Dimas Rubens Fonseca, Câmara Especial, Julg: 01/06/2021, DJe: 01/06/2021.

Ao remate, os Desembargadores da Câmara Fazendária destacaram que a minimização da quantidade de picadas diárias contribuiria para uma melhor qualidade/quadro da saúde do menor, evitando o desenvolvimento de transtorno depressivo, uma vez que a criança ainda não possui plenas condições de compreender a complexidade/gravidade da doença que lhe aflige.

Demais disso, ressalvou-se que o acompanhamento inadequado teria o condão de ocasionar complicações inerentes ao diabetes, tais como: (i) cegueira, (ii) distúrbios neurológicos, (iii) amputação de membros e (iv) problemas renais crônicos.

Forte em tais razões, a 1ª Câmara de Direito Público do TJPE concluiu que a “necessidade do fornecimento do aparelho” estava inequivocamente demonstrada. Lado outro, destacou que o risco de desenvolvimento das complicações do diabetes caracterizaria o segundo requisito da tutela recursal, qual seja: grave dano, de difícil ou incerta reparação (periculum in mora). Nesse viés, reconheceu a presença cumulativa dos requisitos aptos a lastrear a concessão da tutela recursal vindicada, cf. CPC, art. 995, parágrafo único.

Assim, o recurso instrumental foi provido, em ordem a infirmar o édito liminar de origem e determinar o fornecimento de 01 (um) aparelho Freestyle Libre, com 02 (dois) sensores Freestyle Libre por mês, de forma de garantir o adequado controle da glicemia, essencial para o tratamento da diabetes mellitus – tipo 1 (CID: E10.9) que aflige o menor/recorrente, sob pena de multa diária de R$ 500,00 (quinhentos reais) por dia de descumprimento, limitado a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).

Entrementes, registra-se que cada caso é único, o que demanda uma análise cum grano salis para verificar a possibilidade casuística do fornecimento do equipamento.

Dados do processo interpretado já formatados para citação:

(TJPE – Agravo de Instrumento n. Agravo de Instrumento n. 0019770-28.2022.8.17.9000, Rel. Des. JORGE AMÉRICO PEREIRA DE LIRA, 1ª Câmara de Direito Público, julg: 14.07.2023, decisão unânime).

 

Ementa do processo interpretado:

 

EMENTA. DIREITO CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. INEXISTÊNCIA DE LITISPENDÊNCIA. REJEIÇÃO DA PREFACIAL. FORNECIMENTO DE APARELHO E SENSORES FREESTYLE LIBRE. DIABETES MELLITUS TIPO 1. DIREITO HUMANO À SAÚDE E À VIDA. DEVER DO ESTADO. PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. PROVA INEQUÍVOCA E PERIGO DE DANO. REQUISITOS PRESENTES. RECURSO PROVIDO.

1. Cuida-se de Agravo de Instrumento interposto com o intuito de infirmar os termos da decisão proferida pelo Juízo da Vara Única da Comarca de Carnaíba que indeferiu tutela provisória, negando o fornecimento de 01 (um) aparelho Freestyle Libre, com 02 (dois) sensores da mesma marca por mês, que se presta à garantia do adequado controle da glicemia, essencial para o tratamento da diabetes mellitus – tipo 1, da menor recorrente, absolutamente incapaz.

2. À largada, registra-se que – após após consultar o sistema PJe de 1º grau – foi possível constatar a inexistência de litispendência com o processo n. (************). Os feitos possuem partes distintas, de sorte que identidade entre as demandas está restrita ao fornecimento do aparelho Freestyle Libre, que é insuscetível de caracterizar o instituto da litispendência.

3. No mérito, o recurso merece prosperar. Como já ensaiado na decisão interlocutória, a vexata quaestio tenciona o fornecimento de 01 (um) aparelho Freestyle Libre, com 02 (dois) sensores Freestyle Libre por mês, visando garantir o adequado controle da glicemia na menor/recorrente, absolutamente incapaz, que padece de diabetes mellitus – tipo 1 (CID: E10.9).

4. Nos autos repousa o laudo médico atestando a importância do uso do aparelho na agravante para o melhor controle de sua glicemia, diminuindo o número de picadas diárias e evitando maiores complicações da enfermidade.

5. Como consabido, o direito subjetivo à saúde está, no ordenamento jurídico pátrio, garantido por meio de norma programática insculpida na CRFB/88, art. 196. A partir da leitura do referido dispositivo constitucional, pode-se observar que é dever do Poder Público, em qualquer de suas esferas, assegurar a todas as pessoas o direito à manutenção da saúde, consequência indissociável do direito à vida. Este é o caso dos autos.

6. comprovada a necessidade do aparelho requestado e a carência financeira da parte, é dever do ente público o seu fornecimento, garantindo as condições de saúde e sobrevivência dignas, com amparo nos artigos 196 e 197 da Constituição Federal – CRFB/88. Ademais, é pacífico no STJ que o Estado/Município são obrigados a custear tratamento, exames e fármacos para os mais necessitados, como meio de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida e à saúde. Precedente: STJ – RMS: 24197 PR 2007/0112500-5, Relator: Ministro LUIZ FUX, Data de Julgamento: 04/05/2010, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/08/2010.

7. Demais disso, já existe entendimento em outros pretórios pátrios no sentido de compelir o ente público a fornecer o equipamento e sensores Freestyle Libre, ora requestados. Precedente: TJSP – AI n. 2058083-43.2021.8.26.0000, Relator: Dimas Rubens Fonseca (Pres. da Seção de Direito Privado), Câmara Especial, Julg: 01/06/2021, Publicação: 01/06/2021. No mesmo sentido: TJRS – AI n. 70084666726 RS, Rel. Des. Leonel Pires Ohlweiler, Terceira Câmara Cível, Julg: 18/03/2021, Publicação: 23/03/2021.

8. In casu, o laudo médico que repousa nos autos é convincente (probabilidade do direito vindicado) no sentido de que o uso do aparelho FreeStyle Libre servirá para minimizar a quantidade de picadas diárias e melhorar o quadro de saúde da paciente, atendendo ao princípio constitucional do melhor interesse da criança (cf. CRFB, art. 227). Assim, esta e. Câmara de Direito Público concluiu que a necessidade do aparelho postulado (fumus boni iuris) pela recorrente restou inequivocamente demonstrada.

9. Doutra sorte, é lídimo afirmar que o perigo de dano ou o risco ao resultado útil ao processo (periculum in mora) é flagrante, porquanto – como predito – a não concessão da tutela de urgência poderá causar prejuízos irreparáveis à saúde da recorrente.

10. Agravo de Instrumento provido. Decisão unânime.

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Irving William Chaves Holanda
Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Assessor de Desembargador perante o TJPE.

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